28 de setembro de 2019

Literatura e princípios morais

(Em memória ao professor Wilton Barroso Filho)

Uirá Rauan


Diary of Discoveries, de Vladimir Kush



                         Descobrir o que somente um romance pode descobrir é a única razão de ser do romance. O  romance que não descobre algo até então desconhecido da existência é imoral. O conhecimento é a única moral do romance.
Hermann Broch


O julgamento moral se mostra desprezível dentro da criação literária, ao passo que pode prejudicar tanto a composição da obra, a criação, como também a reflexão filosófica acerca da obra já pronta. É indispensável pensar na composição romanesca como uma grande ferramenta de descobrimento do que é a vida humana nas suas mais diversas facetas, isso traz autonomia e liberdade à criação literária. Essa liberdade, ou libertação, é inclusive moral, posto que no âmbito da criação literária, os julgamentos morais, o preconceito, devem ser extintos. Suspender juízos morais não é uma tarefa razoável para o leitor comum, por exemplo, que geralmente não está interessado na reflexão crítico-filosófica a respeito da obra literária. Já para o leitor pesquisador que, necessariamente, deve enxergar o campo literário como lugar doador de riqueza de possibilidades - principalmente no que diz respeito ao conhecimento sobre a condição humana -, a isenção de julgamento moral, no contato com a criação literária, se torna um dever.
Tendo em vista a criação literária, a moral pode ser explícita, no caso em que o autor é o próprio narrador e “assume” seu pensamento independente das sanções que possa vir a sofrer, implícita ou até mesmo negada, quando, em vias de ser rechaçado, prefere adotar o modelo do narrador ausente e/ou atribuir seu pensamento a um objeto, ou a qualquer outra pessoa que não seja ele mesmo. Isso pode ser considerado uma ironia, no sentido de ironia como uma máscara: se o autor coloca um defunto para narrar, como, por exemplo, Machado de Assis fez em Memórias póstumas de Brás Cubas, ele pode falar tudo o que pensa sem o risco de ser julgado moralmente, pois o narrador defunto lhe protege de possíveis julgamentos de cunho moral. No capítulo cento e dezenove dessa obra, por exemplo, o narrador defunto, Brás Cubas, elenca meia dúzia de máximas muito irônicas. Numa delas lemos: “Não se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro”. Em outra, ele escreve que, “um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem”. Ou seja, Machado, astuciosamente, formula frases de conteúdo extremamente sarcástico, outorga-lhes autoridade axiomática e as coloca na boca do narrador defunto. Tal é o poder dessa escolha estética, que não parece ao leitor, que sejam frases e sarcasmos do autor e sim do narrador. E se o narrador é um defunto, é impossível julgá-lo. Isso confere ao narrador, uma liberdade filosófica imensa - e ao autor consequentemente.
Outra referência importante é a obra de Gustave Flaubert, Madame Bovary, que é capaz de “discutir” a moral, do ponto de vista da infidelidade conjugal. A narrativa é sobre a vida de Emma Bovary, uma mulher que trai o marido e vive oscilante entre paixões e desventuras. É possível afirmar que o autor poderia estar defendendo a infidelidade conjugal como algo normal, aceitável e até tranquilo de se dá. E aconteceu algo parecido à época da publicação: a obra sofreu censura e Flaubert foi processado pelo ministério público francês por insulto à moral pública e à religião, sendo absolvido mais tarde. Nesse caso, especificamente, a intenção de Flaubert não foi defender nem acusar a infidelidade conjugal, mas mostrá-la de modo que Emma fosse valorizada em sua humanidade. O autor chama a atenção para o fato de que Emma, acima da infidelidade, é um ser humano complexo e singular como os seus pares.
A infidelidade conjugal, tem sido desde sempre discutida e vista como algo imoral, no entanto, um número razoável de pessoas, essas mesmas que pregam ser, a infidelidade conjugal, imoral, traem e são traídas. Nesse caso, como falar que a pessoa fiel tem moral se o comportamento humano, na maioria das vezes tem sido “imoral”? Como a produção literária poderia assumir a infidelidade como moral ou imoral sem ferir determinados grupos sociais? Seria razoável, se utilizar da literatura para fazer uma discussão tão polêmica? Qual seria o papel que a produção literária assumiria nesse contexto?
Milan Kundera, escritor romanesco e teórico literário tcheco, nos ilumina a respeito dessa temática da moral no campo literário. Em seu ensaio “Os testamentos traídos”, ele diz que “suspender o julgamento moral não é a imoralidade do romance, é a sua moral”. Ou seja, um romance é imoral a partir do momento que se priva de liberdade por motivos morais ou por valores pautados em leis desse tipo. Essa moral - própria da criação literária - é o que “se opõe à irremovível prática humana de julgar imediatamente, sem parar, a todos, de julgar antecipadamente e sem compreender”, e é nesse sentido que o julgamento moral está para além do romance e, em verdade, deve ser exterior ao romance.
Penso que, no âmbito da criação romanesca, o conceito de moral é relativo ou particular. A criação literária como território fecundo, de onde emana conhecimento acerca da vida humana e do mundo, é útero perfeito de uma proposição metodológica apoiada na epistemologia, que possibilita uma infinidade de reflexões filosóficas. Epistemologia em seu sentido comum é uma área da filosofia que trata dos problemas que envolvem o conhecimento humano, com vistas ao valor e à essência do mesmo. Uma proposta metodológica de epistemologia do romance seria então a grande resposta para as perguntas feitas anteriormente. A obra romanesca suscita a reflexão filosófica e se nos entregamos a ela, com intenções epistemológicas, somos capazes de decompô-la, esquadrinhá-la e, deste modo, alcançarmos o cerne da sua composição. Portanto, o papel da criação romanesca é fazer conhecer, provocar reflexões e possibilitar uma liberdade estética essencial ao conhecimento.
Finalmente, se for verdade que “o conhecimento é a única moral do romance”, então é possível afirmar que o artista literário pode falar o que quiser independente do pensamento social vigente, que pode produzir julgamentos morais, basta que a obra produza conhecimento e traga à tona o desconhecido acerca da condição humana, da existência. O autor pode, astuciosamente, se utilizar de outros seres para acobertar o seu pensamento e, dessa maneira, se livrar de todo e qualquer julgamento que, por ventura, venham a lhe fazer.
O leitor que tenha acesso ao escrito literário, provavelmente, sentirá amor ou ódio pelo objeto utilizado pelo autor para expor suas ideias. Nesse sentido, o julgamento moral é externo à obra literária e não se trata de confundir a moral própria da obra literária com uma moral externa, pré-fabricada. Portanto, devemos buscar a fruição que a obra literária tem a oferecer, livre de preconceitos e julgamentos morais. Esse exercício, que deve ser natural para o leitor pesquisador, o leitor comum, sem grandes interesses pela reflexão filosófico-epistemológica acerca da arte literária, pode também fazer.

Referências:
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.145.
KUNDERA, Milan. A arte do romance. Tradução, Teresa Bulhões C. da Fonseca e Vera Mourão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.11.
KUNDERA, Milan. Os testamentos traídos: ensaios. Tradução, Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luiza Newlands Silveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 07.

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