Regina Dalcastagnè
Foto de Araquém Alcântara
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O xamã yanomami Davi
Kopenawa dizia que “os brancos dormem muito, mas só sonham com eles mesmos”. É
preciso, mais do que nunca, enxergar os que sonham ao nosso lado. E a literatura pode nos ajudar a ver melhor, mas, para
isso, talvez seja preciso nos reposicionarmos diante do campo literário, afinal,
ainda que nossa produção recente não reivindique mais a função de representar o
Brasil, ela continua sendo herdeira de um projeto de nação – “uma comunidade
imaginada”, nos termos de Benedict Anderson – que foi construído a partir do
apagamento de diferenças, especialmente do apagamento da história e da cultura
de mulheres, de negros e de indígenas. Por isso me parece tão importante
refletir sobre o lugar de onde se imagina uma nação.
O Brasil é um país gigantesco,
não apenas em suas dimensões espaciais, mas sobretudo em sua diversidade
cultural. Falamos todos um único português, insistem alguns, desconhecendo e
deslegitimando as variedades regionais, as contribuições africanas, as mais de
200 línguas indígenas que ainda sobrevivem em nosso território. Por isso, não
dá para falar de “literatura brasileira” sem problematizar ambos os termos.
Afinal, até onde chega o Brasil e o que aceitamos entender como literatura?
Em 30 de dezembro de
1904, Euclides da Cunha escrevia ao seu pai desde Manaus: “a mais consoladora
surpresa do sulista está no perceber que este nosso Brasil é verdadeiramente
grande porque ainda chega até cá. Realmente, cada vez mais me convenço de que
esta deplorável Rua do Ouvidor é o pior prisma por onde toda a gente vê a nossa
terra”. A crítica perspicaz do autor apontava o risco de se reduzir a percepção
sobre a realidade do país a essa perspectiva tão estreita. Infelizmente, 120
anos depois, e usando a Rua do Ouvidor agora apenas como uma metáfora da arrogância
de certa elite intelectual dos centros mais desenvolvidos do país, precisamos
continuar alertando: o Brasil chega muito mais longe do que costumamos
imaginar.
Sem me alongar demais,
apresento três textos, todos escritos por mulheres, que me parecem esclarecedores
da importância de se olhar o mundo por outras perspectivas. Primeiro, um poema
de Conceição Evaristo, experiente escritora negra de Minas Gerais com uma
produção de mais de 30 anos – tanto na poesia quanto na ficção, e mesmo na
teoria. Depois, um poema de Meimei Bastos, jovem atriz e escritora da periferia
de Brasília, ainda sem livro publicado. Por fim, um poema de Adelaide Ivánova,
jornalista e fotógrafa de Recife que vive na Alemanha e tem dois livros
publicados.
A perspectiva negra,
feminina e trabalhadora de Conceição Evaristo revela um universo de exploração
e racismo, mas também de luta e resistência. Temas que podem ser abordados por
homens brancos de elite preocupados com a mesma situação, mas que, quando
aparecem em suas obras, costumam vir como uma crítica distante, e socialmente
situada. Lembro de um poema provocador de Chico Alvim (publicado em O elefante), que tem um título e um
único verso: “Mas... é limpinha”. A brevidade do poema, que dialoga diretamente
com o racismo à brasileira, esconde tudo aquilo que não precisaria ser dito
sobre a empregada doméstica, porque é já uma certeza compartilhada entre
patrões: “é negra, é pobre, por isso é feia, mas... é limpa e, assim, pode ser
admitida dentro de casa”. E o diminutivo se faz presente, sempre com o intuito
de familiarização e inferiorização. O poema é crítico, ironiza o discurso
escravocrata de nossa elite, mas, ainda assim, nada diz, de fato, sobre a moça.
O mesmo acontece em A paixão segundo GH, de Clarice
Lispector, quando a autora coloca sua
protagonista dentro do quarto da ex-empregada, diante de um desenho feito à
carvão na parede: um homem, uma mulher e um cachorro, estáticos, imensos e
atoleimados. Como centro do mundo, que imagina ser, a ex-patroa logo supõe que
aquelas imagens sejam uma espécie de recado para si: “Olhei o mural onde eu
devia estar sendo retratada... Eu, o Homem. E quanto ao cachorro – seria este o
epíteto que ela me dava? Havia anos que eu só tinha sido julgada pelos meus
pares e pelo meu próprio ambiente que eram, em suma, feitos de mim mesma e para
mim mesma. Janair era a primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar eu
tomava consciência”. A partir daí, e do esmagamento de uma barata, G. H. entra
em longas divagações sobre sua própria existência e Janair é soterrada. Dela,
só nos sobra a descrição de um desenho na parede, descrição feita pela patroa –
é bom lembrar –, contaminada pelo rancor e pelas diferenças de classe.
É preciso uma Carolina
Maria de Jesus, ou uma Conceição Evaristo, como no poema abaixo (publicado nos Cadernos Negros), para dar voz a essa
mulher:
Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
De uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias,
debaixo das trouxas,
roupagens sujas dos brancos,
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos,
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes,
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
Ao retirar as vozes
engasgadas nas gargantas dessas mulheres, Conceição Evaristo traz para nossa
literatura outros espaços de enunciação: os porões dos navios, os fundos das
cozinhas alheias, o caminho empoeirado da favela, o próprio corpo silenciado
que ergue a trouxa de roupas sujas. E marca, também, a diferença desses espaços
em relação aos dos brancos-donos-de-tudo. Passado, presente e futuro se juntam
na esperança de que essa experiência possa, enfim, ressoar.
A jovem Meimei Bastos
já não discute o silenciamento que veio antes, ela é dona de sua própria voz –
e voz é um termo importante nesse contexto porque Meimei surge nas batalhas de slam nas periferias de Brasília. Sua
poesia nasce como voz, como performance. E, assim como em Conceição Evaristo,
aborda a cidade pelo lado de fora, pelo seu “avesso”. Todos os nomes próprios
são de regiões, bairros, avenidas e espaços públicos de Brasília ou de suas
“cidades satélites”:
Tinha um EIXO atravessando meu peito
tão grande que dividia a minha alma em
L2 SUL e NORTE.
Uma W3 entalada na garganta virou nó.
Eles têm o Parque da Cidade,
Nós o Três Meninas,
Eles a Catedral,
Nós Santa Luzia,
Eles Sudoeste,
Nós Sol Nascente,
Eles o Lago Paranoá,
Nós Águas Lindas.
Sou filha da Maria,
que não é Santa e nem puta.
Nasci e me criei num paraíso que chamam
de Val
e me formei na Universidade Estrutural.
Fui batizada no Santuário dos Pajés
por um guerreiro Fulni-ô.
Eu não troco o meu Recanto de Riachos
Fundos
e Samambaias verdes pelas tuas
Tesourinhas.
Essa Brasília não é minha.
Porque eu não sou planalto,
eu sou PERIFERIA!
Porque eu não sou concreto,
eu sou QUEBRADA!
A relação entre o traçado do Plano Piloto de Brasília e seu próprio
corpo parece gerar uma identidade, que rapidamente
é desconstruída a partir da marcação pronominal: há aqui um “nós” e um “eles”,
que se comunicam, mas não se assimilam.
A comparação entre a cidade,
pretensamente rica e organizada, e as suas periferias
pobres (que se somam na graça de seus
nomes) ganha uma dimensão nova diante do grande volume de poemas existentes
para celebrar Brasília, porque o eu enunciador faz sua escolha – entre planalto e periferia, entre concreto
e quebrada – marcando de que lado
prefere estar, e com quem.
Já
Adelaide Ivánova, poeta de expressão feminista, sai da cidade e de suas
periferias para nos levar para a um quarto asséptico, provavelmente frio e com
luzes brancas. Mais que isso, ela nos leva direto para uma maca. A perspectiva
é a da mulher deitada ali, com as pernas abertas enquanto os médicos conversam
sobre greves, bares e copos descartáveis. Não é um lugar confortável:
o urubu
corpo de delito é
a expressão usada
para os casos de
infração em que há
no local marcas do evento
infracional
fazendo do corpo
um lugar e de delito
um adjetivo o exame
consiste em ver e ser
visto (festas também
consistem disso)
deitada numa maca com
quatro médicos ao meu redor
conversando ao mesmo tempo
sobre mucosas a greve
a falta de copos descartáveis
e decidindo diante de minhas pernas
abertas se depois do
expediente iam todos pro bar
o doutor do instituto
de medicina legal escreveu seu laudo
sem olhar pra minha cara
e falando no celular
eu e o doutor temos um corpo
e pelo menos outra coisa em comum:
adoramos telefonar e ir pro bar
o doutor é uma pessoa
lida com mortos e mulheres vivas
(que ele chama de peças)
com coisas.
O
poema (publicado no livro O martelo)
é sobre um estupro, e talvez o mais angustiante dele seja esse sentimento de
ordinário que o cerca, de um dia como qualquer outro – para eles. Os termos
jurídicos retomam a violência do ato que não é pronunciado, que é mesmo
esvaziado, a não ser pela perspectiva impotente do seu objeto, que vê de baixo
para cima, isolado, mais uma vez violentado. Não é fácil olhar esse poema
porque nos sentimos olhadas por ele – como nenhum homem poderia nos olhar a
partir de sua escrita.
Isso porque escritores
não são, como muitas vezes gostam de se apresentar, os intérpretes descarnados
de uma estética etérea, alheia ao barro que suja nossos pés. Sofrem
constrangimentos idênticos aos de outros agentes sociais; veem o mundo de uma
determinada perspectiva, socialmente estruturada, e participam de um campo que
estimula alguns gestos e repertórios e veta outros. Por isso, é tão importante
democratizar o acesso à voz literária – isto é, aumentar a pluralidade de
perspectivas sociais capazes de se fazerem ouvir na literatura. Esse é um
problema político, mas também, e essencialmente, literário, uma vez que novas
perspectivas podem trazer novos modos de expressão, promovendo, quem sabe, uma
espécie de alargamento no universo dos possíveis e permitindo compartilhar os
sonhos dos que vivem entre nós.
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