Pedro Mandagará
Imagem: Devair Fiorotti |
“Os ancestrais
no início não comiam os alimentos que comemos hoje. Eles comiam a pasta que se
forma nas árvores junto à pasta de cupim. Dizem que a comiam com gula. Apesar
de só comerem isso, não ficavam doentes, pois não existia malária, e não
precisavam curar ninguém, pois não havia doença, não havia dor, nem tosse, portanto
não havia necessidade de remédio – não havia doença, pois não havia napë. Viviam bem, sem doenças, até terem
muitos cabelos brancos. As mulheres ficavam velhas até terem a cabeça branca,
pois não havia doença.
(...)
Era assim quando
não existia napë, antes de os napë se misturarem; nessa época, os napë existiam? Sabemos que não! Não
existiam.
Os rios, apesar
de serem grandes, dizem que eram vazios. Dizem que não se escutava o som de
motor subindo o rio fazendo “Tu, tu, tu, tu, tu, tu!”.
“Ũ, ũ, ũ, ũ, ũ!”
Não se escutava o som do avião, por isso os velhos não morriam de doença.”
(Parahiteri,
Soares, 2016: p. 16-17)
No dia 25 de abril de 2017, cerca de três mil
indígenas foram violentamente atacados pela Polícia Legislativa, em frente ao
Congresso Nacional. No ato, levaram duzentos caixões até o espelho d’água
do Congresso. Protestavam contra a paralisação de demarcações por parte do
poder Executivo, contra o desmonte da FUNAI, contra o estado calamitoso da
Secretaria de Saúde Indígena, contra as inúmeras iniciativas anti-indígenas do
Legislativo, contra interpretações abusivas do Judiciário como o marco temporal.
Protestavam chamando o Estado brasileiro atual do que é: negligente e genocida.
E o Estado assinou embaixo com bombas de gás e spray de pimenta.
Estive com minha família no Acampamento
Terra Livre 2017, próximo ao abandonado Teatro Nacional de Brasília, dois dias
depois. Passando os camburões da PM do Distrito Federal que faziam a
“segurança” do Eixo Monumental, pudemos sentir a tensão no ar, após dias de
provocações e abusos. Era uma diversidade de gentes, de línguas diversas
entreouvidas, de pessoas se conhecendo e se divertindo, mas sempre com um olhar
em direção à avenida. Vi pessoas que admiro há tanto tempo, como o grande
Raoni. Senti algo do nervosismo que surge quando expectativas se superam: os
organizadores esperavam mil e quinhentos participantes e apareceram mais de
três mil. Em pouco tempo, senti o arrependimento de não ter estado ali desde o princípio, de só presenciar este evento
quando ele já acabava.
À tarde, voltei sozinho ao acampamento,
pois seguiria dali direto para as aulas na UnB. Cheguei num momento em que
dezenas de povos haviam feito rodas de dança e canto paralelas, em preparação
para o toré que seria celebrado pouco
depois na Esplanada. Podia ouvir, ver, sentir povos do Xingu, do Acre, de
Pernambuco, de São Paulo – como percorrer milhares de quilômetros (e muitas
vidas) em poucos metros e minutos. Acompanhei a marcha por algum tempo, o
suficiente para ver o quão desmesurado foi o aparato militar montado naquele
dia. E segui para o campus de ônibus, para dar aula de literatura indígena no primeiro horário da noite.
Meu trabalho com a literatura sempre me
aproximou de temáticas como a violência e a catástrofe. Em algum momento, foi a
tragédia, em outro, a literatura da ditadura militar, ainda em outro, narrativas
pós-apocalípticas. Mas a tragédia nunca fez parte da cultura de minha polis, nem vivi a ditadura militar, e
creio que ainda falta um pouco (cada vez menos) para a vida humana se tornar
insustentável no planeta.
O genocídio indígena, porém, é uma
catástrofe que acontece sob os olhos de qualquer um de nós. De vez em quando,
alguma notícia fura o bloqueio cultural e ficamos sabendo de algum massacre, de
mãos decepadas, da prisão de alguns poucos garimpeiros e dos planos para alguma
nova hidrelétrica. No mais das vezes, porém, a ação genocida prossegue lenta,
limitando territórios, envenenando rios com mercúrio, matando culturas a golpes
de pregação. Vivendo no Rio Grande do Sul, senti o desprezo dos conterrâneos
que passavam por famílias kaingang vendendo artesanato no Centro de Porto
Alegre. Vivendo em Roraima, vi como parte da população considerava os indígenas
como um simples empecilho para o estado e o “desenvolvimento” das monoculturas
e do garimpo. Vivendo em Brasília, ouvi a raiva de motoristas que consideravam
os índios acampados como um – mais um – empecilho para o trânsito na região
central.
Vivendo no Brasil, ouço defesas do
ataque criminoso aos índios Gamela. Leio um relatório parlamentar
indiciando indígenas, religiosos e antropólogos por lutarem pela demarcação de
terras. Vejo monumentos a assassinos como o bandeirante Borba Gato. Percebo a
romantização de uma história de violência. Sinto em tantos à volta o permanente
rancor contra gente que insiste em estar viva.
É constante a referência, nos textos
indígenas, à escrita como técnica de resistência ou como arma. A literatura
indígena engloba muitos mundos, muitas temáticas e muitas culturas, mas vejo
esta concepção como recorrente. Aprendi a ler assim o trabalho de autores como
Kaká Werá Jecupé, Daniel Munduruku, Olívio Jekupé, Davi
Kopenawa, Eliane Potiguara e Graça Graúna. Aprendi, também, a ler assim os
trabalhos de autoria coletiva, as reuniões e traduções de mitos e cantos, toda
a maravilhosa oralidade que espero, um dia, poder compreender em alguma das
línguas originais.
No caminho do Acampamento Terra Livre
para o campus Darcy Ribeiro da UnB fui pensando que parece tão pouco, estudar
literatura, perto de tanta violência. Mas a violência parte de representações.
Se não consigo empunhar um arco na frente do Congresso, posso pelo menos tentar
convencer alguém que devemos estar do lado da flecha e não da bomba. E que, se
o genocídio algum dia se completar, teremos perdido muitos outros mundos que
mal suspeitamos.
REFERÊNCIAS
Parahiteri, Pajés
(autores); Soares, Anne Ballester (org. e trad.). Os comedores de terra ou o livro das transformações contadas pelos
yanomami do grupo Parahiteri. São Paulo: Hedra, 2016.
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