13 de dezembro de 2019

Castanha e Alexandre: dois olhares literários sobre o infantil marginalizado

Paula Cruz Pereira

Imagem de Pedro Solis


Antonio Candido, em “A personagem do romance”, diz que a ficção possibilita um conhecimento do outro completamente organizado. Diferentemente da vida real, onde a compreensão de outras pessoas se dá de forma fatalmente fragmentada e relativa, o personagem fictício é “inteiramente explicável” (p. 14). As ações e relações que o compõem constroem uma mensagem deliberada. É interessante pensarmos, então, nas possibilidades de representação contidas em um personagem criança. É o caso de Castanha, da HQ Castanha do Pará de Gildalti Jr. (2016), e Alexandre, de A casa da madrinha, Lygia Bojunga (1978).

Ambos tratam-se de jovens às margens da sociedade. Castanha é um menino que vive nas ruas de Belém do Pará. Após anos sofrendo violência doméstica, a mãe de Castanha assassina seu marido. Vem a polícia, a mãe desaparece e, desde então, o menino passa os dias rondando o mercado aberto da cidade. Já Alexandre, aparece viajando sozinho com um Pavão, no interior do Rio, montando shows para financiar a viagem. Cansou da vida de ambulante em Copacabana e saiu em busca da casa de sua madrinha. Nos deslocamentos, relações e desfechos das narrativas dos dois protagonistas, podemos observar duas abordagens para a vida da criança marginalizada na literatura. A divergência está na perspectiva.

Na contação de histórias, desde a Odisséia a Star Wars, a “jornada do herói” tem um papel incontestável. Viagens e deslocamentos são importantes não apenas no enredo mas também no desenvolvimento dos personagens, e os deslocamentos de Castanha e Alexandre constroem a história de cada um. Mas as diferenças entre a movimentação dos dois geram efeitos variados nas respectivas narrativas. Em Castanha do Pará, os deslocamentos de Castanha se dão de forma um pouco caótica. Como a história é narrada a partir da conversa de uma vizinha com um policial, não há sempre uma cronologia óbvia. O conto inicia com o flashback de uma situação de abuso na casa de Castanha. Na próxima vez que o vemos, está engraxando sapatos na rua, jogando futebol, depois a família outra vez. Essa confusão temporal gera uma aproximação inicial da história de Castanha com a realidade, onde nem sempre nos recordamos das coisas em ordem sequencial. 

A partir daí, nos deparamos com os deslocamentos de Castanha propriamente ditos. São quase sempre forçados: o menino dorme no chão, em frente a uma loja, e é enxotado pelo proprietário de madrugada, na hora de abrir a venda (p. 24). Vemos-no, então vagando pelo mercado Ver-o-peso em meio a buzinas do trânsito e broncas de vendedores diversos, até que em determinado momento, desmaia sob o sol (p. 39). Acorda ainda no mercado e consegue roubar uma banana, foge do policial, corta o pé—porque não tem sapatos (p. 52). Fica debaixo da chuva, ganha esmola em uma igreja (p. 69). Assim até a noite. Castanha é empurrado de um lado para o outro, tendo pouca agência sobre sua própria locomoção. Seu deslocamento não tem destino. Isso cria uma sensação bastante incômoda para o leitor, que vai se sentindo também impotente.

Os únicos momentos em que a situação é amenizada são em pequenos delírios, quando Castanha desmaia e também depois em uma brincadeira na chuva. Aí, sim, ele segura a taça do campeonato no centro do estádio (p. 41), é o herói da Barbie, joga com o Pelé, impersona Ayrton Senna (p. 59). É apenas nessas cenas, também, que estamos  completamente na perspectiva de Castanha, sem a interlocução da vizinha. Damos breves mergulhos na fantasia quando vemos a história através dos olhos do menino.
Já Alexandre, de A casa da madrinha, vive em uma grande fantasia. Ele aparece na cidade onde conhece Vera do dia para a noite, monta shows com um Pavão que fala—mas não pensa porque teve seu pensamento entupido numa escola especial—e leva Vera para a casa da madrinha num cavalo inventado. A casa da madrinha é uma história de criança, não apenas para criança, mas também por. Às vezes as falas de Alexandre se misturam com as do narrador e em meio a jogos de palavra, situações mirabolantes e comentários completamente diretos, a sensação é de que é mesmo uma criança contando a história:
A escola pra onde levaram o Pavão se chamava Escola Osarta do Pensamento. Bolaram o nome da escola pra não dar muito na vista. Mas quem estava interessado no assunto percebia logo: era só ler Osarta de trás pra frente. (p. 37)

Nessa história, os mergulhos breves são os para a realidade. Depois de toda uma história do Pavão na Escola Osarta, Vera pede que Alexandre conte “a sua vida” para ela, e ele responde, no que parece quase uma só respiração, “Lá em Copacabana tinha um morro, no morro tinha uma favela, na favela tinha um barraco, no barraco tinha a minha família” (p. 57). Ela pergunta se lá é bom, e ele responde que “Não, tirando a vista, o resto todo é ruim” (p. 58). Mas aí entram no assunto de Augusto, irmão de Alexandre, e ele se lembra da professora que tinha uma maleta cheia de pacotinhos coloridos, e das histórias que o irmão contava antes de dormir, e o tom do romance fica leve novamente.

De vez em quando, percebemos paralelos entre a história sofrida imaginária do Pavão e a sofrida palpável de Alexandre. A Gata da Capa vira-lata, de vida difícil, briga por causa de comida e tem que escapar de carro, de ônibus (p. 119). Chega em casa de língua de fora. E Alexandre? Foi trabalhar arranjando táxi porque sorvete não tava vendendo. Tem que escapar de carro, de ônibus. “Tinha que escapar de tanta coisa, que chegava em casa de língua de fora” (p. 89). Mas  ainda assim, esse deslocamento sofrido e obrigado é colocado no mundo da fantasia e dos bichos falantes. Alexandre, na sua visão da sua história, foi quem quis sair do Rio por vontade própria: “Resolveu que a caixa de sorvete ia servir de mala, e se mandou mesmo sozinho lá pra casa da madrinha” (p. 91). Seu deslocamento, diferentemente do de Castanha, tem intenção e rumo. Assim, apesar de a realidade dos dois meninos não ser tão distinta, uma soa muito mais alegre do que a outra.

Passando para relações, a situação familiar dos dois protagonistas também se assemelha. Castanha assiste ao padrasto espancando a mãe, gritando palavras chulas que o menino também repete depois. “Te tirei da lama, sua piranha!” grita o homem quando a mãe tenta defender o filho, “SLAP!” (GIDALTI JR., 11). Castanha vira menino de rua. Enquanto isso, Alexandre é menino das favelas de Copacabana que saiu da escola para vender sorvete na praia; o pai “virou bêbado” (BOJUNGA, 58); o irmão e melhor amigo se casou e foi pra São Paulo. Alexandre abandona a casa e, pelo que tudo leva a crer, vira também menino de rua, sozinho uma cidade do interior.

Mas enquanto um menino é visto constantemente com desgosto e repreensão por todos que o cercam, o outro tem amigos. A própria vizinha de Castanha, em seu relato para o policial, diz, “Se a coisa só traz problemas e faz os outros sofrerem… é melhor que ela não exista!” se referindo ao menino (p. 75). Ele é constantemente rechaçado, expulso pelos vendedores do mercado, perseguido por guardas, mandado embora até mesmo da igreja, onde sua presença incomoda tanto que recebe um dinheiro para ir “fazer um lanchinho” (p. 69). Alexandre, apesar do desagrado dos pais de Vera—talvez até mesmo por causa desse desagrado—encontra nela uma grande amiga. São eles dois contra os adultos, contra a “gente grande” que “tem uma inveja danada de madrinha de gente pequena” (p. 131). Desde o começo do livro, enquanto todos olham para o Pavão, Vera está curiosa sobre Alexandre (p. 15). Somando isso ao próprio Pavão, companheiro de Alexandre, ainda que no plano da fantasia, e a Augusto, o irmão que antes de se casar, contava histórias e colocou Alexandre na escola, percebemos que ele recebe atenção o suficiente para sonhar. Castanha, não.

E isso nos leva aos desfechos. Castanha do Pará encerra com uma cena de  atropelamento, em que segundos antes do impacto com um ônibus, Castanha cria asas e desaparece pelo céu como um corvo (p. 75). O policial noticia a vizinha de um corpo não-identificado encontrado (p. 74). Não fica explícito, mas entendemos que o menino morreu. Em A casa da madrinha, Alexandre e Vera combinam de trocar correspondência. Abraçam-se forte. E aí Alexandre e o Pavão “foram sumindo e sumindo” numa dobra do caminho (p. 169). É um final deixado em aberto, não se sabe para onde Alexandre vai. Mas a melancolia da despedida ressalta a existência de uma conexão que Castanha, em sua história, não tem.

Observamos, então, dois caminhos que se pode tomar na representação de crianças em situações, objetivamente, vulneráveis. Com um deslocamento forçado e fragmentado, ausência de relações pessoais e desfecho de morte, Gidalti Jr. opta por uma abordagem mais presa à realidade. Bojunga, por outro lado, utiliza-se da perspectiva infantil para criar uma história que parte dos mesmos princípios, mas é fantástica e relativamente alegre: o deslocamento tem destino, amizades são formadas e o fim é incerto. O ponto de partida dos dois autores é semelhante, mas as duas trajetórias que dele decorrem não poderiam diferir mais. Como disse Candido, na ficção, onde tudo se explica, é possível selecionar detalhes para compor uma narrativa específica com ênfases específicas. Pode-se perceber aí o poder transformador das histórias. A vida real é mais complexa.

Referências
BOJUNGA, Lygia. A casa da madrinha. 20a ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2013. CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 2a ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007. p. 51-80.
Disponível em .
GIDALTI JR. Castanha do Pará. Pará: Edição do autor, 2016. 

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