11 de maio de 2010

Os corpos impensáveis de Bellatin

Flores (2009) é um daqueles tipos de livro espinhosos de engolir, doídos de ler e por estas razões também difíceis de esquecer. É um livro conceitual, dirão alguns. É um romance desfragmentado, um experimento, dirão outros. Incertezas e polêmicas a parte, o mexicano Mario Bellatin [1960- ] parece propor uma reflexão sobre os limites da ficção e o lugar do autor na narrativa. É complicado afirmar que se trata de um livro de contos ou um romance. O índice de catalogação tenta acabar o impasse classificando-o apenas como “ficção mexicana”. Uma coisa ou outra, Flores é enxuto, extremamente imagético, além de fazer uso de outros tipos de construções textuais como o que acontece no jornalismo. Em entrevistas, Bellatin sempre repete preferir o pouco uso das palavras e, na Escuela Dinamica de Escritores, onde atua como coordenador, causa estranhamento aos alunos quando sugere ser “proibido escrever”.


Não achei referências às edições fora do Brasil, mas por aqui o livro chegou pela Cosac Naify, em uma embalagem plástica, que lembra aqueles saquinhos onde frios fatiados são vendidos no supermercado. Também não existe capa, nos padrões conhecidos, e as páginas parecem simplesmente alinhavadas. Joca Reiners Terron, que assina o prefácio da tradução em português (seria prefácio mesmo?) fala em “estufa dedicada ao cultivo de raras mutações”. Talvez daí a apresentação com o plástico de proteção.


Por essas, deve-se pensar que Flores é um livro diferente desde a sua apresentação, mas essa característica não se esgota nisso. Os textos curtos trazem personagens com vários tipos de corpos e os modos como esses sujeitos são integrados à comunidade. Como acontece em outras obras do autor, até agora 18 livros, Flores privilegia personagens mutilados, deficientes físicos, castrados e vítimas de talidomida (medicamento utilizado por grávidas e que causou má formação de fetos nos anos de 1950 e 1960. Especula-se que o próprio autor, que não possui o antebraço direito, tenha sido vítima do fármaco).
O livro põe sobre a mesa as diversidades corporais e o fascínio do homem por esses corpos impensáveis, como acontecia até personagens como Frankenstein, bem lembrado por David Le Breton em A síndrome de Frankenstein. Breton afirma que o futuro do corpo é questionado hoje tanto pelas literaturas de ficção quanto pelas científicas e que a única realidade do corpo é simbólica.

Mario Bellatin “fabrica” personagens como o de Mary Shelley, em que o sujeito causa repulsa, mas ao mesmo tempo fascínio para quem olha aquele Outro estranho e único. Em Flores, um exemplo dessa síndrome aparece na história de Alba, a Poeta, e dos gêmeos Kuhn, sem braços nem pernas. “Quando apareceram os gêmeos Kuhn, teve de lutar contra as outras mães para obter a tutela. Todas as mulheres se interessaram desmedidamente por eles. Era como se tomar conta dos gêmeos fosse a demonstração definitiva do tipo de amor maternal que buscavam preencher no orfanato” (p. 37).


Não há como ler a obra de Bellatin e não traçar um pontilhado até outras obras, não só da literatura que colocam em questão a controle e o agenciamento da vida, por meio dos corpos. Artistas como Patrícia Piccinini, cujas imagens ilustram esta resenha, denuncia com silicone e fibra o uso dos corpos para experimentos médicos e farmacêuticos, como faz, de outro modo Bellatin com seu personagem cientista Olaf Zumfelde.


Nos dois casos, os corpos causam estranhamento, mas também querem dizer algo sobre a realidade científica que vivemos. O que está também posto são os problemas éticos que devem ser levados para o interior da medicina. Os lapsos terapêuticos centrados no corpo, na doença, na deformidade, e não no indivíduo propriamente.


Em Bellatin, há o agravante do próprio autor se comportar em vida como personagem. Sem o antebraço direito, Mario usa próteses variadas, que tanto podem ser uma flor metálica quanto um gancho, a depender do humor do artista naquele dia. Como em um de seus micro-textos, ele também usa próteses “artísticas” e com o artista plástico Aldo Chaparro, faz disso um negócio, produzindo próteses mais funcionais, que podem até acoplar um i-pod.


Mario Bellatin tem uma biografia esquisitíssima e que valeria um texto a parte, mas para falar de Flores me limito a dizer que o livro remete à discussão sobre a “ilusão biográfica”, efetuada por Pierre Bourdieu, ao sugerir a colocação de elementos da biografia do mexicano na obra. Isso acontece também por meio do personagem batizado com seu próprio nome. Sem falar, do personagem escritor que visita a quase totalidade de capítulos (ou contos, como preferir). Além do localizar-se em si, chama a atenção o tema pelo qual o faz – a diversidade corporal.


Mas não pensem que a diversidade involuntária é tudo. As pouco menos de 80 páginas de Flores também falam de anciões, de orgias sexuais, do papel (e do questionamento) das religiões com suas verdades e seus credos. Tudo numa mistura só, mas bem orquestrada pelo autor, pelo que podemos ver ao longo da narrativa.


Se nenhuma das considerações aqui colocadas fizerem parte dos planos do autor, proponho uma última hipótese para Bellatin – de que ele quer apenas forjar o modo como se fez literatura e como se faz na contemporaneidade. Se ideia for essa, ainda assim Mario Bellatin nos dá muito o que falar e não é pouco.


Edma Cristina de Góis, doutoranda em Literatura/UnB


Foto do escritor Mario Bellatin. Esculturas e fotografias de Patrícia Piccinini.


Um comentário:

  1. Resenha intensa e instigante. Desperta o interesse para desbravar obra tão inusitada. Parabéns a autora pelo texto e ao grupo pelo blog.

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