24 de outubro de 2015

Reterritorialização em poemas da literatura marginal/periférica

Laeticia Jensen Eble



As I check off my list of privileges, I won’t forget the biggest of 
them all: my passport.
Tim Harford, economista

Phillip Estlund, Adventures in Interior Design 1, 2007

As pesquisas sobre migração, em geral, concentram sua atenção sobre agrupamentos étnicos de europeus, latino-americanos e asiáticos. A diáspora negra, ligada à escravidão – que no Brasil se estendeu desde o período colonial até pouco antes do final do Império –, está, por sua vez, vinculada a um processo de encarceramento e não de migração. Na medida em que são arrancados de suas sociedades de origem, ao serem trazidos para o Brasil como simples mercadorias, pode-se dizer que a exclusão (entendida nos termos de Elimar Pinheiro do Nascimento em “Dos excluídos necessários aos excluídos desnecessários”) dos negros escravizados ocorre como resultado da ruptura de três vínculos: i) com os valores e representações sociais próprios a sua sociedade; ii) com os laços e relações de afeto e parentesco; e iii) com a capacidade de comunicação com o exterior. Vínculos perdidos que, passados os séculos, faz-se necessário recuperar. 
Após a abolição, e diante da quase total ausência de providências por parte do Estado, na atualidade, a exclusão dos negros, construída histórica e geograficamente, perdura em novas roupagens, com: i) a não integração ao mundo do trabalho por supostamente não terem as qualificações requeridas; ii) o não reconhecimento ou negação de direitos, visto que são representados de forma discriminatória, como um perigo para a sociedade; e iii) a ruptura de vínculos societários, na medida em que são gradativamente afastados dos espaços legitimados de representação.
De acordo com Claude Raffestin, em Por uma geografia do poder, por trás da organização política dos indivíduos supõe-se que existe sempre um poder habilitado a coordenar os que ocupam um determinado espaço. Ou seja, território e poder são duas noções indissociáveis, de tal modo que o território compreende “um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder”. Mais do que isso, o espaço pode ser utilizado como produto e instrumento do poder. Nesse sentido, para Loïc Wacquant, o espaço também pode configurar-se num processo de confinamento, de tal forma que categorias e atividades sociais particulares são encurraladas, limitadas e isoladas a um espaço físico e social restrito.
No caso da população periférica, esse confinamento tem sido imposto, na medida em que as pessoas são obrigadas, de forma hostil e por pressões externas, sociais, políticas e étnicas, a circunscrever suas atividades e movimentos, bem como limitar sua residência a uma localização específica, configurando-se num verdadeiro gueto.
É o que lemos nas palavras de Michel Yakini, em seu poema “Mapas de asfalto”, publicado em seu livro Acorde um verso (Edição do Autor, 2012). No início, o poema dedica-se a denunciar a condição em que se vive na periferia:


há tempos que o céu
das beiradas
acorda cinzento

as pedras ficam intactas
endurecendo vidas
pelas esquinas

a esperança passa
como ventania
pelas ladeiras

e o asfalto grita
denunciando
mentiras vencidas

são heranças de uma
cidade açoitada
em silêncio

nos mocambos de hoje
germina a resistência
do amanhã

em cada quintal
um trançado
autoestima se firma

no olhar da mulecada
vejo uma trilhas
sedenta de história

é batuque,
rodeando as intenções,
cravando horizontes

grafitando nos
muros, poemas
da nossa virada

declamando ação,
sacudindo vozes

e na espreita das ruas
ecoam as rimas
num versar ritmado de
redenção!


De acordo com Wacquant, a estruturação de um gueto se dá em torno de quatro elementos essenciais: i) o estigma, segundo o qual uma população é marcada e desvalorizada em relação à categoria dominante; ii) a coação, em que a concentração populacional se dá como resultado de uma imposição externa; iii) a atribuição espacial, ou seja, quando a população estigmatizada é forçada a se estabelecer numa área específica; e iv) o paralelismo institucional, na medida em que a população é pressionada a residir unicamente em determinados bairros, desenvolve-se neles uma rede de instituições em substituição às da sociedade pela qual foi rejeitada.
Surgem, então, no seio desse espaço periférico e em prol das necessidades coletivas, organizações culturais e econômicas alternativas, bem como práticas de solidariedade interna, ao passo que novas identidades são forjadas, visando superar a exclusão e proteger-se das representações negativas do resto da sociedade. Assim, o gueto acaba se tornando uma faca de dois gumes. Se por um lado, constitui-se em instrumento de dominação, por outro, viabiliza a coesão e a auto-organização daqueles indivíduos segregados, que se mobilizam e alavancam um poder de resistência que converge para a implosão do próprio gueto. Nesse sentido, o gueto deixa de ser gueto e passa a ser quilombo.
Em resposta à polarização da cidade entre a casa grande e a senzala, o conceito do quilombo insurge em uma perspectiva decolonial, ecoando nas produções literárias que emergem insufladas por movimentos coletivos como o do hip-hop. Não é por acaso que Zumbi dos Palmares é tantas vezes evocado como símbolo de resistência e inspiração. Assim, ainda na continuação do poema de Michel Yakini, podemos ver como, em lugar do sentimento de derrota, instala-se um discurso de exaltação da resistência.
Assumindo que a reterritorialização dos afro-descendentes nunca se deu de fato no Brasil, na medida em que nunca lhes foi permitido recriar seus espaços socioculturais (sendo sempre marginalizados e criminalizados), a força com que esses movimentos culturais têm se estabelecido e os princípios estéticos e éticos que têm difundido, não só por meio da literatura, leva a crer que, finalmente, esteja em processo uma reterritorialização de fato, na medida em que esses atores trazem consigo o potencial de afirmar e assumir novas posições enquanto sujeitos da história, capazes de promover sua transformação. Essa nova reterritorialização envolve, por um lado, uma reconexão com a África, como elo original que une essa população diaspórica em torno da noção de pertencimento e resistência. De acordo com Roland Walter, em “Encruzilhadasafro-diaspóricas”, “com base em e ao mesmo tempo distanciada da memória vivida, a memória imaginada enquanto revisão tem sido uma das medidas mais importantes para recriar um self fragmentado e alienado na ficção negra pan-americana”.
Por outro lado, esse processo de reterritorialização implica também um distanciamento, visto que, imersos em outra realidade, a identificação plena já não é mais possível e é preciso criar novos laços comunitários em outras terras. Por isso que observamos ainda em muitos dos textos produzidos pelos autores periféricos essa sensação de viver em uma fronteira – entendida aqui não como barreira, mas como um entrelugar. É assim que, no poema “Maputo – Moçambique”, do livro Águas da cabaça (Edição do Autor, 2012), Elizandra Souza pronuncia:

[...]
Que África é essa?
Que diz e não me diz...
Sentimentos vulcões no peito...
Lágrimas tsunamis na alma
Até onde vai minha fronteira
E se tenho fronteiras, que fronteiras eu sou?

No entanto, em outro poema da autora, que considero emblemático em relação ao que venho dizendo, intitulado “À nossa maneira”, o eu-lírico (que também se coloca como um nós-lírico, uma coletividade negra, introduzida pelo possessivo “nossa”) se dirige a um Outro africano para se explicar (seguem aqui apenas as primeiras estrofes):

Descobri que precisamos sim, à nossa maneira
aprender a aprender com a nossa história,
temos as peles negras, que não são tão negras
como as peles que aqui tens.

À nossa maneira
muitas vezes é o estranhamento em qualquer lugar
natural é tão ofensivo que estão cá a nos xingar
a massificação e o capitalismo conseguiram nos cegar,
distâncias existem na nossa aproximação

À nossa maneira
também é o inverso, é nadarmos contra a correnteza
é descobrirmos algumas certezas na diáspora
sequelas violentas, tanto lá como cá
é um redemoinho que jogam poeiras no ar

À nossa maneira
é a busca de um jeito todo nosso de comportar,
é uma ginga que veio sim daqui, mas não é a mesma
Processo em transformação
somos o batuque que estamos a procurar
[...]

Nesse poema, ao mesmo tempo que o eu-lírico reconhece suas raízes, ele enfatiza seu deslocamento. Ao afirmar que as peles negras de cá já não são tão negras como as de lá, não está apenas fazendo referência a uma possível miscigenação, mas também ressaltando que, apesar da origem comum, a distância já não lhe permite mais se afirmar tão africana quanto aquela, é como se uma certa pureza tivesse se perdido. Nesse sentido também afirma que a ginga não é a mesma e que, nesse processo de transformação, ainda está procurando o batuque que vai determinar o ritmo dessa nova ginga. Note-se que esse mesmo batuque aparecia também no poema de Yakini.
É importante destacar a figura simbólica e bastante recorrente do batuque e do tambor nesses poemas. O tambor remete diretamente às religiões brasileiras de matriz africana. Nos rituais, ele é o responsável por anular a distância entre o Brasil e a África, permitindo aos negros reviver sua cultura e religião. O ritmo e a música produzidos pelo batuque proporcionam um transe que, para os adeptos dessas religiões, permite a comunhão daqueles que vivem aqui com os deuses do continente africano.
Mas, além disso, para as religiões afro-brasileiras, o atabaque em si é cultuado como divindade. Então, ao anunciar “somos o batuque”, o poeta assume uma noção de filiação e vinculação a esse sagrado, que ressoara para sempre dentro de si. Não se trata de encontrar “outro batuque”, ou seja, não se trata de assumir uma outra cultura estranha para si, pelo contrário, reconhecendo o batuque como parte de sua identidade, oferece o entendimento de que, mesmo assumindo novas nuances, o tambor, a origem, será sempre a mesma.   
Ainda de acordo com Raffestin, “a territorialidade se inscreve no quadro da produção, da troca e do consumo das coisas”. Assim, para que a reterritorialização se efetive, será preciso, obviamente, questionar os valores culturais e o poder instituídos nesse espaço a ser ocupado. Na medida em que a exclusão dos negros se pauta pela negação e por uma visão eurocêntrica, racista e elitista, esse movimento implica combater o epistemicídio e reconhecer a filosofia e o conhecimento africanos como capazes de constuir novas representações libertadoras. No que se refere ao nosso objeto, vale lembrar as palavras de Roland Barthes, em Aula, quando afirma que a própria linguagem é opressiva e só se pode sair dela trapaceando com a língua, trapaceando a língua – uma revolução que pode se dar exatamente pela literatura.


*Este texto foi apresentado durante o V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea, ocorrido entre os dias 13 e 15 de outubro de 2015, em Buenos Aires, Argentina.



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