30 de agosto de 2024

Para a orientadora, com carinho

Para Cíntia Carla Moreira Schwantes, in memoriam


Duas orientandas da professora Cíntia Schwantes escrevem sobre a importância da orientadora em suas vidas, em uma homenagem de despedida.

Agradeço a oportunidade de fazer aqui uma singela homenagem à minha orientadora,  Cíntia Schwantes, que fez a passagem aos 63 anos, representando aqui todas as estudantes que foram por ela tocadas ao longo de sua jornada acadêmica, sua jornada de vida.

Ontem, em sua fala, a professora Patrícia Nakagome nos emocionou e fez pensar sobre o legado que os pais deixam para os filhos e que os professores deixam aos seus alunos. O que me fez pensar no legado da Cíntia para escrever este texto. Poderia citar aqui sua vasta produção acadêmica como pesquisadora dos estudos de gênero e crítica literária feminista, referência nos estudos do gótico e do romance de formação feminino, estudiosa da poesia de Sylvia Plath, editora-chefe da revista água viva; poderia dizer da Cíntia tradutora de textos feministas importantes, da Cíntia poeta que deixou diversos poemas publicados e não publicados, da Cíntia que defendia a igualdade de gênero, os direitos humanos, a democracia e as minorias, algo que estava presente em suas aulas, seu dia a dia, sua produção teórica. Mas esse legado, importantíssimo, está disponível a quem se interessar em ler. A palavra nos eterniza de alguma maneira.

Hoje, quero aproveitar esses minutinhos aqui para falar da Cíntia que não ficou por escrito, mas que pode ser vista também (aos que souberem olhar) no que suas orientandas escreveram, escrevem e continuarão escrevendo ao longo de suas vidas, com palavras-escritas ou palavras-ações – um legado tecido com paciência, escuta e afeto. Preciso contar a vocês do privilégio que foi tê-la como minha orientadora desde quando cheguei à UnB, ainda formulando o que queria pesquisar. A Cíntia orientadora dedicava aos seus alunos o que nós temos de mais precioso: o tempo. E nos quatro anos do doutorado, nos encontramos semanalmente, às sextas-feiras e no horário da fome, como ela costumava dizer. E naquelas horas, lia tudo o que eu trazia escrito, sempre impresso, que é como ela gostava de ler, no papel; dos fichamentos que demandava até os artigos que eu escrevia para cada uma das disciplinas, às resenhas que eu queria publicar e ela que sempre me incentivava, além de cada parte nova da tese. Lia em silêncio (para minha angústia ansiosa), e vez ou outra marcava algo a ajustar ou listava mais um tanto de coisas que eu precisava ler, com sua imensa generosidade em partilhar o conhecimento. Cíntia era uma leitora voraz e sempre me impressionava o seu imenso repertório. Depois, escutava. Algo tão raro nos dias de hoje onde se vive com pressa e com tantos afazeres. Cíntia verdadeiramente nos escutava. Ouvia as dúvidas e angústias, respondia todas as perguntas e me deixava mais outras tantas, sempre com seu jeito tranquilo e sereno, e eu sempre saía de lá com muita coisa para pensar. Agora multipliquem esse tempo por cada uma das estudantes que ela orientou, por todos os estudantes que atendeu ao longo de todos esses anos na Universidade. Se a pandemia foi cruel para todos nós, dá para imaginar o quanto ela entristeceu o coração de uma professora que amava estar frente a frente com suas alunas, e que tinha uma grande dificuldade com as tecnologias. Em seu velório, sua irmã nos disse que ela só teve dois grandes amores na vida: o Felipe, seu filho, que ela adorava, e suas alunas. No coração generoso de Cíntia, todas e todos eram acolhidos com afeto, escuta e paciência. Era uma professora que sabia reconhecer o potencial que cada um, à sua maneira, carrega por vezes escondido. 

Quando penso na Cíntia professora, sempre lembro do livro Diário de escola, do Daniel Pennac, quando ele compara a experiência de ensinar ao primeiro voo dos passarinhos; em uma sala de aula, teremos aquelas alunas que alçarão voo dentro do “esperado”, alcançando o objetivo da aula sem maiores problemas; podem ser tidas como as melhores, mas isso é só uma questão de ponto de vista. Há os que podem fazer o voo de cabeça para baixo ou fazendo volteios até alcançar a janela, atingindo o objetivo mesmo assim, mas certamente criticadas por não se encaixarem (como a vida seria chata sem elas); há também os que tentem mais de uma vez atravessar a janela e não consigam, seja porque tenham alguma dificuldade (o que pode ser superado ou adaptado com um pouco de afeto e atenção) ou porque não acreditam em si mesmos, e nesses casos uma boa professora faz toda a diferença para que o voo possa dar certo. Cíntia era a professora que não deixava nenhum passarinho para trás e dedicava a maior parte de seu tempo a isso. Ficava feliz com o voo de todas, desejando que todas voassem mais alto que ela. Que privilégio, o nosso, termos sido orientadas por alguém assim.

Como legado, Cíntia deixa para mim e para as demais ‘Meninas da Cíntia’, que é como se chama um grupo de alunas e amigas que a cercou de afeto e cuidados nos momentos delicados que atravessou antes de partir, um exemplo de afeto, escuta e generosidade no mundo acadêmico (e para além dele), além de uma imensa saudade. Mas esse grupo, como prova mais bonita de seu exemplo, se aproxima ainda mais depois de sua partida, vivendo o luto e a saudade, mas buscando manter a rede de afeto que ela construiu viva, ‘palavras-ações’ que talvez não caibam no Lattes, mas que reverberarão por muito tempo.

Paula Queiroz Dutra

(durante o X Simpósio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea:

circulação, diálogos, entornos - 30/08/2024).


***

Na hora da fome - fizesse chuva, fizesse sol -

quando ninguém mais para socorrer

Ela, toda acolhimento - cachecol

palavras que desfaziam nó na garganta, sufoco no peito

Um: Calma, Moça! E o mesmo valia para o Moço.

Ali, naquela horinha mesmo, tudo recomeçava

Tantos e tantas - típicos e atípicos - com igual devoção

Dedinhos ansiosos – lápis-caneta-teclado – de mãos dadas, sempre

pronta para cruzar fronteiras rumo a revoluções

tantas e tantas que olhando para aqui ou acolá

HÁ A SUA POEIRA estelar

Resta aquela que cintila além e além

Para mim – que ecoo - do A ao Z de nomes e sobrenomes

Para os gatos do Darcy,

Um nó desfeito.

Leocádia Chaves





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