Michel Yakini
Imagem: Basquiat
Um dos principais questionamentos que recebo quando estou nos bastidores de atividades literárias fora das periferias de São Paulo é sobre a qualidade textual dos autores/as da chamada Literatura Periférica. Os burburinhos que rondam as academias e os espaços de arte colocam em cheque essa literatura, e, em muitos casos, o que se vê é que a distância fala daquilo que pouco conhece, mas teima em jogar óleo quente por cima.
A dificuldade no acesso às publicações faz com que as pesquisas e críticas existentes sobre livros da Literatura Periférica sejam restritas aos poucos autores publicados em editoras de grande porte (cerca de vinte livros de ficção e nove autores: Ferréz, Luiz Alberto Mendes, Sergio Vaz, Alessandro Buzo, Sacolinha, Allan da Rosa, Dinha, GOG e Rodrigo Ciríaco), enquanto centenas de livros independentes são lançados nos saraus das quebradas e vendidos nos eventos culturais, feiras, palestras, shows, internet, na livraria Suburbano Convicto, e no mangueio diário de cada autor. E mesmo com alguns títulos em grande circulação, com uma antologia organizada no exterior e a participação, nacional e internacional, de alguns autores/as em atividades literárias, os livros dificilmente chegam nas mãos de quem está fora do circuito dos saraus.
Esse contexto dificulta a consolidação de novos autores/as no mercado editorial brasileiro, o surgimento de pesquisas acadêmicas que abordem esse fazer literário, a ampliação do perfil autoral e de uma fortuna crítica que valorize e dialogue com essa produção.
A partir da pesquisa da antropóloga Érica Peçanha do Nascimento, em Vozes marginais na literatura, podemos considerar que a primeira divulgação ampla dessa produção foi a edição especial da revista Caros Amigos: Literatura Marginal (2001). Mas de lá pra cá muitas outras publicações surgiram e são divulgadas nos saraus. Os pioneiros desse segmento são o Sarau da Cooperifa e o Sarau do Binho – inaugurados em 2001 e 2004, respectivamente –, que motivaram novos grupos e coletividades a criarem encontros nos arrabaldes da cidade, de onde saíram diversas publicações (antologias e autorais) e a projeção de carreiras literárias, ampliando o interesse nessa produção.
No entanto, mesmo com toda efervescência editorial e da autoria independente, os livros estão em segundo plano quando se trata de estudos, matérias, reportagens, eventos e outros registros que abordem a Literatura Periférica. Uma justificativa possível é o fato de que muitos desses autores/as estão na linha de frente da organização de algum sarau – o que faz com que as abordagens sobre sua ação cultural sejam predominantes em relação ao seu fazer literário.
É importante lembrar que os saraus literários das periferias de São Paulo surgem, majoritariamente, como um encontro comunitário, de incentivo à leitura e à criação poética, e não como clubes de escritores, que na premissa se identificam como tais. Nesse contexto, os poetas e os escritores dos saraus emergem do anonimato e da invisibilidade e se mantêm pelo encorajamento. A palavra poeta é uma forma de tratamento dada a quem recita no sarau, mas que não necessariamente escreve poesia.
A prática literária contínua de pessoas anônimas nos saraus revela potenciais escritores. Na maioria dos casos, esses poetas publicam em uma antologia e quando têm maior incentivo acabam por organizar um livro autoral. Entre esses, há uma minoria que busca se consolidar na carreira, alguns por produzirem há mais tempo, outros por se identificarem com o fazer literário, e além da participação na récita, vão amadurecendo esteticamente, passam a acumular obras autorais e a escrever em outros gêneros, pra além da poesia.
A qualidade literária dos textos da Literatura Periférica, mesmo quando enaltecida, é pouco veiculada no circuito comercial, pois essa literatura não corresponde ao perfil predominante de autores/as, temas, gêneros, personagens e espaços narrativos, apresentados na maioria das obras que obtêm destaque e investimento por parte das editoras de grande porte, como apontam as pesquisas de Regina Dalcastagnè. Mas há ainda um outro problema. A premissa de que na literatura o que importa é o texto fortalece os argumentos de fragilidade dessa produção, desconhecendo que ela, embora tenha a escrita como fundamento, assume também outras formas estéticas e de comunicação que extrapolam a solidão e o silêncio que os apreciadores e estudiosos da literatura tanto prezam.
Como em qualquer contexto, a quantidade de obras publicadas na Literatura Periférica não garante sua qualidade, mas supor que essa produção é inferior ou menor por não corresponder às expectativas da crítica tradicional, ou por não ocupar as estantes-jabás das grandes livrarias, cria uma dicotomia rala do que é bom ou ruim na literatura brasileira contemporânea sem qualquer aprofundamento teórico.
De fato, os manifestos publicados em torno dessa produção, como: Terrorismo literário, de Ferréz, que saiu pela primeira vez na Caros Amigos-Literatura Marginal Ato I, em 2001; o Manifesto da Antropofagia Periférica, escrito por Sérgio Vaz pro lançamento da Semana de Arte Moderna da Periferia, em 2007; o texto A elite treme, do Sarau da Brasa, publicado em sua primeira antologia, em 2009; e o Manifesto da literatura divergente, escrito por Nélson Maca pro lançamento do I Encontro de Literatura Divergente, em 2012, propõem muito mais um embate social do que um rompimento estético em relação a outras vertentes literárias. Mas não é por não anunciarem uma nova estética que as letras que emergem das periferias de São Paulo deixam de ser expressões peculiares na literatura brasileira contemporânea.
A poesia é o gênero mais veiculado entre os autores da periferia de São Paulo, até por conta da prática dos saraus. A poesia falada é a coluna de todo encontro, muito pela influência histórica do rap (ritmo e poesia), do samba, da capoeira, das batalhas de improviso, da embolada, dos contadores/as de causo, das cantigas de terreiro. Por isso, quero apresentar uma breve análise de dois autores, Akins Kinte e Raquel Almeida, que são ligados à Literatura Periférica, organizadores de sarau e que se identificam também com o movimento de Literatura Negra – publicam e colaboram com a série Cadernos Negros, editada pelo Quilomhoje Literatura.
Akins Kinte, 31 anos, é o nome artístico de Fábio Monteiro Pereira, poeta e cineasta, organizador do Sarau no Kintal, fundado em 2013, que acontece mensalmente na zona norte de São Paulo no quintal de sua família. Kinte é coautor do livro Punga (Edições Toró, 2007), lançado em parceria com Elizandra Souza, autor de Incorporos: nuances de libido (Ciclo Contínuo Editorial, 2011, publicado em parceria com Nina Silva) e campeão do 1º Festival de Poesia da cidade de São Paulo (2014), um concurso voltado pra performance poética.
A poesia de Akins Kinte é um bom exemplo pra apresentar um tipo de eu-lírico muito frequente nos saraus, que não fala pra si só, mas interage com a sua roda, com a coletividade, fator importante de sua legitimação. Mesmo na página, sua poesia deixa explícita a marcação oralizada do texto, como no poema “Sintonia”, do livro Punga:
Osso funk
Ai das católicas cruzes
Quem amaldiçoada alma no passado
hoje brilha
sob as luzes
Baila São Paulo ou Harlem
Corpos pretos em sintonia
Tamborilando corações (…)
No verso inicial há uma junção, uma sugestão de dança agarradinha, entre som e sentido, onde osso é vibração sonora que se incorpora no esqueleto – ouço e osso é uma fusão poética, que opera na rememoração das noites do baile, do famoso Sintonia de São Paulo. As católicas cruzes são indigestas, por representar o contraponto da liberdade corporal que o baile permite. No final do poema o baile é recriado no ritmo das palavras, sugerindo música por meio da aliteração:
Osso funk
porque soul sol na noite
Se São Paulo sintonia
Baila entre os bailes
Rumores de amores
Porque soul não só
Sim ser nós sempre
Soul! Sintonia no íntimo
De nós mesmos.
pro kl jay
Oferecida pro kl jay, do grupo de rap Racionais Mc´s e Dj residente do baile Sintonia, a poesia chama pra dançar, pro par, pra roda, diz em voz alta, exalta o encontro, o baile, lugar de gente preta, em São Paulo ou no Harlem. Por prezar uma literatura de periferia com identidade negra, os valores culturais da cosmovisão africana – como a circularidade (estrutura do baile), o comunitarismo (encontro) e a tradição ancestral (celebração com música), além da relação entre palavra/corpo e oralidade/escrita sem enquadramentos rígidos – estão presentes na poética de Kinte. Essa proposta também está no poema “Brasilândia – 8542”, do mesmo livro:
No busão das seis
as nega véia
anseio de chegá às oito
subi morro descê favela
não perdê a novela
(...)
tiram força não sei donde
pra suportá
no horário nobre o terror psicológico
e depois madrugas aflitas
de maridos alcoólicos.
Aqui, o verso e o verbo livre são tomados pela fala das ruas (neste caso da Vila Brasilândia da zona norte de São Paulo, na tradicional linha de ônibus Brasilândia – 8542), e Kinte, mais uma vez, conclama um espaço de pertencimento (antes o baile, agora o bairro), espaço de singularidade e de circulação comunitária.
Neste exemplo, temos a influência das línguas de matriz banto e iorubá no português brasileiro escrito por Kinte. Ao escrever as nega véia, como em as folha ou as menina, o autor segue o padrão dos prefixos das línguas bantos, que marcam o plural somente no primeiro elemento (as/os). Já ao suprimir as consoantes finais das palavras, como em chegá, perdê e suportá, segue a estrutura silábica banto e iorubá, que não apresentam terminação com consoantes.
Outra autora que firma sua literatura na identidade negra, feminina e periférica, é a poeta Raquel Almeida, 28 anos, organizadora do Sarau Elo da Corrente, que acontece desde 2007 no bairro de Pirituba, coautora do livro Duas gerações: sobrevivendo no gueto (Elo da Corrente Edições, 2008) juntamente com Soninha M.A.Z.O e autora de Sagrado sopro: do solo que renasço (Elo da Corrente Edições, 2014).
Em
sua segunda obra, Raquel apresenta textos que se religam à sua ancestralidade
feminina e africana, como no poema “Preciso
beber da fonte ancestral”, dedicado à sua avó Adélia:
Preciso beber da fonte ancestral
Comer feijão com farinha
Amassado entre os dedos
Peixe com coco e dendê
Preciso beber da sua fonte
Tomar banho de manjericão
Me acolher no teu colho pedindo proteção
Preciso me alimentar dessa fonte
Ouvir tuas histórias
Aqui, mais uma vez, o ritmo do texto é marcado por elementos da cosmovisão africana. Na ancestralidade e na oralidade evocada por Raquel Almeida, onde a memória do alimento feito pela avó (fonte ancestral) e o pedido pra ouvir tuas histórias cruzam passado e presente, em que a lembrança e a precisão da fonte são materializadas na crença da energia presente nos alimentos, nas ervas, no corpo e nas palavras que respeitam as tradições, a matrilinearidade, e que se comprometem em semeá-las:
Transmiti-las em sonho e orgulho
Me embalar em tuas lembranças
Colher frutos futuros
Preciso beber dessa fonte materna de inspiração
Prudência
Fazer reverência
És ave que escuta os ancestrais e a descendência
Preciso beber de tua fonte...
Já no poema “Sagrado sopro” Raquel traz a referência sagrada da cultura iorubá, ao exaltar Oyá, também conhecida como Iansã, divindade cultuada na religião do candomblé.
Colhi a mais bela palavra
O mais belo canto
Pra oferecer aos céus
Pra oferecer ao encanto
Deixei me envolver
Nessa brisa, nesse manto
(…)
Oyá
Envolve sobre mim sua tempestade
Pois tempestiva sou
Me acalenta em serenos sonhos de criança
Me embala nessa dança
Que não cessa e não cansa.
Desde o título da poesia, a autora reverencia Oyá, anunciando um dos principais regimentos dessa divindade (o sopro), depois retoma o signo nas palavras brisa e tempestade. Os versos iniciam fazendo uma oferenda (ato comum no candomblé), porém a poeta lhe dedica uma oferenda de palavras, sua matéria-prima. Ao longo do texto, o vento é retomado e provoca o movimento que embala nessa dança, que sugere o bailado no ritmo da rima. Por fim, o elemento sagrado se sobrepõe pela aliteração e sugere uma aproximação entre som e sentido em sobre; sua; sou; sereno; sonho; criança; nessa; dança; cessa; cansa. Vale ressaltar que, além de apontar seta pra mitologia iorubá, a autora também exalta e demarca novamente um espaço pra ancestralidade feminina em sua poesia.
Um detalhe importante nas obras analisadas é que tanto Punga quanto Sagrado sopro apresentam um apelo visual, com ilustrações internas dos artistas Coyote e Carolzinha Teixeira, respectivamente. Trabalho que complementa a identidade e a proposta estética dos autores, mas que não interfere e tampouco anula a força da poesia de ambos os livros.
Como se pode notar, a obra de Akins Kinte e Raquel Almeida, produzida, recitada e publicada nos saraus das periferias de São Paulo, não está ligada às tradições da poesia clássica que a teoria literária tem como referência. Em ambos os casos, podemos propor uma leitura pra analisar métricas, rimas, aliterações e metáforas, porém é fundamental considerar a perspectiva identitária de cada autoria, pois esses poemas dizem pra ecoar, pra reverenciar o que veio antes, provocar mais circularidade, menos divisórias e tornar visível, artisticamente, o verbo que historicamente foi negado.
A novidade na poesia e nas trajetórias de Kinte e Raquel Almeida não está na exaltação do que é considerado popular, pois desde o surgimento do Modernismo, em 1922, os intelectuais brasileiros buscam estratégias pra valorizar e assumir a voz do povo em suas obras, mas em sua possibilidade de dizer de si e de seu povo. Afinal, como lembra Mariana Santos de Assis na dissertação A poesia das ruas, nas ruas e estantes: eventos de letramento e de multiletramento nos saraus literários da periferia de São Paulo: “apesar desse contexto de aparente valorização dos saberes e dizeres do povo, esse povo permaneceu, por muito tempo, apenas como objeto ou tema da literatura. Isto é, suas leituras de si, suas propostas e críticas ao sistema, suas perspectivas de realidade, seus projetos literários, independentes ou coletivos, não conseguiram ocupar lugares privilegiados na crítica e na história”. Que o digam os/as escritores/as negros/as como Solano Trindade, Luiz Gama, Oswaldo de Camargo, Maria Firmina dos Reis, Carolina de Jesus, Geni Guimarães, entre tantos/as outros/as.
Por isso, a maior contribuição que a obra de Akins Kinte e Raquel Almeida pode proporcionar é a experiência singular de artistas que ampliam as referências estéticas e de representação literária, num diálogo contínuo com suas identidades e fazeres. E cada vez que a literatura desses jovens autores é banhada no óleo quente da distância, mantém-se essa poética à margem e invisível, à mercê dos mesmos preceitos e preconceitos que prevalecem na história da literatura brasileira.
Michel Yakini
Imagem: Basquiat |
Um dos principais questionamentos que recebo quando estou nos bastidores de atividades literárias fora das periferias de São Paulo é sobre a qualidade textual dos autores/as da chamada Literatura Periférica. Os burburinhos que rondam as academias e os espaços de arte colocam em cheque essa literatura, e, em muitos casos, o que se vê é que a distância fala daquilo que pouco conhece, mas teima em jogar óleo quente por cima.
A dificuldade no acesso às publicações faz com que as pesquisas e críticas existentes sobre livros da Literatura Periférica sejam restritas aos poucos autores publicados em editoras de grande porte (cerca de vinte livros de ficção e nove autores: Ferréz, Luiz Alberto Mendes, Sergio Vaz, Alessandro Buzo, Sacolinha, Allan da Rosa, Dinha, GOG e Rodrigo Ciríaco), enquanto centenas de livros independentes são lançados nos saraus das quebradas e vendidos nos eventos culturais, feiras, palestras, shows, internet, na livraria Suburbano Convicto, e no mangueio diário de cada autor. E mesmo com alguns títulos em grande circulação, com uma antologia organizada no exterior e a participação, nacional e internacional, de alguns autores/as em atividades literárias, os livros dificilmente chegam nas mãos de quem está fora do circuito dos saraus.
Esse contexto dificulta a consolidação de novos autores/as no mercado editorial brasileiro, o surgimento de pesquisas acadêmicas que abordem esse fazer literário, a ampliação do perfil autoral e de uma fortuna crítica que valorize e dialogue com essa produção.
A partir da pesquisa da antropóloga Érica Peçanha do Nascimento, em Vozes marginais na literatura, podemos considerar que a primeira divulgação ampla dessa produção foi a edição especial da revista Caros Amigos: Literatura Marginal (2001). Mas de lá pra cá muitas outras publicações surgiram e são divulgadas nos saraus. Os pioneiros desse segmento são o Sarau da Cooperifa e o Sarau do Binho – inaugurados em 2001 e 2004, respectivamente –, que motivaram novos grupos e coletividades a criarem encontros nos arrabaldes da cidade, de onde saíram diversas publicações (antologias e autorais) e a projeção de carreiras literárias, ampliando o interesse nessa produção.
No entanto, mesmo com toda efervescência editorial e da autoria independente, os livros estão em segundo plano quando se trata de estudos, matérias, reportagens, eventos e outros registros que abordem a Literatura Periférica. Uma justificativa possível é o fato de que muitos desses autores/as estão na linha de frente da organização de algum sarau – o que faz com que as abordagens sobre sua ação cultural sejam predominantes em relação ao seu fazer literário.
É importante lembrar que os saraus literários das periferias de São Paulo surgem, majoritariamente, como um encontro comunitário, de incentivo à leitura e à criação poética, e não como clubes de escritores, que na premissa se identificam como tais. Nesse contexto, os poetas e os escritores dos saraus emergem do anonimato e da invisibilidade e se mantêm pelo encorajamento. A palavra poeta é uma forma de tratamento dada a quem recita no sarau, mas que não necessariamente escreve poesia.
A prática literária contínua de pessoas anônimas nos saraus revela potenciais escritores. Na maioria dos casos, esses poetas publicam em uma antologia e quando têm maior incentivo acabam por organizar um livro autoral. Entre esses, há uma minoria que busca se consolidar na carreira, alguns por produzirem há mais tempo, outros por se identificarem com o fazer literário, e além da participação na récita, vão amadurecendo esteticamente, passam a acumular obras autorais e a escrever em outros gêneros, pra além da poesia.
A qualidade literária dos textos da Literatura Periférica, mesmo quando enaltecida, é pouco veiculada no circuito comercial, pois essa literatura não corresponde ao perfil predominante de autores/as, temas, gêneros, personagens e espaços narrativos, apresentados na maioria das obras que obtêm destaque e investimento por parte das editoras de grande porte, como apontam as pesquisas de Regina Dalcastagnè. Mas há ainda um outro problema. A premissa de que na literatura o que importa é o texto fortalece os argumentos de fragilidade dessa produção, desconhecendo que ela, embora tenha a escrita como fundamento, assume também outras formas estéticas e de comunicação que extrapolam a solidão e o silêncio que os apreciadores e estudiosos da literatura tanto prezam.
Como em qualquer contexto, a quantidade de obras publicadas na Literatura Periférica não garante sua qualidade, mas supor que essa produção é inferior ou menor por não corresponder às expectativas da crítica tradicional, ou por não ocupar as estantes-jabás das grandes livrarias, cria uma dicotomia rala do que é bom ou ruim na literatura brasileira contemporânea sem qualquer aprofundamento teórico.
De fato, os manifestos publicados em torno dessa produção, como: Terrorismo literário, de Ferréz, que saiu pela primeira vez na Caros Amigos-Literatura Marginal Ato I, em 2001; o Manifesto da Antropofagia Periférica, escrito por Sérgio Vaz pro lançamento da Semana de Arte Moderna da Periferia, em 2007; o texto A elite treme, do Sarau da Brasa, publicado em sua primeira antologia, em 2009; e o Manifesto da literatura divergente, escrito por Nélson Maca pro lançamento do I Encontro de Literatura Divergente, em 2012, propõem muito mais um embate social do que um rompimento estético em relação a outras vertentes literárias. Mas não é por não anunciarem uma nova estética que as letras que emergem das periferias de São Paulo deixam de ser expressões peculiares na literatura brasileira contemporânea.
A poesia é o gênero mais veiculado entre os autores da periferia de São Paulo, até por conta da prática dos saraus. A poesia falada é a coluna de todo encontro, muito pela influência histórica do rap (ritmo e poesia), do samba, da capoeira, das batalhas de improviso, da embolada, dos contadores/as de causo, das cantigas de terreiro. Por isso, quero apresentar uma breve análise de dois autores, Akins Kinte e Raquel Almeida, que são ligados à Literatura Periférica, organizadores de sarau e que se identificam também com o movimento de Literatura Negra – publicam e colaboram com a série Cadernos Negros, editada pelo Quilomhoje Literatura.
Akins Kinte, 31 anos, é o nome artístico de Fábio Monteiro Pereira, poeta e cineasta, organizador do Sarau no Kintal, fundado em 2013, que acontece mensalmente na zona norte de São Paulo no quintal de sua família. Kinte é coautor do livro Punga (Edições Toró, 2007), lançado em parceria com Elizandra Souza, autor de Incorporos: nuances de libido (Ciclo Contínuo Editorial, 2011, publicado em parceria com Nina Silva) e campeão do 1º Festival de Poesia da cidade de São Paulo (2014), um concurso voltado pra performance poética.
A poesia de Akins Kinte é um bom exemplo pra apresentar um tipo de eu-lírico muito frequente nos saraus, que não fala pra si só, mas interage com a sua roda, com a coletividade, fator importante de sua legitimação. Mesmo na página, sua poesia deixa explícita a marcação oralizada do texto, como no poema “Sintonia”, do livro Punga:
Osso funk
Ai das católicas cruzes
Quem amaldiçoada alma no passado
hoje brilha
sob as luzes
Baila São Paulo ou Harlem
Corpos pretos em sintonia
Tamborilando corações (…)
No verso inicial há uma junção, uma sugestão de dança agarradinha, entre som e sentido, onde osso é vibração sonora que se incorpora no esqueleto – ouço e osso é uma fusão poética, que opera na rememoração das noites do baile, do famoso Sintonia de São Paulo. As católicas cruzes são indigestas, por representar o contraponto da liberdade corporal que o baile permite. No final do poema o baile é recriado no ritmo das palavras, sugerindo música por meio da aliteração:
Osso funk
porque soul sol na noite
Se São Paulo sintonia
Baila entre os bailes
Rumores de amores
Porque soul não só
Sim ser nós sempre
Soul! Sintonia no íntimo
De nós mesmos.
porque soul sol na noite
Se São Paulo sintonia
Baila entre os bailes
Rumores de amores
Porque soul não só
Sim ser nós sempre
Soul! Sintonia no íntimo
De nós mesmos.
pro kl jay
Oferecida pro kl jay, do grupo de rap Racionais Mc´s e Dj residente do baile Sintonia, a poesia chama pra dançar, pro par, pra roda, diz em voz alta, exalta o encontro, o baile, lugar de gente preta, em São Paulo ou no Harlem. Por prezar uma literatura de periferia com identidade negra, os valores culturais da cosmovisão africana – como a circularidade (estrutura do baile), o comunitarismo (encontro) e a tradição ancestral (celebração com música), além da relação entre palavra/corpo e oralidade/escrita sem enquadramentos rígidos – estão presentes na poética de Kinte. Essa proposta também está no poema “Brasilândia – 8542”, do mesmo livro:
No busão das seis
as nega véia
anseio de chegá às oito
subi morro descê favela
não perdê a novela
(...)
tiram força não sei donde
pra suportá
no horário nobre o terror psicológico
e depois madrugas aflitas
de maridos alcoólicos.
Aqui, o verso e o verbo livre são tomados pela fala das ruas (neste caso da Vila Brasilândia da zona norte de São Paulo, na tradicional linha de ônibus Brasilândia – 8542), e Kinte, mais uma vez, conclama um espaço de pertencimento (antes o baile, agora o bairro), espaço de singularidade e de circulação comunitária.
Neste exemplo, temos a influência das línguas de matriz banto e iorubá no português brasileiro escrito por Kinte. Ao escrever as nega véia, como em as folha ou as menina, o autor segue o padrão dos prefixos das línguas bantos, que marcam o plural somente no primeiro elemento (as/os). Já ao suprimir as consoantes finais das palavras, como em chegá, perdê e suportá, segue a estrutura silábica banto e iorubá, que não apresentam terminação com consoantes.
Outra autora que firma sua literatura na identidade negra, feminina e periférica, é a poeta Raquel Almeida, 28 anos, organizadora do Sarau Elo da Corrente, que acontece desde 2007 no bairro de Pirituba, coautora do livro Duas gerações: sobrevivendo no gueto (Elo da Corrente Edições, 2008) juntamente com Soninha M.A.Z.O e autora de Sagrado sopro: do solo que renasço (Elo da Corrente Edições, 2014).
Em
sua segunda obra, Raquel apresenta textos que se religam à sua ancestralidade
feminina e africana, como no poema “Preciso
beber da fonte ancestral”, dedicado à sua avó Adélia:
Preciso beber da fonte ancestral
Comer feijão com farinha
Amassado entre os dedos
Peixe com coco e dendê
Preciso beber da sua fonte
Tomar banho de manjericão
Me acolher no teu colho pedindo proteção
Preciso me alimentar dessa fonte
Ouvir tuas histórias
Aqui, mais uma vez, o ritmo do texto é marcado por elementos da cosmovisão africana. Na ancestralidade e na oralidade evocada por Raquel Almeida, onde a memória do alimento feito pela avó (fonte ancestral) e o pedido pra ouvir tuas histórias cruzam passado e presente, em que a lembrança e a precisão da fonte são materializadas na crença da energia presente nos alimentos, nas ervas, no corpo e nas palavras que respeitam as tradições, a matrilinearidade, e que se comprometem em semeá-las:
Transmiti-las em sonho e orgulho
Me embalar em tuas lembranças
Colher frutos futuros
Preciso beber dessa fonte materna de inspiração
Prudência
Fazer reverência
És ave que escuta os ancestrais e a descendência
Preciso beber de tua fonte...
Já no poema “Sagrado sopro” Raquel traz a referência sagrada da cultura iorubá, ao exaltar Oyá, também conhecida como Iansã, divindade cultuada na religião do candomblé.
Colhi a mais bela palavra
O mais belo canto
Pra oferecer aos céus
Pra oferecer ao encanto
Deixei me envolver
Nessa brisa, nesse manto
(…)
Oyá
Envolve sobre mim sua tempestade
Pois tempestiva sou
Me acalenta em serenos sonhos de criança
Me embala nessa dança
Que não cessa e não cansa.
Desde o título da poesia, a autora reverencia Oyá, anunciando um dos principais regimentos dessa divindade (o sopro), depois retoma o signo nas palavras brisa e tempestade. Os versos iniciam fazendo uma oferenda (ato comum no candomblé), porém a poeta lhe dedica uma oferenda de palavras, sua matéria-prima. Ao longo do texto, o vento é retomado e provoca o movimento que embala nessa dança, que sugere o bailado no ritmo da rima. Por fim, o elemento sagrado se sobrepõe pela aliteração e sugere uma aproximação entre som e sentido em sobre; sua; sou; sereno; sonho; criança; nessa; dança; cessa; cansa. Vale ressaltar que, além de apontar seta pra mitologia iorubá, a autora também exalta e demarca novamente um espaço pra ancestralidade feminina em sua poesia.
Um detalhe importante nas obras analisadas é que tanto Punga quanto Sagrado sopro apresentam um apelo visual, com ilustrações internas dos artistas Coyote e Carolzinha Teixeira, respectivamente. Trabalho que complementa a identidade e a proposta estética dos autores, mas que não interfere e tampouco anula a força da poesia de ambos os livros.
Como se pode notar, a obra de Akins Kinte e Raquel Almeida, produzida, recitada e publicada nos saraus das periferias de São Paulo, não está ligada às tradições da poesia clássica que a teoria literária tem como referência. Em ambos os casos, podemos propor uma leitura pra analisar métricas, rimas, aliterações e metáforas, porém é fundamental considerar a perspectiva identitária de cada autoria, pois esses poemas dizem pra ecoar, pra reverenciar o que veio antes, provocar mais circularidade, menos divisórias e tornar visível, artisticamente, o verbo que historicamente foi negado.
A novidade na poesia e nas trajetórias de Kinte e Raquel Almeida não está na exaltação do que é considerado popular, pois desde o surgimento do Modernismo, em 1922, os intelectuais brasileiros buscam estratégias pra valorizar e assumir a voz do povo em suas obras, mas em sua possibilidade de dizer de si e de seu povo. Afinal, como lembra Mariana Santos de Assis na dissertação A poesia das ruas, nas ruas e estantes: eventos de letramento e de multiletramento nos saraus literários da periferia de São Paulo: “apesar desse contexto de aparente valorização dos saberes e dizeres do povo, esse povo permaneceu, por muito tempo, apenas como objeto ou tema da literatura. Isto é, suas leituras de si, suas propostas e críticas ao sistema, suas perspectivas de realidade, seus projetos literários, independentes ou coletivos, não conseguiram ocupar lugares privilegiados na crítica e na história”. Que o digam os/as escritores/as negros/as como Solano Trindade, Luiz Gama, Oswaldo de Camargo, Maria Firmina dos Reis, Carolina de Jesus, Geni Guimarães, entre tantos/as outros/as.
Por isso, a maior contribuição que a obra de Akins Kinte e Raquel Almeida pode proporcionar é a experiência singular de artistas que ampliam as referências estéticas e de representação literária, num diálogo contínuo com suas identidades e fazeres. E cada vez que a literatura desses jovens autores é banhada no óleo quente da distância, mantém-se essa poética à margem e invisível, à mercê dos mesmos preceitos e preconceitos que prevalecem na história da literatura brasileira.
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