16 de junho de 2017

Aquarius: diante da dor dos outros

Jorge Luiz Miguel


Cena do filme Aquarius

Algumas coisas são imperdoáveis. Em Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, a cena em que a personagem da empregada doméstica Ladjane, interpretada por Zoraide Coleto, mostra à família da patroa a foto de seu falecido filho é uma delas. Que a câmera não se dirija ao rosto dessa mãe, dessa pessoa, que a câmera não encare este olhar, não encare sua dor, é o primeiro imperdoável. Que as outras personagens não retornem com uma palavra, um gesto de reconhecimento à dor daquela que está diante deles, este é o segundo imperdoável. Evidentemente, é apenas um filme, à nossa frente são mostradas personagens. Mas isso não resolve a questão. A chave está no advérbio “apenas”, que é inapropriado. A representação não desculpa seu autor, como se fosse menos, porque a representação talvez seja até mais.
Kleber Mendonça Filho diz fazer um cinema sobre aqueles a quem conhece bem, os da classe média alta, o meio onde ele é um peixe dentro d’água. Ele conhece a burguesia pernambucana, derivada direta da classe latifundiária local. Assim sendo, o diretor explicaria a cena descrita acima dizendo que, por fazer um filme que fala dessa classe, o faz da perspectiva dela, filmando com o olhar “dela”. Daí a negação da dor alheia.
Há concepções de cinema, e liberalmente cada um pode ter a sua, mas com consequências. Fato é que não existe câmera neutra, porque não existe olhar neutro, e o diretor sempre mostra o que quer deixar ver. O diretor, onde cala, está sempre consentindo. Na arte é assim. Quando deixa falar sem réplica, também. A fala das personagens favorecidas pela montagem do filme, quando não é disputada por nenhum discurso concorrente que tenha espaço de fala torna-se a voz do autor. Falo do autor enquanto ser público; evidentemente não estou inquirindo as crenças políticas e sociais da pessoa Kleber; estou dizendo que o diretor Mendonça Filho se posiciona com seus filmes no campo do cinema e da cultura, marcando aí posições. É a concepção de mundo, de vida e de sociedade que se extrai do filme Aquarius o que me interessa.
Vamos então a Aquarius, filme bem educado. Podemos dizer algo que não seja tão educado quanto este filme? Podemos, antecipando nossas conclusões, e abusando de adjetivos – todo bom escritor sabe que deve poupar os adjetivos, deixando as qualificações brotarem na mente do leitor ao invés de impô-las em explosões retóricas – dizer que Aquarius é um filme conformista e burguês, falsamente heroico, e bem feito.
Pois então aí está um filme com uma heroína. Clara, a personagem de Sônia Braga, um monumento de integridade, de vida bem vivida, de independência e de autonomia. A personagem que “resiste às pressões”. Quem é Clara? Isto está dito em toda parte. Isto é o que o filme mostra. Que tal outra pergunta?
Quais as condições materiais de sobrevivência de Clara? Quem garante a reprodução dessa personagem? O dinheiro, sim o dinheiro. Mas algo além do dinheiro, embora com a sua mediação. Ladjane. A empregada doméstica, trabalhando há dezenove anos para a patroa Clara. Aquela que vela pelo sono de Clara, quando esta dorme. Aquela que lhe traz a primeira bebida quente da manhã. Ladjane preparou esta bebida quente. Ladjane ajudou a criar, não sabemos em que medida, os filhos de Clara. Ladjane cuida do neto de Clara. Ladjane conta a Clara coisas que ela não sabe sobre as maldades da construtora Bonfim. Ladjane é a condição de possibilidade da existência de Clara, morando sozinha em um apartamento de um prédio esvaziado, contra seus ex-vizinhos e contra parte de sua família.
Dada a importância real da personagem Ladjane no universo do filme, seria de se esperar um tratamento mais digno da personagem, e da relação entre esta e Clara. O diretor, que está muito ocupado filmando a beleza de Sônia Braga – e ele filma esta beleza belamente – , não se apercebeu disso. O silêncio que encobre a personagem Ladjane, o pesado manto de silêncio que a envolve, escondendo o peso dessa personagem no universo do filme, este silêncio é uma injustiça.
Que direitos tem a personagem Ladjane de ter seus sentimentos reconhecidos e sua história contada? Como ela é mostrada pelo filme? Ladjane é o suporte que permite à protagonista Clara expor certos afetos. Recebe um carinho aqui e ali, como aqueles dados a um gato ou um cão. A ela não é dada a palavra em nenhum diálogo. Dela não sabemos nenhuma opinião. Mas ela é capaz de gestos de profundo afeto, como quando beija a foto do filho morto, em sua festa de aniversário. Ou nas várias vezes em que demonstra sua admiração por Clara, tentando protegê-la das ações da construtora, amparando-a, compartilhando impressões sobre a estranha situação de vida de ambas.
Engraçado eu escrever vida de ambas. Porque pelas escolhas do diretor, sabemos qual vida importa, e qual não. Tudo devemos saber sobre Clara, não precisamos nos importar com nada de Ladjane. Esta é a lição – silenciosa, subliminar – de Aquarius.
Há muitas outras coisas no filme, por certo, inclusive coisas boas. Há outros erros, que são todos perdoáveis. Este é o imperdoável.
A fratura do filme se aprofunda na cena que comentei inicialmente, tornando-se irremediável. É o ponto mais dolorido. Por que a câmera não mostra a personagem, que é filmada de costas, com até mesmo sua cabeça fora do quadro? Por que não mostra a foto do filho de Ladjane? E por que Clara, que deve tanto a Ladjane – que se apoia na empregada muito além daquilo que é contabilizado monetariamente e que, portanto, deve a ela muito mais do que ela paga –, por que Clara, neste momento, não tem uma palavra para sua leal empregada? Não sei. Perguntem ao Kleber.
Resta a beleza inegável do filme, a perfeição formal de seus recursos. Mendonça Filho, que segundo consta é crítico de cinema bem mais e bem antes de ser um realizador, é sem dúvida um mandarim do filme, uma espécie de erudito impecável em seu repertório cinematográfico. Vocês sabem, os eruditos são aquela espécie de burguês manso e dedicado, historicamente ultrapassado, que hoje pode reviver para manter artificialmente viva alguma arte, como a arte de filmar. São sempre impecáveis na sua área de competência os eruditos. Como o personagem do romance de Elias Canetti, o erudito especialista em chinês e amante dos livros em Auto-de-fé. Resta saber de que serve esta arte que respira por aparelhos.
Ah, sim, a perfeição formal de Aquarius. Sônia Braga está muito bem. A fotografia do filme é belíssima, cada tomada é uma bela imagem. As cores são ótimas. Mendonça Filho sabe conduzir situações de suspense que nunca dão em nada. O filme vive desse recurso ao suspense, desse sobressalto que é suscitado e contido seguidamente. Nisso o diretor é um mestre. A música também se encaixa de forma primorosa. Um primor formalista, no som e na imagem.
Como retrato de uma personagem excepcional e sedutora, o filme também funciona. Mas na feitura desse retrato monumental da sua heroína, Mendonça Filho consegue simplificar e distorcer as questões políticas do Brasil. Ele reduz as questões políticas a questões morais, e reduz a moral ao comportamento. O Brasil se cola ao corpo de Clara. Ela quer morar onde ela quer morar. Ela tem cinco apartamentos, uma aposentadoria e outros patrimônios. Ela incorporou as conquistas da moral sexual revolucionária que libertou uma fração das mulheres de certos constrangimentos. Ela tem uma sensibilidade estética apurada expressa em seu gosto musical e na decoração refinada da sua casa. Ela é fiel ao amor a seu marido, mesmo depois de morto, e a seus valores. Ela pode gozar. Os valores de Clara não contradizem seu prazer. A visita ao cemitério do finado companheiro e o intercurso sexual com o garoto de programa não se contradizem, expressam a força da personagem. Clara conciliou o presente com o passado, o princípio do prazer com o princípio de realidade. Ainda assim, quando precisa tratar humanamente a pessoa que mais a apoia, sua empregada, Clara não consegue.
Numa sociedade injusta, onde a representação cultural e política foi, desde sempre, negada a vastos contingentes da população, o artista se beneficia do prestígio emprestado aos que portam a palavra não apenas em seu nome, mas em nome dos outros. Como, no exemplo de Rancière, o dramaturgo da Grécia Antiga que dá a palavra ao escravo em sua peça de teatro, numa sociedade em que o escravo não pode tomar a palavra da forma que o faz enquanto personagem da peça, cumpre um papel social que o ultrapassa. Este é o valor da arte, seu alcance para além do que seriam caprichos de um ser humano idiossincrático; a fonte de sua ressonância, no real que ela toca, dizendo o não dito, dando forma ao que seria informe. Podem adjetivar esta visão como preferirem – socialista, modernista, passadista, paternalista, militante. Mas é preciso admitir algo se passou no transcurso da história da arte quando alguma arte permitiu que por ela passassem fluxos – existenciais, políticos, sociais – que não correriam em outros canais oficiais.
Essa definição de arte política tem limitações. Corre o risco de ser um engodo, ou uma máscara. Porque não é o escravo que efetivamente toma a palavra, mas a personagem de um escravo, o que está longe de ser a mesma coisa; porque não podemos confundir os oprimidos com a representação que deles certos artistas fazem; porque o artista, suspeito desde a origem, sempre pode estar falando a mais ou menos, colocando ou tirando as palavras da boca da personagem oprimida; porque tudo pode ser de mentirinha, da carochinha, ou pior, um complô conciliatório, tolerância repressiva, algo assim. Quando a personagem Paulo Martins põe a mão na boca da personagem “povo”, do sindicalista sem nome filmado por Glauber em Terra em Transe, em 1967, já estava colocado em questão o problema, o limite já está claro.
Este limite, uma parede transparente como o vidro de um aquário, é ultrapassado quando são sujeitos oriundos dos contingentes de oprimidos que se tornam artistas e fazem sua própria representação. Hoje ninguém precisa ocupar o lugar do artista que “fala por todos”, do corajoso que ultrapassa fronteiras, Prometeu que ilumina os ignorantes etc. Mas precisamos ainda assim de coragem como um valor humano que segue em falta, entre artistas e não artistas.
Se o lugar do artista que fala pelos outros já não é exclusivo, se os oprimidos falam por si e até demais, como diriam alguns bons homens brancos que se descabelam de culpa em meio a tantas histórias e acusações, o que fazer?
Há muitas coisas para se fazer. Algo a não se fazer é fingir que o problema da relação entre representação artística e cultural das personagens oprimidas numa sociedade desigual não existe. Afirmar ser classe média podendo assim filmar os da classe média entre si e silenciar personagens subalternas não é uma boa solução. Voltamos a um elitismo que é pior que o populismo do período anterior. É preferível ser o Glauber Rocha ou ser o Leonel Brizola ou até ser um homem branco bom e culpado a fingir que não se tem nada a ver com isso e filmar sua classe como se ela não devesse nada às demais.
Por isso podemos dizer: Kleber Mendonça Filho é um diretor competente. Aquarius é um filme bem feito, mas nunca será um filme bom.


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