Isadora Maria Santos Dias
Imagem: Toni Frame |
“Mas,
fulano não era gay?”, “Virou lésbica?”, “Voltou a ser hetero?”, “Você só está
com medo de sair do armário e se assumir gay/lésbica.”, “É só uma fase!”, “Você
pre-ci-sa se decidir!”. A cada dez bissexuais, vinte já se perceberam ou
perceber-se-ão tendo que lidar com esse tipo de colocação sobre sua orientação
sexual. Uma afirmação estatisticamente incorreta que, entretanto, não deixa de
ser verdadeira.
A
compreensão da bissexualidade como derivação ou “mistura” de hetero e
homossexualidade faz com que, no senso comum, esta orientação seja vista como
impossível e/ou incompleta, uma vez que para heterossexuais a bissexualidade
seria um "disfarce para esconder a sua real homossexualidade” e para
homossexuais significaria “um heterossexual confuso e intruso na comunidade
LGBT”. Nesse sentido, haveria uma dupla discriminação: por parte das pessoas
enquadradas na norma da matriz heterossexual e também por parte de quem foge a
ela.
Assim,
este embate entre forças monossexuais — ou seja, de pessoas que se atraem e se
relacionam romântica e/ou sexualmente com apenas um gênero — acaba por
violentar e, por diversas vezes, apagar a bissexualidade. Não há espaço para
quem se atrai por mais de um gênero. Não há espaço para quem, portanto, se
identifica como bissexual. “Você pre-ci-sa se decidir!", e por se decidir
entende-se se sentir atraída/o e se relacionar com um só gênero.
Não
havendo espaço para a compreensão de que a bissexualidade é uma orientação
sexual válida, é provável, também, que não exista muito espaço para narrativas
sobre personagens bissexuais nas quais a bissexualidade não é negativada. São
exemplos as incontáveis histórias, no Brasil principalmente em telenovelas,
cujas personagens que estão em um relacionamento heterossexual passam a se
relacionar com alguém do mesmo gênero e “viram gays ou lésbicas”. Ou, ainda, a
personagem num relacionamento heteroafetivo que passa a se relacionar, fora do
casamento, com alguém do mesmo gênero e “vira gay ou lésbica”. A identificação
com a bissexualidade é impensável, e, ainda que em raros casos a personagem se
nomine bissexual, a sexualidade dela será questionada e apagada.
Ainda
sobre narrativas na mídia, o relatório The
Where We Are on TV? (Onde nós estamos
na TV?, em tradução livre para o português), produzido pela Organização Não
Governamental GLAAD, monitora as representações da comunidade de lésbicas,
gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) na mídia. A partir de dados estátisticos,
o relatório investiga a diversidade em séries televisivas produzidas pelos
maiores estúdios dos Estados Unidos da América.
Esta
análise revelou que, no período 2015-2016, dentre as 70 personagens LGBT
presentes nas principais séries de televisão dos canais de TV aberta NBC, Fox,
ABC, The CW e CBS, 23 são lésbicas (33%); 33 são gays (47%); 12 mulheres são
bissexuais (17%); e 2 são homens bissexuais (3%). Totalizando 20% de
personagens bissexuais e 80% homossexuais. No relatório do ano seguinte
2016-2017, houve um aumento de 20% para 30% de personagens bissexuais. Contudo,
a representação negativa se manteve.
De
acordo com este relatório, as personagens bissexuais são geralmente retratadas
da seguinte forma: não confiáveis, propensas a infidelidade, e/ou à falta de
moralidade; personagens que usam o sexo como meio de manipulação ou não possuem
a capacidade de manter relacionamentos duradouros; possuem comportamento
autodestrutivo; e a atração dessas personagens por mais de um gênero é abordada
como temporária e raramente retomada ao longo do enredo.
Em
literatura, e, mais especificamente, em literatura brasileira contemporânea,
esse tipo de representação não tem se mostrado diferente. Trabalhando a partir
dos dados de extenso levantamento sobre autoras/es e personagens de romances
brasileiros publicados por grandes editoras entre os anos de 2005 e 2014,
retirados da pesquisa "A personagem do romance brasileiro contemporâneo",
coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, nota-se que em um conjunto de
303 romances, com 1140 personagens analisadas, 50 personagens são identificadas
como bissexuais, das quais 32 das personagens são mulheres e 18 homens. A
maioria dos autores são homens – de um total de 39 romances, 23 foram escritos
por autores e 16 por autoras, sendo que Carola Saavedra, Flávio Braga e Marcelo
Carneiro Cunha aparecem duas vezes cada como autores.
Tendo
lido até agora pouco mais de um terço desses livros, a minha impressão geral e
inicial tem sido a de que a bissexualidade é uma sexualidade ainda sem nome.
Entre personagens protagonistas e secundárias, poucas são as que se dizem
bissexuais com todas as letras. Muitas vezes, portanto, a bissexualidade
depende do entendimento do leitor de que a atração sexual e/ou romântica da
personagem por mais de um gênero é válida. Temos com isso um problema de
representação: como identificar personagens bissexuais, se muitas vezes essas
personagens não usam esse termo? Como dizer que uma narrativa representa uma
perspectiva sobre bissexualidade, se há um espaço ambíguo na interpretação da
história? E, principalmente, como esperar que essa leitura aconteça dentro de
uma sociedade que sistematicamente invisibiliza bissexuais?
Uma
explicação plausível para o não uso do termo “bissexual” por personagens que se
relacionam com mais de gênero pode ser o estilo da autoria, uma escolha
narrativa. Ou o que Kenji Yoshino denomina apagamento bissexual: mecanismos sócio
históricos, políticos e discursivos que tornam a bissexualidade uma forma
impossível e distorcida de identificação e expressão sexual.
Seja
em representações associadas a estereótipos negativos na mídia, seja na
ausência do termo em narrativas, o que tenho observado até aqui é a necessidade
de se falar sobre a bissexualidade para além dos discursos médicos, para além
da figura do bissexual "insaciável por sexo”, “indeciso”, “pouco
confiável” ou “proliferador de doenças sexuais devido à
conduta sexual exacerbada”, porque esses têm sido o lugar-comum sobre o
assunto. E esses clichês têm invisibilizado, deslegitimado e generalizado um
grupo muito diverso de pessoas.
Ao
longo desse texto, talvez, eu tenha usado exaustivamente os termos
“bissexual/bissexualidade”. Em minha defesa, admito que foi proposital.
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