27 de maio de 2017

O corpo em que habito

Edma de Góis

Imagem: Educação pela pedra, de Cinthia Marcelle


Moro em uma nova cidade, meu sexto pouso até aqui, e como é de se esperar, tenho experimentado a transmutação do olhar de turista para o de quem enxerga o lugar em que se habita sem filtro ou retoque, com a dureza que lhe garante a existência real. Nessa travessia, que a vida me ensina ser bem mais complexa que a simples troca domiciliar e o encaixotar bagagens, não há aprendizado melhor do que andar de transporte público ou a pé. Isso porque o que mais me interessa, desde um tempo que eu nem lembro onde começa, sempre foi o Outro. E esse Outro me chega de muitas maneiras nesses espaços de mobilidade; é o vendedor de doces de corpo visivelmente cansado dentro do ônibus, são mulheres, muitas e sempre a maioria, que passam apressadas com sacolas e bolsas indo e voltando do trabalho, são jovens e adultos que, ao fechar a sinaleira, fazem malabares, sopram fogo, sugerem que nos sessenta segundos de sinal vermelho nossos olhos se percam à procura das bolas no ar. Tem também os idosos que sobem no contra fluxo do enxame de trabalhadores que tentam subir no coletivo e os vendedores de várias mercadorias nas paradas pelo trajeto a fora.

O ônibus, qualquer que seja a linha, segue seu rumo cruzando pelo caminho com uma legião de pessoas que sobrevivem na informalidade, vivendo a urgência de cada dia num mundo aparentemente paralelo e distante das discussões no Congresso Nacional. É que, muitas vezes, não dá tempo de debater sobre partido de oposição ou base do governo, sobre o golpe contra Dilma ou a queda de Temer, os irmãos Batista e a carne de papelão financiada pelo BNDES. A urgência do dia é a venda da manhã, que garante o almoço, e a da tarde, que assegura o jantar. E assim a vida vai se orquestrando entre o balanço do coletivo e a venda apressada para uma clientela também trabalhadora.

O que vejo do meu assento junto com formas, cores, idades e gêneros é que toda ação política sacrifica o corpo. E aqui me refiro a política no sentido mais restrito possível (longe portanto do verbete de Norberto Bobbio), o que tange a representação a partir do sistema político implementado no país, no nosso caso uma república federativa presidencialista com as pernas bambas depois de um ano de muitas rasteiras e das delações que escandalizam a cada dia a população dadas as cifras bilionárias. É no corpo que a pobreza, a fome, a dor, a desesperança e mesmo a resistência se manifestam. É nesse corpo que violências também são investidas, como afirmou Michel Foucault há mais de quarenta anos.

Outro dia, enquanto esperava um ônibus para a universidade, acompanhei a abordagem policial na faixa oposta em que estava. Não se admirem, mas em Salvador há um contingente policial especializado em abordagens nos coletivos, segundo justificativa oficial, devido às estatísticas elevadas de assaltos em ônibus. Na vistoria que pude ver e que imagino ser a padrão, a carne negra, “a mais barata do mercado”, foi a primeira abordada. Sem civilidade alguma, policiais encostaram três jovens negros na lateral do coletivo, revistaram, mandaram que se abaixassem, ficassem de costas e levantassem os braços e, sem que eu conseguisse ouvir o que diziam, no final, liberaram os garotos sem encontrar nada suspeito. O ônibus seguiu e eu fiquei ali, parada, abismada, imaginando o constrangimento dos jovens subindo no coletivo novamente e seguindo suas vidas. Pensei o pior, que talvez, para alguns deles, abordagens como aquela sejam vistas como algo comum, corriqueiro e em algum momento acabam por naturalizar o lugar que seus corpos podem ocupar. É o tal limite, vindo de fora para dentro, de medida variável, mas que existe. Lembrei inevitavelmente dos mandados de prisão dos delatados pelos irmãos Batista. Na casa de qualquer um deles, na ausência de alguém que receba aos agentes da Polícia Federal, chama-se um chaveiro. Igualzinho ao que ocorre nas favelas, podemos aferir.

Recentemente, a artista mineira Cinthia Marcelle recebeu a menção honrosa na Bienal de Veneza. Marcelle ocupou todo o pavilhão nacional com grades de ventilação que lembram bueiros e encaixou pedras brancas típicas dos jardins venezianos. A obra que faz alusão a uma prisão foi acompanhada da exibição de um vídeo em que homens acampados em um telhado portam tochas e sinalizadores. A tomar pelas chacinas carcerárias ocorridas no começo deste ano, não é precipitado associar o vídeo às rebeliões de 2017. Marcelle foi convidada para representar o Brasil, o que visto da vereda do público pode soar problemático em um ano apocalíptico politicamente.

De poucas palavras em entrevistas, a artista deixou que a obra respondesse aos incômodos e às dúvidas. Do pouco que falou, ao final da cerimônia de premiação, recomendou que rasgassem a página do catálogo da mostra que traz o nome de Michel Temer. É bom que se diga: a última vez que uma artista brasileira conquistou tal feito tem quase três décadas. Há oito anos, Lygia Pape ganhou uma menção honrosa por sua obra na mostra principal. Portanto, a visibilidade dada ao trabalho de Marcelle, cuja temática não foge à luta, é de ser reconhecida nesse momento. Obviamente, não descarto com isso o fato de que muitos outros criadores estão produzindo literatura, artes plásticas, performances, instalações, filmes e documentários movidos pela crise desses tempos ou colando o agora a uma revisão da ditadura militar, em uma espécie de sinal vermelho para que o passado não volte, apesar da sensação de que caminhamos para trás.

Em dias de mais pessimismo, traço uma cartografia do golpe a partir dos vários corpos que me vem, seja perambulando pela cidade, seja pelas artes ou pela crueza do noticiário diário: os dos desempregados ou os que atuam em trabalhos informais, o dos trabalhadores e trabalhadoras rurais à mercê da reforma da previdência, a dos índios decapitados em uma luta desigual pela demarcação de terras, portanto assassinados com a conivência do Estado, os das travestis espancadas até a morte em diferentes estados do Nordeste, sob a alegação estapafúrdia, doentia e criminosa de “higienização” social, da mulher agredida recentemente por um policial militar em Fortaleza, de Mateus Ferreira da Silva, agredido com um cassetete por policial durante a manifestação da Greve Geral, dia 28 de abril em Goiânia, de Rafael Braga Vieira, preso em janeiro de 2016 no Rio de Janeiro e condenado a onze anos de prisão, porque habita um corpo negro, pobre e favelado.

Apesar disso tudo, ou melhor dizendo, por isso tudo, é que outros corpos precisam resistir. Enquanto alguns poucos podem se mover, outros com mais mobilidade precisam se mexer por dois, por três, por milhões. É na minha movência como pesquisadora, professora, jornalista, cidadã que posso falar minimamente do interdito. É na movência de criadores vários, escritores, artistas visuais, cineastas, que se pode mostrar para dentro e para fora o fosso para onde estamos sendo jogados. E nós, mais uma vez podemos atuar, fazendo muitas vezes a mediação do trabalho desses artistas com nossos alunos, escolhendo temas, sugerindo obras, mostrando novas abordagens, instigando discussões que estreitem as relações entre arte e sociedade.

Antes de iniciar este texto relutei ter como mote um assunto que me acompanha há doze anos, talvez por uma timidez de que, diante da chance de escrever sobre o que bem quisesse, escolhesse mais uma vez o que me tem me movido academicamente. Mas não é bem isso. Suspeito que eu quisesse lembrar, dizer a mim mesma que o meu corpo político e o seu, de quem me lê agora, ainda é um corpo privilegiado, enquanto outros precisam de esclarecimento, de solidariedade, de apoio e de ação. Porque o corpo não é apenas um corpo, é o nosso habitar em risco no mundo.



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