(sobre Trato desfeito: o revés autobiográfico na
literatura contemporânea brasileira, de Pedro Galas)
Bruna Ferreira
O chamado “pacto autobiográfico” foi proposto por Philippe
Lejeune nos anos 1970, em uma tentativa de estabelecer uma definição precisa da
autobiografia como um gênero literário. O pacto de “veracidade” da escrita
seria estabelecido entre leitor e autor (pretendido por este e confirmado por
aquele) a partir da coincidência entre os nomes próprios do narrador de um
texto e do autor que o tenha publicado. A fragilidade desta definição foi
discutida posteriormente por vários críticos, e sua aplicabilidade na
literatura brasileira contemporânea é o tema central da dissertação de mestrado
de Pedro Galas, defendida na Universidade de Brasília em 2011, sob orientação
da professora Regina Dalcastagnè. Em sua pesquisa, Galas analisa romances e
contos de três escritores contemporâneos cujos textos são narrados em primeira
pessoa e cujos narradores guardam semelhanças com seus autores: Sérgio Sant’Anna,
Bernardo Carvalho e Marcelo Mirisola.
Em Sérgio de Sant’Anna, Galas aponta as contradições
de uma escrita de si que ao mesmo tempo em que se pretende confessional e
“verdadeira”, questiona a capacidade da linguagem literária de representar o “real”.
Na obscura narração de Sant’Anna, nada é transparente, e ainda que o narrador
se confesse o eu que assina a capa do livro e, através da escrita, revele
coincidências factuais entre um e outro, definir com precisão o que é ficção e
o que de fato aconteceu é impossível. Não só a identidade do narrador é
sucessivamente colocada em questão pela tessitura da escrita, como são lançadas
dúvidas sobre a própria possibilidade de representação de qualquer identidade
coerente por meio da palavra.
Ao analisar a obra de Bernardo de Carvalho, Galas
identifica o jogo do autor com os nomes próprios no romance As iniciais, em que os personagens são
esvaziados de qualquer identidade fixa e isolada. Em vez de indivíduos que
preexistem ao convívio social e dele participam inteiros e acabados, Bernardo
de Carvalho cria personagens-função, que só existem em relação ao grupo, e que
só ganham significado – sempre flutuante – em relação a um outro e ao
desenrolar da narrativa. Já em Nove noites,
do mesmo autor, encontramos nomes próprios que remetem a pessoas cuja
existência poderá ser comprovada factualmente (Buell Quain, Ruth Benedict, Heloísa
Alberto Torres) envolvidos em acontecimentos de uma busca misteriosa que tanto
poderá ser real quanto imaginária – a depender da credulidade do leitor que
acabará por ter que reconhecer que “neste pacto autobiográfico, somente ele
assinou o contrato; o narrador, omisso, se esquivou e o trato foi desfeito”.
Se Sérgio Sant’Anna e Bernardo de Carvalho lançam
contínua e conscientemente dúvidas sobre a coincidência entre as opiniões e
vivências de seus narradores homônimos e as suas próprias, Marcelo Mirisola
parece pretender, segundo a pesquisa de Pedro Galas, identificar-se
inteiramente com a persona construída
em sua ficção. Mirisola esforça-se por criar uma coerência entre todos os seus
narradores – cínicos, críticos do politicamente correto, pretensamente
viscerais – e a sua figura pública de autor que se expõe em diversas outras
mídias. O autor Mirisola seria, então, um performer,
personagem de si mesmo – e contraditoriamente é essa insistência em ser sempre
e sistematicamente “autêntico”, dentro e fora dos livros, que nos faz duvidar
da “veracidade” desse autor-personagem midiático.
A relação entre literatura e outras mídias é, aliás,
o que faz com que Galas inclua em sua discussão mais duas obras: Chove sobre minha infância e O filho eterno, de Miguel Sanches Neto e
Cristóvão Tezza, respectivamente. A extensa atividade pública de autocomentário
dos dois autores – em uma dinâmica cultural focada no entretenimento e no
espetáculo da “vida real” que quase os obriga a isso – leva o crítico a
questionar a resistência dos dois autores em assumirem-se publicamente como
escritores “autobiográficos”. Para Sanches Neto e Tezza, conclui Galas, assumir
o viés autobiográfico de seus romances diminuiria o caráter artificioso – e por
isso especial, difícil, “digno de mérito” – de suas obras de ficção: “O
escritor procura demarcar as fronteiras: o material que sustenta a obra é
autobiográfico; o engenho que o modela é ficcional”.
Esta profusão de escritas de si e narradores em
primeira pessoa na literatura contemporânea brasileira está associada, segundo
afirma Galas no trabalho que brevemente apresento aqui, a uma intenção de
reorganização de uma identidade coerente a partir do discurso. Extrapolando as
fronteiras da ficção, na era do “culto da personalidade”, os escritores veem-se
a si mesmos transformados em personagens de uma indústria de entretenimento que
os transforma em celebridades a serem vistas em festas literárias e em gurus
que tudo revelam em repetitivas entrevistas.
É nas fissuras destas contradições do nosso tempo que,
por um lado, evidencia o caráter fragmentário, múltiplo e descontinuado do eu,
e, por outro – e talvez por isso mesmo – tudo faz para construir narrativas
sólidas, coerentes e críveis de personalidades da “vida real”, que autor e
leitor se movem e se cortejam, ora cúmplices, ora desconfiados, mas talvez
sempre nos domínios da ficção.
Confira o conteúdo completo da dissertação de Pedro
Galas, Trato desfeito: o revés autobiográfico na literaturacontemporânea brasileira (2011,
Universidade de Brasília) no novo site do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea.
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