Dalva Martins de Almeida
Imagem: Ruud Van Empel |
Como pesquisadora de literatura infantil
brasileira de autoria negra, certamente não é a primeira vez que leio Betina, de Nilma Lino Gomes.
Porém, procurei desta vez fazer uma leitura conjugada: enquanto lia Betina, escutava a música “Menina Pretinha”, da MC Soffia, rapper paulista de
doze anos. Ao ler o texto, parei na página nove, que mostra a imagem da
protagonista refletida em um grande espelho, cabeça e metade do tronco.
Ver a imagem de Betina através do espelho não é somente agradável aos olhos: de
fato, ela é uma menina linda! No entanto, ao expressar apenas que a menina
negra que se mostra no espelho de sua sala, é bonita, bem arrumada, limpa e
feliz, pode significar que estou somente reproduzindo o discurso do
colonizador. Para fugir dessa armadilha, recorro a algo dito por Judith Butler
em torno do corpo desvalorizado da mulher, que é o corpo abjeto: ele é excluído,
negado.
A despeito do que era reservado à menina
negra em narrativas brasileiras, como exemplo, no conto Negrinha de Monteiro Lobato, que apresenta uma menina negra, mirrada,
usando trapos, faminta, a quem o narrador chama ironicamente de órfã, e morava
em um canto escuro da cozinha da casa da bondosa sinhá, Betina mora com a família, tem uma infância cuidada, vai para a
escola, tem espaço e voz em sua casa, na escola e demais ambientes em que
frequenta. Então, nos perguntamos: mas isso não é o que toda criança merece,
ser bem tratada?
A resposta é complexa: envolve o modo
como nós, brasileiros, lidamos com as estruturas de racismo em nossa sociedade,
isto é, como praticamos a tal democracia racial no Brasil. Ao nos declararmos
miscigenados, frutos da combinação das três raças: indígena, branca e negra,
estamos repetindo aquele mesmo discurso velado: somos todos iguais. Não, não
somos todos iguais no Brasil, pelo simples fato de que as oportunidades não são
iguais. E lembro: os meninos negros são a maioria da população carcerária
brasileira.
Betina
comunica ao mundo que a pessoa negra que está ali refletida, possui um corpo
não abjeto. Ao invés de denominar que
ela é bonita, usa vestido azul e possui um lindo sorriso, podemos e precisamos
ler em suas entrelinhas o que a personagem quer nos revelar. Uma leitura
possível, é que rompe com o processo de branqueamento praticado pela pessoa
negra para ser aceita pelo outro que a oprime, ao mostrar as suas tranças
produzidas pelas mãos de sua avó, que representa, entre outros, a guardiã das
memórias e culturas africanas. Ao trançar o cabelo da neta, a avó lhe conta os
segredos africanos dos seus antepassados. Quando se mira no espelho, a menina
quer parecer com ela mesma, o seu cabelo é o modo peculiar de se fazer presente
no mundo.
O discurso de Betina se legitima no modo como ela se enxerga: um sujeito que pode
transgredir com o silenciamento, com os processos de assimilação. Desse modo, a
cor da pele, a textura do cabelo, os traços europeus - padrões que foram,
sutilmente, sedimentados em nossa cultura - precisam ser combatidos. Frantz Fanon
alertou-nos em relação aos processos de racismo na infância negra, que injeta
ali seus contornos definitivos. Betina,
ao olhar para o espelho, discursa pelo corpo, discursa pelo cabelo, e
ressignifica o olhar sobre a menina negra.
Por isso, não é a postura de
subalterno a que vemos surgir em Betina,
pois percebemos a sua voz. Talvez porque reli o texto de Gomes juntamente com a
canção da rapper, surgiu um diálogo
entre as duas: Soffia fala com Betina:
“Menina pretinha, exótica não é linda/Você não é bonitinha/Você é uma rainha”.
Ao quebrar com o discurso do exótico (o que fala de
fora), a rapper discursa que o que a
menina negra quer não é a assimilação, ela busca pertencimento.
Confesso que gosto muito do texto da
Ana Maria Machado, sua escrita é exímia. As leituras de suas obras infantis são
ritmadas e nos encantam. No entanto, causa-me um estranhamento ao ver o Coelho, que é branco, olhando a Menina Bonita do Laço de Fita, preta, linda, dançando balé. Ele, o
coelho, quer saber o porquê da menina ser bonita, e essa lhe responde de modo
alheio, sem saber exatamente o que dizer. O olhar do coelho, é o que aponta MC
Soffia, é o olhar do outro, do exótico.
Nesse contexto, Betina não é bonitinha, talvez a rainha cantada por MC Soffia.
Destarte, rainha significaria aqui, quem sabe, um meio de dizer que muitas
meninas princesas, muitas mulheres rainhas vieram nos tumbeiros, subtraídas do
convívio de suas famílias e de suas pátrias na diáspora negra. Então, esse
adjetivo de rainha cabe.
Na construção da identidade negra
feminina infantil cabem outros elementos lembrados pela rapper: a necessidade das meninas negras brincarem com bonecas
negras, as Makenas, de ouvir histórias de griôs, ou de quem faz esse papel, das
culturas africanas. A rapper também discursa que é preciso pertencer. Ou seja,
assumir que: Sou criança, sou negra. Sou
resistência. Para tanto, é preciso se reconhecer negro, saber que as
histórias africanas foram apagadas dos livros didáticos por décadas, ou, quando
presente, nunca eram lidas nas escolas. As histórias dos negros foram contadas
com filtros da colonização, da indiferença. O preconceito praticado no Brasil
foi sutilmente alimentado pela visão de que tudo relacionado ao africano e seus
descendentes relaciona-se aos processos de inferiorização.
Quantas meninas negras são ainda
escravizadas pelas amarras da negação? Todavia, numa força contrária, muitas
mulheres e meninas negras proferem outros discursos. Acredito que Soffia e Betina teceram um longo diálogo. A nossa fala se interrompe aqui. Não se conclui, no entanto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.