Laeticia Jensen Eble
As I check off my list of
privileges, I won’t forget the biggest of
them all: my passport.
Tim Harford, economista
Phillip Estlund, Adventures in Interior Design 1, 2007 |
As pesquisas sobre
migração, em geral, concentram sua atenção sobre agrupamentos étnicos de
europeus, latino-americanos e asiáticos. A diáspora negra, ligada à escravidão
– que no Brasil se estendeu desde o período colonial até pouco antes do final
do Império –, está, por sua vez, vinculada a um processo de encarceramento e
não de migração. Na medida em que são arrancados de suas sociedades de origem,
ao serem trazidos para o Brasil como simples mercadorias, pode-se dizer que a
exclusão (entendida nos termos de Elimar Pinheiro do Nascimento em “Dos
excluídos necessários aos excluídos desnecessários”) dos negros escravizados
ocorre como resultado da ruptura de três vínculos: i) com os valores e representações sociais próprios a sua sociedade;
ii) com os laços e relações de afeto
e parentesco; e iii) com a capacidade
de comunicação com o exterior. Vínculos perdidos que, passados os séculos,
faz-se necessário recuperar.
Após a abolição, e diante da quase
total ausência de providências por parte do Estado, na atualidade, a exclusão
dos negros, construída histórica e geograficamente, perdura em novas roupagens,
com: i) a não integração ao mundo do
trabalho por supostamente não terem as qualificações requeridas; ii) o não reconhecimento ou negação de
direitos, visto que são representados de forma discriminatória, como um perigo
para a sociedade; e iii) a ruptura de
vínculos societários, na medida em que são gradativamente afastados dos espaços
legitimados de representação.
De acordo com Claude Raffestin,
em Por uma geografia do poder, por
trás da organização política dos indivíduos supõe-se que existe sempre um poder
habilitado a coordenar os que ocupam um determinado espaço. Ou seja, território
e poder são duas noções indissociáveis, de tal modo que o território compreende
“um espaço definido e delimitado por
e a partir de relações de poder”.
Mais do que isso, o espaço pode ser utilizado como produto e instrumento do
poder. Nesse sentido, para Loïc Wacquant, o espaço também pode configurar-se
num processo de confinamento, de tal forma que categorias e atividades sociais
particulares são encurraladas, limitadas e isoladas a um espaço físico e social
restrito.
No caso da população
periférica, esse confinamento tem sido imposto, na medida em que as pessoas são
obrigadas, de forma hostil e por pressões externas, sociais, políticas e
étnicas, a circunscrever suas atividades e movimentos, bem como limitar sua
residência a uma localização específica, configurando-se num verdadeiro gueto.
É o que lemos nas palavras
de Michel Yakini, em seu poema “Mapas de asfalto”, publicado em seu livro Acorde um verso (Edição do Autor, 2012).
No início, o poema dedica-se a denunciar a condição em que se vive na
periferia:
há tempos que o céu
das beiradas
acorda cinzento
as pedras ficam intactas
endurecendo vidas
pelas esquinas
a esperança passa
como ventania
pelas ladeiras
e o asfalto grita
denunciando
mentiras vencidas
são heranças de uma
cidade açoitada
em silêncio
nos mocambos de hoje
germina a resistência
do amanhã
em cada quintal
um trançado
autoestima se firma
no olhar da mulecada
vejo uma trilhas
sedenta de história
é batuque,
rodeando as intenções,
cravando horizontes
grafitando nos
muros, poemas
da nossa virada
declamando ação,
sacudindo vozes
e na espreita das ruas
ecoam as rimas
num versar ritmado de
redenção!
De acordo com Wacquant, a
estruturação de um gueto se dá em torno de quatro elementos essenciais: i) o estigma, segundo o qual uma
população é marcada e desvalorizada em relação à categoria dominante; ii) a coação, em que a concentração
populacional se dá como resultado de uma imposição externa; iii) a atribuição espacial, ou seja,
quando a população estigmatizada é forçada a se estabelecer numa área
específica; e iv) o paralelismo
institucional, na medida em que a população é pressionada a residir unicamente
em determinados bairros, desenvolve-se neles uma rede de instituições em
substituição às da sociedade pela qual foi rejeitada.
Surgem, então, no seio
desse espaço periférico e em prol das necessidades coletivas, organizações
culturais e econômicas alternativas, bem como práticas de solidariedade
interna, ao passo que novas identidades são forjadas, visando superar a
exclusão e proteger-se das representações negativas do resto da sociedade. Assim, o gueto acaba se tornando uma faca de dois gumes. Se
por um lado, constitui-se em instrumento de dominação, por outro, viabiliza a
coesão e a auto-organização daqueles indivíduos segregados, que se mobilizam e
alavancam um poder de resistência que converge para a implosão do próprio
gueto. Nesse sentido, o gueto deixa de ser gueto e passa a ser quilombo.
Em resposta à polarização da cidade
entre a casa grande e a senzala, o conceito do quilombo insurge em uma
perspectiva decolonial, ecoando nas produções literárias que emergem insufladas
por movimentos coletivos como o do hip-hop.
Não é por acaso que Zumbi dos Palmares é tantas vezes evocado como símbolo de
resistência e inspiração. Assim, ainda na continuação do poema de Michel
Yakini, podemos ver como, em lugar do sentimento de derrota, instala-se um
discurso de exaltação da resistência.
Assumindo que a reterritorialização
dos afro-descendentes nunca se deu de fato no Brasil, na medida em que nunca
lhes foi permitido recriar seus espaços socioculturais (sendo sempre
marginalizados e criminalizados), a força com que esses movimentos culturais
têm se estabelecido e os princípios estéticos e éticos que têm difundido, não
só por meio da literatura, leva a crer que, finalmente, esteja em processo uma
reterritorialização de fato, na medida em que esses atores trazem consigo o
potencial de afirmar e assumir novas posições enquanto sujeitos da história,
capazes de promover sua transformação. Essa nova reterritorialização envolve, por
um lado, uma reconexão com a África, como elo original que une essa população
diaspórica em torno da noção de pertencimento e resistência. De acordo com Roland Walter, em “Encruzilhadasafro-diaspóricas”, “com
base em e ao mesmo tempo distanciada da memória vivida, a memória imaginada
enquanto revisão tem sido uma das medidas mais importantes para recriar um self fragmentado e alienado na ficção
negra pan-americana”.
Por outro lado, esse processo de
reterritorialização implica também um distanciamento, visto que, imersos em
outra realidade, a identificação plena já não é mais possível e é preciso criar
novos laços comunitários em outras terras. Por isso que observamos ainda em
muitos dos textos produzidos pelos autores periféricos essa sensação de viver
em uma fronteira – entendida aqui não como barreira, mas como um entrelugar. É
assim que, no poema “Maputo – Moçambique”, do livro Águas da cabaça (Edição
do Autor, 2012), Elizandra Souza
pronuncia:
[...]
Que África é essa?
Que diz e não me diz...
Sentimentos vulcões no peito...
Lágrimas tsunamis na alma
Até onde vai minha fronteira
E se tenho fronteiras, que fronteiras eu sou?
No entanto, em outro poema da
autora, que considero emblemático em relação ao que venho dizendo, intitulado
“À nossa maneira”, o eu-lírico (que também se coloca como um nós-lírico, uma
coletividade negra, introduzida pelo possessivo “nossa”) se dirige a um Outro
africano para se explicar (seguem aqui apenas as primeiras estrofes):
Descobri que precisamos sim, à nossa maneira
aprender a aprender com a nossa história,
temos as peles negras, que não são tão negras
como as peles que aqui tens.
À nossa maneira
muitas vezes é o estranhamento em qualquer lugar
natural é tão ofensivo que estão cá a nos xingar
a massificação e o capitalismo conseguiram nos
cegar,
distâncias existem na nossa aproximação
À nossa maneira
também é o inverso, é nadarmos contra a correnteza
é descobrirmos algumas certezas na diáspora
sequelas violentas, tanto lá como cá
é um redemoinho que jogam poeiras no ar
À nossa maneira
é a busca de um jeito todo nosso de comportar,
é uma ginga que veio sim daqui, mas não é a mesma
Processo em transformação
somos o batuque que estamos a procurar
[...]
Nesse poema, ao mesmo tempo que o
eu-lírico reconhece suas raízes, ele enfatiza seu deslocamento. Ao afirmar que
as peles negras de cá já não são tão negras como as de lá, não está apenas
fazendo referência a uma possível miscigenação, mas também ressaltando que,
apesar da origem comum, a distância já não lhe permite mais se afirmar tão
africana quanto aquela, é como se uma certa pureza tivesse se perdido. Nesse
sentido também afirma que a ginga não é a mesma e que, nesse processo de
transformação, ainda está procurando o batuque que vai determinar o ritmo dessa
nova ginga. Note-se que esse mesmo batuque aparecia também no poema de Yakini.
É importante destacar a figura
simbólica e bastante recorrente do batuque e do tambor nesses poemas. O tambor
remete diretamente às religiões brasileiras de matriz africana. Nos rituais,
ele é o responsável por anular a distância entre o Brasil e a África,
permitindo aos negros reviver sua cultura e religião. O ritmo e a música
produzidos pelo batuque proporcionam um transe que, para os adeptos dessas
religiões, permite a comunhão daqueles que vivem aqui com os deuses do
continente africano.
Mas, além disso, para as religiões
afro-brasileiras, o atabaque em si é cultuado como divindade. Então, ao
anunciar “somos o batuque”, o poeta assume uma noção de filiação e vinculação a
esse sagrado, que ressoara para sempre dentro de si. Não se trata de encontrar
“outro batuque”, ou seja, não se trata de assumir uma outra cultura estranha
para si, pelo contrário, reconhecendo o batuque como parte de sua identidade,
oferece o entendimento de que, mesmo assumindo novas nuances, o tambor, a
origem, será sempre a mesma.
Ainda de acordo com Raffestin, “a
territorialidade se inscreve no quadro da produção, da troca e do consumo das
coisas”. Assim, para que a reterritorialização se efetive, será preciso, obviamente,
questionar os valores culturais e o poder instituídos nesse espaço a ser ocupado.
Na medida em que a exclusão dos negros se pauta pela negação e por uma visão
eurocêntrica, racista e elitista, esse movimento implica combater o
epistemicídio e reconhecer a filosofia e o conhecimento africanos como capazes
de constuir novas representações libertadoras. No que se refere ao nosso objeto,
vale lembrar as palavras de Roland Barthes, em Aula, quando afirma que a própria linguagem é opressiva e só se
pode sair dela trapaceando com a
língua, trapaceando a língua – uma
revolução que pode se dar exatamente pela literatura.
*Este texto foi apresentado
durante o V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea,
ocorrido entre os dias 13 e 15 de outubro de 2015, em Buenos Aires, Argentina.
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