Joanna da Silva
Imagem: Vânia Mignone |
Ao incorporar propósitos pessoais e
políticos, a partir de uma visão crítica dos autores, o texto literário nos permite
problematizar práticas sociais e culturais vigentes em nosso meio, e assim
“viver dialeticamente” o problema, como assinala Antônio Cândido em Literatura e sociedade, ao reafirmar a importância da literatura enquanto instrumento de
conhecimento e representação da realidade, do mundo, de nós mesmos e do Outro.
Falar da representação de grupos
subalternos e marginalizados na literatura, embora possa parecer um discurso já “superado”, não perdeu sua
importância na atualidade, sobretudo quando
se trata da mulher, da sua alteridade, do (não)lugar que ocupa no âmbito das
relações sociais e familiares. Além disso, observamos que o cruzamento com
outras categorias influencia na “fabricação” e (de)formação de identidades dentro
de um processo político/social contínuo e atemporal, onde questões
relacionadas à classe, raça e etnia, interseccionados
às relações de gênero, subsidiam complexas relações de poder entre os
indivíduos. A esse respeito, Regina Dalcastagnè, no texto Entre silêncios e estereótipos: relações
raciais na literatura brasileira contemporânea, nos alerta a
respeito do cuidado que devemos tomar diante do texto literário, haja vista nem
todas as representações sociais tenderem a um posicionamento crítico que busque
desarticular o sentido das construções racistas e estereotipadas, algumas delas
podem até mesmo legitimar ainda mais tal preconceito com base na forma representada.
Ao esboçar um breve painel
da representação feminina na Literatura Amazônica, ou amazonense, é importante
assinalar que a Amazônia, desde sua “descoberta”, tem inspirado inúmeros textos
cujo pensamento reflete-se envolto em mistérios e exotismos comum ao imaginário
daqueles que buscaram/buscam descrevê-la. Concebida no imaginário europeu sob
uma visão exuberante, berço de mitos e lendas, “território do Eldorado” e “país
das amazonas”, a Amazônia tornou-se conhecida no mundo a partir da famosa viagem
inaugural comandada pelo espanhol Francisco Orellana (1541-1542), e relatada
pelo frei dominicano Gaspar de Carvajal. Seguida de outras comissões, entre
elas a de cunho científico chefiada pelo francês La Condamine (1735), além
também das missões religiosas associadas ao período colonial e os ciclos
econômicos na região, e todas com um ponto em comum: a irrefreável curiosidade
em conhecer e explorar a “nova terra”.
Os primeiros textos produzidos durante o período colonial revelam não só
o choque cultural entre diferentes nações, mas também conteúdos enredados por
conflitos sangrentos envolvendo as populações indígenas e a empresa
colonizadora de ocupação do território, a exemplo do poema épico Muraida, de autoria do militar Enrique
João Wilkens, publicado inicialmente em Portugal no ano de 1819. Composto numa
estética “bem medida”, a obra conta a luta do povo mura para resistir à
opressão dos colonizadores que desejavam ocupar suas terras e escravizar sua
gente. Muraida é considerada um texto
fundador da literatura amazônica, cuja leitura, segundo Yurgel P. Caldas (2007),
nos ajuda a entender a construção ideológica do colonizador ao considerar o
índio a “encarnação do Mal e do atraso econômico da região”.
A produção de uma literatura brasileira na
Amazônia avessa à cultura importada do Império Português iniciou-se com a
publicação do romance indianista Simá, de autoria de Lourenço da Silva
Araújo e Amazonas, publicado em Recife no mesmo ano que O Guarani, de José de Alencar (1857). Simá é uma obra que também se reporta ao
sofrimento do povo indígena vitimado por genocídios e massacres coletivos
apoiados pela Religião e pela Coroa Portuguesa. A
personagem central do enredo é quem dá título à obra, a jovem índia Simá,
nascida do estupro praticado pelo comerciante português Régis a sua mãe
Delfina. A perspectiva apresentada no romance é a do encontro traumático e
violento entre a civilização europeia e os povos indígenas da Amazônia, além de
tematizar um assunto inédito para a época: o estupro, que simboliza não só a
heterogeneidade das raças, mas também a violência praticada contra a mulher
nativa, tema este que será reiterado por outros autores.
A partir dos ciclos
econômicos na região, iniciados com a exploração do cacau e das drogas do sertão,
as narrativas passam a ter um caráter mais realista/naturalista, priorizando o
homem acima da paisagem e do exotismo regional. Em meio a esse contexto político
e social em transformação, o escritor paraense Inglês de Souza se destaca por uma escrita
que transcende os ideais e a estética romântica em obras como: Histórias
de um Pescador (1876), O Cacaulista
(1876), O Coronel Sangrado (1877), O Missionário (1891). Nesta, inclusive, temos o elemento “meio” como influenciador
dos instintos humanos e responsável por colocar à prova as “virtudes” do jovem
padre que, contrariando os princípios éticos e religiosos de sua doutrina, envolve-se
num relacionamento amoroso clandestino com uma jovem “matutinha” que, após
engravidar, é relegada ao abandono, pois o religioso precisa “zelar” pelo seu
ofício.
O chamado “ciclo da
borracha”, ocorrido no final século XIX e início do século XX, foi palco de
grande efervescência cultural na região, tornando-se ponto de referência na
consolidação de uma tradição literária contextualizada na Amazônia. Alberto
Rangel inaugura esse período com a obra Inferno
Verde (1908), publicada primeiramente na França. Composta por uma coletânea
de onze contos, o livro traz em sua abertura um longo e primoroso prefácio
escrito pelo ilustre amigo Euclides da Cunha. Maibi é um dos contos que compõem a obra,
e o enredo encena de forma emblemática a morte da índia Maibi que, após ser
entregue pelo companheiro a outro seringueiro para saldar uma dívida, é
sequestrada e amarrada junto ao tronco de uma seringueira. A jovem tem seu
corpo retalhado no mesmo molde em que as árvores eram cortadas para colher o
látex, retratando assim uma cena de extrema violência e crueldade cometida
contra a mulher.
O
romance A Selva (1930), de autoria do
escritor português José Maria Ferreira de Castro, publicação que não só o tornaria
precursor do Neo-Realismo português, mas também seria traduzido para diversos
idiomas, hoje se encontra em sua 47ª edição. Esta obra ocupa um lugar
significativo nesse contexto do “ciclo gomífero”, nela o autor retoma o
discurso dos primeiros viajantes e cronistas na Amazônia à medida que os
motivos que compõem a trajetória do personagem protagonista são os da
confrontação do homem com o meio bárbaro. É uma obra de cunho social e de
denúncia do trabalho escravo dos seringueiros, assim como
as obras do amazonense Álvaro Botelho Maia, Gente do seringais (1956), Beiradão
(1958) e do acreano José Potyguara, Terra
caída (1961), entre tantas outras, que buscaram retratar não só o drama e o
desespero humano daquela sociedade degradante que vivia no interior da
floresta, expostos aos ataques de índios, de animais ferozes, pragas de insetos,
doenças, mas também expuseram a violência sofrida
pela mulher, considerada “mercadoria escassa” no ambiente dos seringais. Em tais
narrativas a mulher é vista como “objeto” de troca entre seringueiros e
seringalistas, e vítima dos mais diversos tipos de violência e abusos.
Numa perspectiva mais contemporânea
e de aproximação com a realidade atual do homem amazônico, o escritor paraense Dalcídio
Jurandir é considerado um dos nomes mais consistentes da ficção de intervenção
no norte do Brasil, chegando a receber o título de “maior romancista do extremo
norte”. Sua produção, segundo Assmar (2003), ocorrida entre os anos
de 1947 a 1978, contextualiza-se à
época de afirmação gloriosa da ficção modernista e trata a realidade regional
não só como movimento estético, mas também como mecanismo de denúncia das
mazelas sofridas pelo homem no meio que o circunda. A maioria dos personagens negros presentes na
obra do escritor paraense, de acordo com José Alonso T. Freire (2006), são
descendentes de cabanos, e marcados por um preconceito racial que se apresenta
de maneira crítica. Esse preconceito pode ser observado através de D. Amélia, mãe de Alfredo, personagem
central do enredo e fio condutor da narrativa em nove dos onze romances
dalcidianos. O protagonismo de D.
Amélia, reiterado por sua condição social e racial, chama a atenção já na primeira
obra, Chove nos campos de Cachoeira
(1941), e se consolida numa trajetória
de vida degradante ao longo dos demais romances. D. Amélia é uma mulher negra,
descendente de escravos, dançarina
de coco, de isguetes, que cortava seringa, apanhava açaí, porém, ao se “amasiar” com o Major Alberto, homem branco e
viúvo que ambicionava uma vida tranquila e sossegada ao lado de uma mulher que
cuidasse da casa e também tivesse “disposição na cama”, ela passa a ser
hostilizada pela comunidade Cachoeirense,
que a considerava uma pessoa “sem qualidades”.
Já no contexto romanesco
do escritor manauara Milton Hatoum, é a mulher
de descendência indígena que ocupa um lugar de exclusão e subalternidade no interior
da narrativa. Sua
característica étnica atua como elemento de discriminação a permear o convívio
com o outro, fato que se anuncia já no primeiro romance, Relato de um certo Oriente (1989), observado, por exemplo, na fala
do personagem alemão, Dorner, que ao estudar a identidade dos habitantes da
Amazônia, e o convívio entre brancos, caboclos e índios, constata existir “um
senso comum bastante difundido aqui no norte: de que as pessoas são alheias a
tudo, e que nascem lerdas e tristes e passivas” (HATOUM, 1989, p.
83).
Pensamento esse já anunciado anteriormente nos relatos dos primeiros
expedicionários europeus que visitaram o território amazônico no séc. XVI-XVII,
e afirmavam que os nativos da Amazônia “são inimigos do trabalho, indiferentes
a toda ambição e glória, incapazes de qualquer previdência e reflexão;
envelhecem sem sair da infância, cujos defeitos todos são conservados” (La
Condamine, Chales-Marie de, apud
GONDIM, 2007, p. 140).
Consoante as
relações sociais e de gênero que envolvem homens e mulheres, brancos e negros,
pobres e ricos, nativos e imigrantes no interior dessas
narrativas, observamos que a “fabricação” de identidades e subalternidades são
fortemente perpassadas pelos conceitos de classe e raça, que atuam como marcas
reiteradoras de suas alteridades dentro de um discurso de “diferenciação” que, conforme nos aponta Frantz
Fanon, em Os condenados da terra
(1968), busca acentuar as desigualdades de classe existentes entre as partes,
mostrando um mundo divido em dois, habitado por espécies diferentes, e com
enorme diferença nos modos de vida. São narrativas que, sem dúvida, ultrapassam os limites de um
regionalismo exótico ao dar vazão a questões mais amplas e universais, e tudo isso
sem deixar de estabelecer um forte vínculo com a cultura e a paisagem
amazônica, cujos rios e florestas lhes servem de cenário. A partir do exposto, indico a leitura das obras produzidas
por autores do norte do nosso país que, embora de grande qualidade estética,
literária, e valor sociocultural, com exceção da produção de Milton Hatoum, infelizmente
ainda são pouco conhecidas no circuito cultural/intelectual brasileiro.
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