20 de maio de 2017

A mulher no texto literário amazônico

                                                                                                     Joanna da Silva



Imagem: Vânia Mignone

Ao incorporar propósitos pessoais e políticos, a partir de uma visão crítica dos autores, o texto literário nos permite problematizar práticas sociais e culturais vigentes em nosso meio, e assim “viver dialeticamente” o problema, como assinala Antônio Cândido em Literatura e sociedade, ao reafirmar a importância da literatura enquanto instrumento de conhecimento e representação da realidade, do mundo, de nós mesmos e do Outro.

Falar da representação de grupos subalternos e marginalizados na literatura, embora possa parecer um discurso já “superado”, não perdeu sua importância na atualidade, sobretudo quando se trata da mulher, da sua alteridade, do (não)lugar que ocupa no âmbito das relações sociais e familiares. Além disso, observamos que o cruzamento com outras categorias influencia na “fabricação” e (de)formação de identidades dentro de um processo político/social contínuo e atemporal, onde questões relacionadas à classe, raça e etnia, interseccionados às relações de gênero, subsidiam complexas relações de poder entre os indivíduos. A esse respeito, Regina Dalcastagnè, no texto Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea, nos alerta a respeito do cuidado que devemos tomar diante do texto literário, haja vista nem todas as representações sociais tenderem a um posicionamento crítico que busque desarticular o sentido das construções racistas e estereotipadas, algumas delas podem até mesmo legitimar ainda mais tal preconceito com base na forma representada.

Ao esboçar um breve painel da representação feminina na Literatura Amazônica, ou amazonense, é importante assinalar que a Amazônia, desde sua “descoberta”, tem inspirado inúmeros textos cujo pensamento reflete-se envolto em mistérios e exotismos comum ao imaginário daqueles que buscaram/buscam descrevê-la. Concebida no imaginário europeu sob uma visão exuberante, berço de mitos e lendas, “território do Eldorado” e “país das amazonas”, a Amazônia tornou-se conhecida no mundo a partir da famosa viagem inaugural comandada pelo espanhol Francisco Orellana (1541-1542), e relatada pelo frei dominicano Gaspar de Carvajal. Seguida de outras comissões, entre elas a de cunho científico chefiada pelo francês La Condamine (1735), além também das missões religiosas associadas ao período colonial e os ciclos econômicos na região, e todas com um ponto em comum: a irrefreável curiosidade em conhecer e explorar a “nova terra”.

Os primeiros textos produzidos durante o período colonial revelam não só o choque cultural entre diferentes nações, mas também conteúdos enredados por conflitos sangrentos envolvendo as populações indígenas e a empresa colonizadora de ocupação do território, a exemplo do poema épico Muraida, de autoria do militar Enrique João Wilkens, publicado inicialmente em Portugal no ano de 1819. Composto numa estética “bem medida”, a obra conta a luta do povo mura para resistir à opressão dos colonizadores que desejavam ocupar suas terras e escravizar sua gente. Muraida é considerada um texto fundador da literatura amazônica, cuja leitura, segundo Yurgel P. Caldas (2007), nos ajuda a entender a construção ideológica do colonizador ao considerar o índio a “encarnação do Mal e do atraso econômico da região”.

A produção de uma literatura brasileira na Amazônia avessa à cultura importada do Império Português iniciou-se com a publicação do romance indianista Simá, de autoria de Lourenço da Silva Araújo e Amazonas, publicado em Recife no mesmo ano que O Guarani, de José de Alencar (1857). Simá é uma obra que também se reporta ao sofrimento do povo indígena vitimado por genocídios e massacres coletivos apoiados pela Religião e pela Coroa Portuguesa. A personagem central do enredo é quem dá título à obra, a jovem índia Simá, nascida do estupro praticado pelo comerciante português Régis a sua mãe Delfina. A perspectiva apresentada no romance é a do encontro traumático e violento entre a civilização europeia e os povos indígenas da Amazônia, além de tematizar um assunto inédito para a época: o estupro, que simboliza não só a heterogeneidade das raças, mas também a violência praticada contra a mulher nativa, tema este que será reiterado por outros autores.

A partir dos ciclos econômicos na região, iniciados com a exploração do cacau e das drogas do sertão, as narrativas passam a ter um caráter mais realista/naturalista, priorizando o homem acima da paisagem e do exotismo regional. Em meio a esse contexto político e social em transformação, o escritor paraense Inglês de Souza se destaca por uma escrita que transcende os ideais e a estética romântica em obras como: Histórias de um Pescador (1876), O Cacaulista (1876), O Coronel Sangrado (1877), O Missionário (1891). Nesta, inclusive, temos o elemento “meio” como influenciador dos instintos humanos e responsável por colocar à prova as “virtudes” do jovem padre que, contrariando os princípios éticos e religiosos de sua doutrina, envolve-se num relacionamento amoroso clandestino com uma jovem “matutinha” que, após engravidar, é relegada ao abandono, pois o religioso precisa “zelar” pelo seu ofício.

O chamado “ciclo da borracha”, ocorrido no final século XIX e início do século XX, foi palco de grande efervescência cultural na região, tornando-se ponto de referência na consolidação de uma tradição literária contextualizada na Amazônia. Alberto Rangel inaugura esse período com a obra Inferno Verde (1908), publicada primeiramente na França. Composta por uma coletânea de onze contos, o livro traz em sua abertura um longo e primoroso prefácio escrito pelo ilustre amigo Euclides da Cunha. Maibi é um dos contos que compõem a obra, e o enredo encena de forma emblemática a morte da índia Maibi que, após ser entregue pelo companheiro a outro seringueiro para saldar uma dívida, é sequestrada e amarrada junto ao tronco de uma seringueira. A jovem tem seu corpo retalhado no mesmo molde em que as árvores eram cortadas para colher o látex, retratando assim uma cena de extrema violência e crueldade cometida contra a mulher.

O romance A Selva (1930), de autoria do escritor português José Maria Ferreira de Castro, publicação que não só o tornaria precursor do Neo-Realismo português, mas também seria traduzido para diversos idiomas, hoje se encontra em sua 47ª edição. Esta obra ocupa um lugar significativo nesse contexto do “ciclo gomífero”, nela o autor retoma o discurso dos primeiros viajantes e cronistas na Amazônia à medida que os motivos que compõem a trajetória do personagem protagonista são os da confrontação do homem com o meio bárbaro. É uma obra de cunho social e de denúncia do trabalho escravo dos seringueiros, assim como as obras do amazonense Álvaro Botelho Maia, Gente do seringais (1956), Beiradão (1958) e do acreano José Potyguara, Terra caída (1961), entre tantas outras, que buscaram retratar não só o drama e o desespero humano daquela sociedade degradante que vivia no interior da floresta, expostos aos ataques de índios, de animais ferozes, pragas de insetos, doenças, mas também expuseram a violência sofrida pela mulher, considerada “mercadoria escassa” no ambiente dos seringais. Em tais narrativas a mulher é vista como “objeto” de troca entre seringueiros e seringalistas, e vítima dos mais diversos tipos de violência e abusos.

Numa perspectiva mais contemporânea e de aproximação com a realidade atual do homem amazônico, o escritor paraense Dalcídio Jurandir é considerado um dos nomes mais consistentes da ficção de intervenção no norte do Brasil, chegando a receber o título de “maior romancista do extremo norte”. Sua produção, segundo Assmar (2003), ocorrida entre os anos de 1947 a 1978, contextualiza-se à época de afirmação gloriosa da ficção modernista e trata a realidade regional não só como movimento estético, mas também como mecanismo de denúncia das mazelas sofridas pelo homem no meio que o circunda.  A maioria dos personagens negros presentes na obra do escritor paraense, de acordo com José Alonso T. Freire (2006), são descendentes de cabanos, e marcados por um preconceito racial que se apresenta de maneira crítica. Esse preconceito pode ser observado através de D. Amélia, mãe de Alfredo, personagem central do enredo e fio condutor da narrativa em nove dos onze romances dalcidianos. O protagonismo de D. Amélia, reiterado por sua condição social e racial, chama a atenção já na primeira obra, Chove nos campos de Cachoeira (1941), e se consolida numa trajetória de vida degradante ao longo dos demais romances. D. Amélia é uma mulher negra, descendente de escravos, dançarina de coco, de isguetes, que cortava seringa, apanhava açaí, porém, ao se “amasiar” com o Major Alberto, homem branco e viúvo que ambicionava uma vida tranquila e sossegada ao lado de uma mulher que cuidasse da casa e também tivesse “disposição na cama”, ela passa a ser hostilizada pela comunidade Cachoeirense, que a considerava uma pessoa “sem qualidades”.

Já no contexto romanesco do escritor manauara Milton Hatoum, é a mulher de descendência indígena que ocupa um lugar de exclusão e subalternidade no interior da narrativa. Sua característica étnica atua como elemento de discriminação a permear o convívio com o outro, fato que se anuncia já no primeiro romance, Relato de um certo Oriente (1989), observado, por exemplo, na fala do personagem alemão, Dorner, que ao estudar a identidade dos habitantes da Amazônia, e o convívio entre brancos, caboclos e índios, constata existir “um senso comum bastante difundido aqui no norte: de que as pessoas são alheias a tudo, e que nascem lerdas e tristes e passivas” (HATOUM, 1989, p. 83). Pensamento esse já anunciado anteriormente nos relatos dos primeiros expedicionários europeus que visitaram o território amazônico no séc. XVI-XVII, e afirmavam que os nativos da Amazônia “são inimigos do trabalho, indiferentes a toda ambição e glória, incapazes de qualquer previdência e reflexão; envelhecem sem sair da infância, cujos defeitos todos são conservados” (La Condamine, Chales-Marie de, apud GONDIM, 2007, p. 140).

Consoante as relações sociais e de gênero que envolvem homens e mulheres, brancos e negros, pobres e ricos, nativos e imigrantes no interior dessas narrativas, observamos que a “fabricação” de identidades e subalternidades são fortemente perpassadas pelos conceitos de classe e raça, que atuam como marcas reiteradoras de suas alteridades dentro de um discurso de “diferenciação” que, conforme nos aponta Frantz Fanon, em Os condenados da terra (1968), busca acentuar as desigualdades de classe existentes entre as partes, mostrando um mundo divido em dois, habitado por espécies diferentes, e com enorme diferença nos modos de vida. São narrativas que, sem dúvida, ultrapassam os limites de um regionalismo exótico ao dar vazão a questões mais amplas e universais, e tudo isso sem deixar de estabelecer um forte vínculo com a cultura e a paisagem amazônica, cujos rios e florestas lhes servem de cenário. A partir do exposto, indico a leitura das obras produzidas por autores do norte do nosso país que, embora de grande qualidade estética, literária, e valor sociocultural, com exceção da produção de Milton Hatoum, infelizmente ainda são pouco conhecidas no circuito cultural/intelectual brasileiro. 

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