Patrícia Trindade Nakagome
Escultura japonesa em marfim, Era Meiji, autor não identificado: Avó com criança |
A minha avó paterna era uma mulher muito
frágil: pequena, magra e miúda. Eu me lembro de puxar sua pele fininha, que se
descolava fácil da mão. Nela, qualquer pequeno arranhão se convertia num
arroxeado por semanas. Recorrendo à
minha memória infantil, tenho a sensação de que minha avó já nasceu velha. E me
parecia ir ficando mais velha e mais frágil conforme eu crescia.
São muitas as recordações que tenho da
minha avó e muito poucas as que compartilho. Quero preservar o segredo, a que
vou sozinha, no escuro e em silêncio.
Nos últimos tempos, relances dela me surgem, rompendo o tempo em que
tento mantê-la. O estranho é que ela surge no que não é ela, onde ela não está.
Porque uma avó japonesa como a minha não pode mais estar em muitos lugares do
meu mundo atual. Ela não é possível nem mesmo junto à família de meu pai, com
as risadas altas e as adaptações feitas nas comidas. Ah, minha avó morreria (de
novo) se soubesse que a maionese agora se junta ao arroz grudadinho!
Não há situação que me permita reviver a
minha avó. Não há mais a mesma sopa. Não há mais a oração budista que se
repetia sem eu entender. Não há mais cheiro de incenso. Não há mais,
principalmente, silêncio. Ela era o
silêncio mesmo quando falava. Por ter o pulmão fraco, ela tinha que soprar um
aparelho com bolinhas. Ela ficava cansada e a última bolinha não subia. E eu,
tão criança, queria mostrar para ela, todos os dias, como eu conseguia fazer as
bolinhas se mexerem sem qualquer esforço. E ela sorria o sorriso dela.
Minha avó falava baixo e devagar. E
todos os movimentos dela tinham essa leveza.
Para conversar, era necessário que eu acalmasse o meu corpo. Era
necessário que eu controlasse minha voz. Para poder ouvi-la, era preciso que eu
me entregasse inteira a ela, ao seu ritmo, aos seus suspiros. Era como se a
cada fala dela houvesse um “espera”, um “escuta”. Não porque ela enunciasse um
pedido ou uma ordem. Mas é que nós vivíamos num tom abaixo do mundo.
Minha avó me marcou para além do que
consigo pensar. E ela nem esteve tantos anos assim na minha vida. Na quarta série, para o livro da turma, a
professora me deu um tema de redação específico “Falo pouco, mas aprendo
muito”. E foi a primeira vez que percebi que o meu silêncio não era comum. No meio
de tantas crianças com tantas palavras, aquele silêncio foi ouvido por uma
professora que me ensinou, assim como minha avó, mais do que posso imaginar. E
hoje, já adulta, penso que talvez eu fale mais e não aprenda tanto quanto
supunha minha professora Bete.
É esperado que eu fale. Alguém que
trabalha com a palavra deve falar. E há, hoje, tantos canais para isso. Revistas,
comunicações, redes sociais. E eu me sinto acuada. Em momentos em que a escrita foi tomada por
mim como exercício da palavra, não como resultado do silêncio, era mais simples.
Mas agora, escrever um texto como este está longe de ser
uma tarefa fácil. O tempo dos meus dedos acompanhava as demandas, mas o tempo
do meu pensamento, das minhas dúvidas, das minhas ponderações, mal consegue reverberar
em mim.
Talvez o silêncio possa ser identificado
com indiferença, recusa ou negação. É o seu risco. Penso, porém, no silêncio
indispensável a um verdadeiro diálogo, como sua condição primeira. É o silêncio
que, como no movimento de amor à minha avó, obriga a estar de corpo inteiro à
disposição do outro, à escuta, à espera do seu ritmo e da sua necessidade de colocar
sons ao tempo.
Há alguns anos, ao abraçar o leitor e a
leitura como objetos de pesquisa, sobrepondo-os mesmo à obra, eu passei a me
silenciar um pouco para ouvir o outro. Não porque fosse altruísta, mas porque
reconheci que o outro, em sua multiplicidade e potência, é sempre mais
interessante. Mais do que as minhas interpretações, mais até do que livros que
eu amo e que me formaram. O silêncio
indispensável às minhas leituras permanece intocado. Mas hoje temo quando ele
ganha ares de erudição, num melancólico olhar para a reclusão e solidão, ecoando
os tantos brados de um “país sem leitores” (uma ideia a ser problematizada,
como faz inclusive aqui no blog Mirian Zappone).
Reivindicar o meu silêncio e abrir-me ao
do outro. Entender que o silêncio que ele necessita para ler o grande texto que
é o mundo pode vir da oralidade, da leitura acompanhada por fone de ouvido e
balanço de ônibus, das obras que a crítica insiste em recusar. Trata-se do
silêncio daquilo que podemos não entender, que não é o nosso, mas que ecoa no
outro. E ele, no silêncio da sua leitura, encontra o que me é invisível. É um
privilégio ouvir sobre esse silêncio em textos (como o do Pedro Ivo aqui
mesmo), em conversas, em sala de aula.
O lugar do ensino é talvez o espaço
público em que eu mais acredite. Eu o reconheço como reivindicação concreta do
lugar de fala e principalmente como espaço de escuta. Mas há, inevitavelmente,
numa sala de 50 alunos, generalizações e silenciamentos. Então eu tento, com
falhas, angústias e dúvidas, silenciar-me, ouvir no silêncio deles, respeitar o
silêncio e desejar, muitas vezes, sua ruptura. Armar-se de silêncio leva à
dúvida e ao imponderável; à lágrima e à confissão. E isso nem sempre se ajusta tranquilamente
ao papel de professor e à condição de responsável pela aula. Talvez os alunos
sequer imaginem: mas eu levo muito deles comigo, em perguntas feitas tempos
atrás para as quais não tenho resposta. E eles serão, como algumas memórias,
acalentados em mim. Até o momento em que seja possível (ou indispensável?)
dizer. Ou então agradecer. E aqui, neste texto, preciso nomear um estudante
específico, a quem leio e que também me lê: obrigada, Douglas.
Eu não quero mais dizer que levanto as
bolinhas sem me cansar. Com a repetição, soprar e dizer cansam sim. Eu quero
ouvir o suspiro sempre único do outro. Preciso ouvir inclusive meu próprio
suspiro.
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