2 de maio de 2010

O que ainda poderia ser dito



Como alguém pode achar que uma experiência forte, como a de um relacionamento sexual-amoroso, não modifica seus participantes diretos e não afasta deles os que dele são excluídos.


Elvira Vigna, Nada a dizer


É na quebra do vínculo de confiança, aparentemente forte, que se acomoda a dor da mulher traída, narradora de Nada a dizer, de Elvira Vigna. O romance, publicado neste ano pela Companhia das Letras, traz uma história banal, sob as lentes de uma personagem feminina, que abandona sua, até então, “zona de conforto” quando descobre a traição do marido. Ela é quem narra, a partir desse episódio, a busca de uma mulher por sua própria identidade.


A narradora sem nome e o marido Paulo viveram as rupturas comportamentais e a efervescência dos anos de 1960, tiveram filhos, mudaram de casa e de cidade algumas vezes e, na percepção da mulher, construíram um outro e novo padrão de relacionamento conjugal. Mãe na adolescência, ainda solteira, tolerante com pequenas escapulidas dentro do casamento, adepta de uma concepção alternativa dos papéis de gênero na estrutura familiar, essa mulher simplesmente desmorona ao descobrir o caso extraconjugal do marido com N., vinte anos mais nova, também casada e com dois filhos. Em resumo, apesar de toda a filosofia em voga nos anos 60, incluindo a onda feminista, ela termina se comportando como qualquer mulher traída se comportaria. Com um agravante de que ela conhece N.


Nada a dizer, que titula a obra, poderia ser uma frase proferida pelo marido, em algum dos questionamentos da esposa quando o coloca na parede – bem no tom policial de quem não assume a culpa pelo ato “criminoso”. Nada a dizer também poderia ser o que a mulher supõe ser a única resposta do marido, afinal, Paulo poderia dizer alguma coisa diante das evidências? Dos emails trocados com N. e descobertos pela esposa no Outlook, das desculpas esfarrapadas para os horários e viagens?


Elvira Vigna faz o melhor retrato do que acontece nos dias de hoje, em que crises conjugais são escancaradas na internet. Depois de ficar com uma pulga atrás da orelha, ao encontrar um email suspeito de N. para o marido, ela passa a fuçar pistas do caso extraconjugal no celular de Paulo, em outros emails e até no blog de N.


A traição é uma feridinha que teima em não sarar e a todo momento a narradora a machuca sem querer, o que torna mais difícil a cicatrização. No entanto, é nesse mesmo espaço de dor, o fundo do poço, como se diz na vida fora da literatura, que ela tenta ganhar impulso e subir novamente, para, quem sabe, sair do fosso cheia de arranhões, mas inteira.


Vigna parece dar continuidade aos questionamentos dos livros anteriores, em que a ordem das coisas, dos gêneros, da composição da sociedade tal e qual conhecemos, é colocada em xeque. Como em Coisas que os homens não entendem e Deixei ele lá e vim, a autora está interessada nas identidades, que tanto podem ser voláteis quanto estão em permanente construção, como sentencia Stuart Hall. Não há, obviamente, uma troca de identidade, mas acúmulos cujo produto, quando somados, não se sabe ao certo no que dará. Talvez por isso a narradora se torce e contorce dentro da história, para não ser, de repente, reduzida à identidade de mulher traída. Lucidamente, ela percebe que não é só isso. A traição é apenas uma das cascas da cebola, a mais visível porque chegou por último, acobertando todo o resto e todo o resto é simplesmente a vida.
Como ela poderia esquecer uma vida construída ao lado de Paulo, a dedicação ao marido e aos filhos, a troca de afeto e de intelecto? A narradora definitivamente não é apenas a mulher traída, muito embora, em um estado de choque, a visão turva não deixe ver as coisas como elas são. “Não existente, me multiplicava por mil, milhões. Em cada uma dessas histórias em que eu estava, estava também um pedaço da minha dor – e da minha acusação. Eu colava em mim, ou melhor, na minha casca vazia, essas dores e essas acusações que escutava, em eco, da cultura, dos veículos de massa. Aliás, era o contrário: eu, ao colar meu eu em cada uma dessas dores e acusações, buscava, em pequenos detalhes que apareciam na tela, um eu que escapasse, que renascesse desse nada genérico em que eu morria” (p. 107)


As dores se acumulam quando ela percebe que nem mesmo seu espírito libertário, cultivado desde a adolescência, a fizera ter um comportamento diferente das outras mulheres diante da traição. O que é alternativo é o modo como ela disseca o acontecimento e a dor, resignificando inclusive posturas cristalizadas há décadas. “Eu continuava estereotipada. Mas mudava o acervo de meus modelos pré-fabricados” (p. 118).


Ao tratar das instabilidades identitárias, a autora termina por apresentar também um panorama dos relacionamentos na contemporaneidade, mostrando que não há qualidades fixas nos sujeitos. Mais do que acontecimentos, a narrativa traz as reflexões da narradora, numa tentativa de refazer o passado para entendê-lo, ou na melhor das hipóteses, para resignar-se. É essa mulher quem conta como se deu o envolvimento de Paulo com N., com descrições precisas de idas rápidas ao motel e encontros sorrateiros. Em determinada passagem, ela justifica que foi Paulo quem lhe contou, mas é possível pensar que parte do que é narrado seria a interpretação do relato do marido e o restante o seu “achismo” sobre o que aconteceu. Nesse ponto, de pensar como as coisas aconteceram, a narradora pode pintar os eventos com as suas cores; o sexo sem graça dos amantes, a descrição das roupas e da maquiagem de N., “inacreditáveis e justos vestidos estampados que fazem ficar parecendo uma arara tropical” (p. 147).


Se alguém ainda duvida da vida como literatura, Nada a dizer está aí mostrando que, infinitamente melhor do que livros e palestras de auto-ajuda com exemplos genéricos, a boa literatura traz personagens vivíssimos. Talvez tão vivos que não soaria estranho ouvir alguém perguntar se tudo exposto é realmente ficção ou autobiografia da autora. Pode-se até entender, mesmo sem concordar. O pacto de realismo da narradora com o leitor, que sofre junto a dor da traição, é sinal de que a literatura contemporânea não consegue se omitir das questões do sujeito do tempo presente, e nisso está um dos seus maiores trunfos.

Edma Cristina de Góis, doutoranda em Literatura, UnB.


2 comentários:

  1. Olá colegas do Gurpo de Estudos em Literatura Brasileira, boa tarde.

    Gostaria de enviar um convite/informativo do edital Rumos Literatura do Itaú Cultural.

    Trata-se de um programa nacional de incentivo a produção e crítica literária, inteiramente gratuito, que já está com o período de inscrições em aberto.

    Para tanto, peço que me passe um e-mail de contato através do renato@comunicacaodirigida.com.br.

    Grato.

    Renato Pedreira

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