6 de maio de 2017

Literatura indígena: arma contra o genocídio

Pedro Mandagará


Imagem: Devair Fiorotti


“Os ancestrais no início não comiam os alimentos que comemos hoje. Eles comiam a pasta que se forma nas árvores junto à pasta de cupim. Dizem que a comiam com gula. Apesar de só comerem isso, não ficavam doentes, pois não existia malária, e não precisavam curar ninguém, pois não havia doença, não havia dor, nem tosse, portanto não havia necessidade de remédio – não havia doença, pois não havia napë. Viviam bem, sem doenças, até terem muitos cabelos brancos. As mulheres ficavam velhas até terem a cabeça branca, pois não havia doença.
(...)
Era assim quando não existia napë, antes de os napë se misturarem; nessa época, os napë existiam? Sabemos que não! Não existiam.
Os rios, apesar de serem grandes, dizem que eram vazios. Dizem que não se escutava o som de motor subindo o rio fazendo “Tu, tu, tu, tu, tu, tu!”.
“Ũ, ũ, ũ, ũ, ũ!” Não se escutava o som do avião, por isso os velhos não morriam de doença.”
(Parahiteri, Soares, 2016: p. 16-17)


No dia 25 de abril de 2017, cerca de três mil indígenas foram violentamente atacados pela Polícia Legislativa, em frente ao Congresso Nacional. No ato, levaram duzentos caixões até o espelho d’água do Congresso. Protestavam contra a paralisação de demarcações por parte do poder Executivo, contra o desmonte da FUNAI, contra o estado calamitoso da Secretaria de Saúde Indígena, contra as inúmeras iniciativas anti-indígenas do Legislativo, contra interpretações abusivas do Judiciário como o marco temporal. Protestavam chamando o Estado brasileiro atual do que é: negligente e genocida. E o Estado assinou embaixo com bombas de gás e spray de pimenta.

Estive com minha família no Acampamento Terra Livre 2017, próximo ao abandonado Teatro Nacional de Brasília, dois dias depois. Passando os camburões da PM do Distrito Federal que faziam a “segurança” do Eixo Monumental, pudemos sentir a tensão no ar, após dias de provocações e abusos. Era uma diversidade de gentes, de línguas diversas entreouvidas, de pessoas se conhecendo e se divertindo, mas sempre com um olhar em direção à avenida. Vi pessoas que admiro há tanto tempo, como o grande Raoni. Senti algo do nervosismo que surge quando expectativas se superam: os organizadores esperavam mil e quinhentos participantes e apareceram mais de três mil. Em pouco tempo, senti o arrependimento de não ter estado ali desde o princípio, de só presenciar este evento quando ele já acabava.

À tarde, voltei sozinho ao acampamento, pois seguiria dali direto para as aulas na UnB. Cheguei num momento em que dezenas de povos haviam feito rodas de dança e canto paralelas, em preparação para o toré que seria celebrado pouco depois na Esplanada. Podia ouvir, ver, sentir povos do Xingu, do Acre, de Pernambuco, de São Paulo – como percorrer milhares de quilômetros (e muitas vidas) em poucos metros e minutos. Acompanhei a marcha por algum tempo, o suficiente para ver o quão desmesurado foi o aparato militar montado naquele dia. E segui para o campus de ônibus, para dar aula de literatura indígena no primeiro horário da noite.

Meu trabalho com a literatura sempre me aproximou de temáticas como a violência e a catástrofe. Em algum momento, foi a tragédia, em outro, a literatura da ditadura militar, ainda em outro, narrativas pós-apocalípticas. Mas a tragédia nunca fez parte da cultura de minha polis, nem vivi a ditadura militar, e creio que ainda falta um pouco (cada vez menos) para a vida humana se tornar insustentável no planeta.

O genocídio indígena, porém, é uma catástrofe que acontece sob os olhos de qualquer um de nós. De vez em quando, alguma notícia fura o bloqueio cultural e ficamos sabendo de algum massacre, de mãos decepadas, da prisão de alguns poucos garimpeiros e dos planos para alguma nova hidrelétrica. No mais das vezes, porém, a ação genocida prossegue lenta, limitando territórios, envenenando rios com mercúrio, matando culturas a golpes de pregação. Vivendo no Rio Grande do Sul, senti o desprezo dos conterrâneos que passavam por famílias kaingang vendendo artesanato no Centro de Porto Alegre. Vivendo em Roraima, vi como parte da população considerava os indígenas como um simples empecilho para o estado e o “desenvolvimento” das monoculturas e do garimpo. Vivendo em Brasília, ouvi a raiva de motoristas que consideravam os índios acampados como um – mais um – empecilho para o trânsito na região central.

Vivendo no Brasil, ouço defesas do ataque criminoso aos índios Gamela. Leio um relatório parlamentar indiciando indígenas, religiosos e antropólogos por lutarem pela demarcação de terras. Vejo monumentos a assassinos como o bandeirante Borba Gato. Percebo a romantização de uma história de violência. Sinto em tantos à volta o permanente rancor contra gente que insiste em estar viva.

É constante a referência, nos textos indígenas, à escrita como técnica de resistência ou como arma. A literatura indígena engloba muitos mundos, muitas temáticas e muitas culturas, mas vejo esta concepção como recorrente. Aprendi a ler assim o trabalho de autores como Kaká Werá Jecupé, Daniel Munduruku, Olívio Jekupé, Davi Kopenawa, Eliane Potiguara e Graça Graúna. Aprendi, também, a ler assim os trabalhos de autoria coletiva, as reuniões e traduções de mitos e cantos, toda a maravilhosa oralidade que espero, um dia, poder compreender em alguma das línguas originais.

No caminho do Acampamento Terra Livre para o campus Darcy Ribeiro da UnB fui pensando que parece tão pouco, estudar literatura, perto de tanta violência. Mas a violência parte de representações. Se não consigo empunhar um arco na frente do Congresso, posso pelo menos tentar convencer alguém que devemos estar do lado da flecha e não da bomba. E que, se o genocídio algum dia se completar, teremos perdido muitos outros mundos que mal suspeitamos.

REFERÊNCIAS
Parahiteri, Pajés (autores); Soares, Anne Ballester (org. e trad.). Os comedores de terra ou o livro das transformações contadas pelos yanomami do grupo Parahiteri. São Paulo: Hedra, 2016.

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