12 de março de 2016

Bazar Oió e sua marca na história cultural de Goiânia

Lúcia Tormin Mollo


                                                                        Fotos: Bazar Oió, acervo da família

A história do Bazar Oió está fortemente ligada à cidade de Goiânia. Quando a livraria foi inaugurada, a capital de Goiás tinha apenas dezoito anos. A relação com a cidade e seus moradores era muito próxima, assim como com a vida cultural da região. Cultura que está presente inclusive na ideia originária de criação da cidade. Goiânia foi planejada e, como lembra o folclorista Bariani Ortêncio, um conhecedor da história de Goiás, não houve inauguração mas, sim, um batismo cultural. Em uma conversa, ele brincava sobre os primeiros anos da cidade: “Aqui tinha fama ruim: matou em Minas, fugiu para Goiás; matou em São Paulo, fugiu para Goiás”. A opção adotada foi evitar ruas com os números 38 e 44, “calibre de pistoleiro”. De qualquer modo, para ele, Goiânia se tornou uma cidade cultural e “o embrião foi o Bazar Oió”.
O nome é, no mínimo, diferente, O-I-Ó. A livraria começou, em 1951, a partir da ideia de dois irmãos, Olavo e Othelo. Mas a sociedade foi desfeita e Olavo decidiu focar suas energias nos livros. O empreendimento também tinha um espaço para papelaria e livros didáticos, mas a literatura é que dava vida ao lugar. Os frequentadores encontravam ali uma série de eventos culturais, como lançamentos de livros, exposições e debates. A festa de lançamento começava já com a entrega dos convites pelo correio, dias antes da data marcada. As rádios também anunciavam o evento mas, talvez, a propaganda mais convincente fosse mesmo a do boca-a-boca. As prateleiras e cadeiras eram afastadas para abrir espaço. Garçons passavam com bandejas cheias de comes e bebes, cortesia da casa. No início do evento, o Frei Nazareno Confaloni, padre italiano e artista plástico, dava a bênção. Depois era a hora dos discursos e, por fim, dos autógrafos. O lançamento, que chegava a terminar meia-noite, tinha cobertura de uma rádio local.
                Bernardo Élis, único representante de Goiás na Academia Brasileira de Letras, lançou a segunda edição de Ermos e Gerais (1959) na livraria, assim como Cora Coralina, o seu primeiro livro de poesias, Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (1965). Os moradores de Goiânia puderam ver José Mauro de Vanconcelos ali, além de Mário Palmério, Jorge Amado e Pablo Neruda. A lista se estende já que a cidade foi crescendo e atraindo cada vez mais eventos culturais.
Por dois anos, Olavo Tormin publicou o Jornal Oió, um mensário com notícias das culturas goiana e brasileira. Os destaques da primeira edição, datada de fevereiro de 1957, são "Morre Gabriela Mistral" e "Malba Tahan em contacto com intelectuais goianos". Olavo Tormin também realizava exposições, como as dos artistas plásticos Maria Guilhermina, Otto Marques e Siron Franco, e promovia debates de interesse da socidade, divulgados na imprensa. Os assuntos eram os mais diversos: criação do estado do Tocantins, Modernismo, teatro em Goiás, arquitetura contemporânea, Canal de Suez, doença de Chagas etc. Em 1956, o impresso carioca Para Todos assim se referia a esses momentos: "Desde fins de julho, semanalmente, às quintas-feiras, vêm-se realizando debates culturais no Bazar Oió, a livraria mais movimentada lá de Goiânia de propriedade do sr. Olavo Tormin" (Para Todos, Rio de Janeiro. 1956. Quinzenal). O menor abandonado, por exemplo, já foi tema de um debate. Dele, participaram o secretário do Interior e Justiça de Goiás, Joaquim Neves, e o juiz de Menores, Sebastião de Souza. A ideia era propôr soluções possíveis para cada problema.
O Bazar Oió também costuma ser lembrado como um local que incentivava a leitura não apenas vendendo livros, mas disponibilizando-os para pessoas que não pudessem comprá-los. Recentemente, encontrei uma referência à livraria que me chamou muita a atenção. Foi na tese de doutorado da pesquisadora Orlinda Melo, pela Unicamp (2002). Ela pesquisou os pontos de leitura de Goiânia entre os anos de 1933 e 1959 e se deparou com o Bazar Oió e a história da empregada doméstica e benzedeira Sebastiana (a pesquisadora não informa o nome completo), que assim se recorda da sua experiência na livraria do Olavo Tormin:
Sempre que saía do trabalho mais cedo, ou quando a minha patroa viajava eu ía ao Bazar Oió. Tinha todos os livros. Lá, eles deixavam um livro de cada lançamento sobre uma mesa. Quem quisesse podia ler esses livros lá. Eu “futricava” e lia outros da prateleira. Lia em pé, diante da prateleira, não gostava de conversar para não perder tempo, porque eu tinha que pegar meus filhos na escola. Nem sentia as dores nas pernas. Nem sentia fome. Lia cada dia um pedaço do livro, e depois eu guardava bem no fundo da prateleria, com esperanças de que ele não ia ser vendido.

                Um depoimento emocionante e do qual me aproveito para explicar que Olavo Tormin, como indica o sobrenome, é meu parente. Para ser mais precisa, meu avô, pai da minha mãe. Por isso, descobertas como a que acabei de citar acima ganham grandes proporções para mim. É aí que vem um ponto importante durante esse trabalho: manter certa distância do objeto pesquisado. Não muita, apenas o necessário. Até porque a relação que criamos com ele é o que nos motiva a enfrentar os obstáculos e seguir com a pesquisa. E, ao longo dela, alguns momentos como esse nos enchem de fôlego. Lembro-me claramente do dia em que encontrei o nome do meu avô numa citação de Lawrence Hallewell, em O livro no Brasil. Se não fosse a sugestão do meu professor à epoca para procurar no índice remissivo, não sei quanto tempo demoraria para achar essas palavras na página 626 da obra:

E, já em 1959, possuía um livreiro-editor digno de menção: Olavo Tormin, que publicava obras de história e literatura locais com o selo editorial Oió, nome de sua livraria localizada na praça do Bandeirante, em Goiânia.

A cena cultural de Goiânia contava ainda com outras duas livrarias, o Bazar Municipal e o Brasil Central; tinha três cinemas, o Cine Teatro Goiânia, o Cine Goiás e o Cine Santa Maria; além dos clubes sociais, como o Jóquei Clube e o Country Clube. Entre os bares e cafés, que serviam de ponto de encontro, havia o Bar Royal e o Café Central.
O fechamento do Bazar Oió se deu como muitas outras livrarias durante o regime militar: ela não resisistiu às pressões da censura e da repressão e foi obrigada a fechar as portas por falta de dinheiro. O número de clientes caiu muito – quem era visto no local era logo tachado de comunista e corria o risco de ser preso. Alguns livros eram vendidos escondidos, outros, com a capa trocada. Olavo escondeu, nos fundos da livraria, escritores perseguidos, como lembra o livreiro Luiz Scartezini, filho do dono do Bazar Municipal: “essa casa serviu de bunker para escritores goianos perseguidos pela revolução. Dentre eles, Carmo Bernardo e Bernardo Élis. O Olavo inclusive levava comida escondida pra eles por muitos dias”.
O escritor Modesto Gomes, amigo pessoal do livreiro, conta que o “clima em Goiânia era o pior possível, porque o que funcionava mais era o “dedo-durismo” e todo mundo ficava com medo de ser denunciado”.  O advogado Pereira Zeka, frequentador e um dos fundadores da Faculdade de Direito da UFG, relembra que “foi uma época em que a convivência humana se tornou muito dolorosa em virtude da grande capacidade de apontar o dedo”. Pode parecer repetitivo, mas vozes diferentes contam quase que a mesma história. “Tinha que saber com quem estava conversando, porque polícia era à paisana, todo mundo investigava todo mundo”, me contou o livreiro Ivan da Silva, que na época foi vendedor do Bazar Oió.
    Um momento crucial para o fechamento da livraria foi a prisão de Olavo Tormin, em 1969. Ele e sua filha Sônia, então com vinte anos, estavam no escritório, na parte superior da loja, quando agentes da Polícia Federal entraram e pediram para falar com o dono. O livreiro, depois de uma conversa rápida, voltou-se para Sônia e disse: “Estou indo. Não sei pra onde. Eles estão me levando”. Ele passou 63 dias preso, trocando cartas com a família. O desespero da filha ainda teve que ser contido porque, como ela mesma lembra, o caminho até a sua casa para contar para a notícia a mãe foi longo já que ela não podia chamar atenção.
Grande parte do estoque da livraria foi levada pelo Exército. E em 1974, com as estantes vazias, o Bazar Oió foi fechado. O ex-gerente da livraria, Clóvis Carrilho, se recorda daqueles últimos anos: “Depois que prenderam o seu avô ficou muito difícil a situação financeira, a situação psicológica, o medo. A repressão, sabe? Sempre estava indo gente do exército lá, gente da Polícia Federal... Foi indo até acabar e acabou”.



A livraria Bazar Oió é objeto de pesquisa no projeto de mestrado “Bazar Oió: uma livraria, um livreiro e o campo literário”, que está sendo desenvolvido por mim junto ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília.

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