(Em
memória ao professor Wilton Barroso Filho)
Uirá Rauan
Diary of Discoveries, de Vladimir Kush |
Descobrir o que somente
um romance pode descobrir é a única razão de ser do romance. O romance que não
descobre algo até então desconhecido da existência é imoral. O conhecimento é a
única moral do romance.
Hermann
Broch
O
julgamento moral se mostra desprezível dentro da criação literária, ao passo
que pode prejudicar tanto a composição da obra, a criação, como também a
reflexão filosófica acerca da obra já pronta. É indispensável pensar na
composição romanesca como uma grande ferramenta de descobrimento do que é a
vida humana nas suas mais diversas facetas, isso traz autonomia e liberdade à
criação literária. Essa liberdade, ou libertação, é inclusive moral, posto que
no âmbito da criação literária, os julgamentos morais, o preconceito, devem ser
extintos. Suspender juízos morais não é uma tarefa razoável para o leitor
comum, por exemplo, que geralmente não está interessado na reflexão crítico-filosófica
a respeito da obra literária. Já para o leitor pesquisador que, necessariamente,
deve enxergar o campo literário como lugar doador de riqueza de possibilidades
- principalmente no que diz respeito ao conhecimento sobre a condição humana -,
a isenção de julgamento moral, no contato com a criação literária, se torna um
dever.
Tendo
em vista a criação literária, a moral pode ser explícita, no caso em que o
autor é o próprio narrador e “assume” seu pensamento independente das sanções
que possa vir a sofrer, implícita ou até mesmo negada, quando, em vias de ser
rechaçado, prefere adotar o modelo do narrador ausente e/ou atribuir seu
pensamento a um objeto, ou a qualquer outra pessoa que não seja ele mesmo. Isso
pode ser considerado uma ironia, no sentido de ironia como uma máscara: se o
autor coloca um defunto para narrar, como, por exemplo, Machado de Assis fez em
Memórias póstumas de Brás Cubas, ele pode falar tudo o que pensa sem o
risco de ser julgado moralmente, pois o narrador defunto lhe protege de
possíveis julgamentos de cunho moral. No capítulo cento e dezenove dessa obra,
por exemplo, o narrador defunto, Brás Cubas, elenca meia dúzia de máximas muito
irônicas. Numa delas lemos: “Não se compreende que um botocudo fure o beiço
para enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro”. Em
outra, ele escreve que, “um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da
carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem”. Ou seja, Machado,
astuciosamente, formula frases de conteúdo extremamente sarcástico,
outorga-lhes autoridade axiomática e as coloca na boca do narrador defunto. Tal
é o poder dessa escolha estética, que não parece ao leitor, que sejam frases e
sarcasmos do autor e sim do narrador. E se o narrador é um defunto, é
impossível julgá-lo. Isso confere ao narrador, uma liberdade filosófica imensa
- e ao autor consequentemente.
Outra
referência importante é a obra de Gustave Flaubert, Madame Bovary, que é
capaz de “discutir” a moral, do ponto de vista da infidelidade conjugal. A
narrativa é sobre a vida de Emma Bovary, uma mulher que trai o marido e vive
oscilante entre paixões e desventuras. É possível afirmar que o autor poderia
estar defendendo a infidelidade conjugal como algo normal, aceitável e até
tranquilo de se dá. E aconteceu algo parecido à época da publicação: a obra
sofreu censura e Flaubert foi processado pelo ministério público francês por
insulto à moral pública e à religião, sendo absolvido mais tarde. Nesse caso,
especificamente, a intenção de Flaubert não foi defender nem acusar a
infidelidade conjugal, mas mostrá-la de modo que Emma fosse valorizada em sua
humanidade. O autor chama a atenção para o fato de que Emma, acima da
infidelidade, é um ser humano complexo e singular como os seus pares.
A
infidelidade conjugal, tem sido desde sempre discutida e vista como algo
imoral, no entanto, um número razoável de pessoas, essas mesmas que pregam ser,
a infidelidade conjugal, imoral, traem e são traídas. Nesse caso, como falar
que a pessoa fiel tem moral se o comportamento humano, na maioria das vezes tem
sido “imoral”? Como a produção literária poderia assumir a infidelidade como
moral ou imoral sem ferir determinados grupos sociais? Seria razoável, se
utilizar da literatura para fazer uma discussão tão polêmica? Qual seria o
papel que a produção literária assumiria nesse contexto?
Milan
Kundera, escritor romanesco e teórico literário tcheco, nos ilumina a respeito
dessa temática da moral no campo literário. Em seu ensaio “Os testamentos
traídos”, ele diz que “suspender o julgamento moral não é a imoralidade do
romance, é a sua moral”. Ou seja, um romance é imoral a partir do momento que
se priva de liberdade por motivos morais ou por valores pautados em leis desse
tipo. Essa moral - própria da criação literária - é o que “se opõe à
irremovível prática humana de julgar imediatamente, sem parar, a todos, de
julgar antecipadamente e sem compreender”, e é nesse sentido que o julgamento
moral está para além do romance e, em verdade, deve ser exterior ao romance.
Penso
que, no âmbito da criação romanesca, o conceito de moral é relativo ou
particular. A criação literária como território fecundo, de onde emana
conhecimento acerca da vida humana e do mundo, é útero perfeito de uma
proposição metodológica apoiada na epistemologia, que possibilita uma
infinidade de reflexões filosóficas. Epistemologia em seu sentido comum é uma
área da filosofia que trata dos problemas que envolvem o conhecimento humano,
com vistas ao valor e à essência do mesmo. Uma proposta metodológica de
epistemologia do romance seria então a grande resposta para as perguntas feitas
anteriormente. A obra romanesca suscita a reflexão filosófica e se nos
entregamos a ela, com intenções epistemológicas, somos capazes de decompô-la,
esquadrinhá-la e, deste modo, alcançarmos o cerne da sua composição. Portanto,
o papel da criação romanesca é fazer conhecer, provocar reflexões e
possibilitar uma liberdade estética essencial ao conhecimento.
Finalmente,
se for verdade que “o conhecimento é a única moral do romance”, então é possível afirmar que o artista
literário pode falar o que quiser independente do pensamento social vigente,
que pode produzir julgamentos morais, basta que a obra produza conhecimento e
traga à tona o desconhecido acerca da condição humana, da existência. O autor
pode, astuciosamente, se utilizar de outros seres para acobertar o seu
pensamento e, dessa maneira, se livrar de todo e qualquer julgamento que, por
ventura, venham a lhe fazer.
O
leitor que tenha acesso ao escrito literário, provavelmente, sentirá amor ou
ódio pelo objeto utilizado pelo autor para expor suas ideias. Nesse sentido, o
julgamento moral é externo à obra literária e não se trata de confundir a moral
própria da obra literária com uma moral externa, pré-fabricada. Portanto,
devemos buscar a fruição que a obra literária tem a oferecer, livre de preconceitos
e julgamentos morais. Esse exercício, que deve ser natural para o leitor
pesquisador, o leitor comum, sem grandes interesses pela reflexão
filosófico-epistemológica acerca da arte literária, pode também fazer.
Referências:
ASSIS,
Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.145.
KUNDERA,
Milan. A arte do romance. Tradução, Teresa Bulhões C. da Fonseca e Vera Mourão.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.11.
KUNDERA,
Milan. Os testamentos traídos: ensaios. Tradução, Teresa Bulhões Carvalho da
Fonseca e Maria Luiza Newlands Silveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994,
p. 07.
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