Lúcia Tormin Mollo
Fotos: Bazar Oió, acervo da família
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A história
do Bazar Oió está fortemente ligada à cidade de Goiânia. Quando a livraria foi
inaugurada, a capital de Goiás tinha apenas dezoito anos. A relação com a
cidade e seus moradores era muito próxima, assim como com a vida cultural da
região. Cultura que está presente inclusive na ideia originária de criação da
cidade. Goiânia foi planejada e, como lembra o folclorista Bariani Ortêncio, um
conhecedor da história de Goiás, não houve inauguração mas, sim, um batismo
cultural. Em uma conversa, ele brincava sobre os primeiros anos da cidade:
“Aqui tinha fama ruim: matou em Minas, fugiu para Goiás; matou em São Paulo,
fugiu para Goiás”. A opção adotada foi evitar ruas com os números 38 e 44,
“calibre de pistoleiro”. De qualquer modo, para ele, Goiânia se tornou uma
cidade cultural e “o embrião foi o Bazar Oió”.
O nome é,
no mínimo, diferente, O-I-Ó. A livraria começou, em 1951, a partir da ideia de
dois irmãos, Olavo e Othelo. Mas a sociedade foi desfeita e Olavo decidiu focar
suas energias nos livros. O empreendimento também tinha um espaço para
papelaria e livros didáticos, mas a literatura é que dava vida ao lugar. Os
frequentadores encontravam ali uma série de eventos culturais, como lançamentos
de livros, exposições e debates. A festa de lançamento começava já com a
entrega dos convites pelo correio, dias antes da data marcada. As rádios também anunciavam o evento mas,
talvez, a propaganda mais convincente fosse mesmo a do boca-a-boca. As prateleiras e cadeiras eram afastadas para abrir espaço. Garçons
passavam com bandejas cheias de comes e bebes, cortesia da casa. No início do
evento, o Frei Nazareno Confaloni, padre italiano e artista plástico, dava a
bênção. Depois era a hora dos discursos e, por fim, dos autógrafos. O
lançamento, que chegava a terminar meia-noite, tinha cobertura de uma rádio
local.
Bernardo
Élis, único representante de Goiás na Academia Brasileira de Letras, lançou a
segunda edição de Ermos e Gerais (1959)
na livraria, assim como Cora Coralina, o seu primeiro livro de poesias, Poemas dos becos de Goiás e estórias mais
(1965). Os moradores de Goiânia puderam ver José Mauro de Vanconcelos ali, além
de Mário Palmério, Jorge Amado e Pablo Neruda. A lista se estende já que a
cidade foi crescendo e atraindo cada vez mais eventos culturais.
Por
dois anos, Olavo Tormin publicou o Jornal
Oió, um mensário com notícias das culturas goiana e brasileira. Os
destaques da primeira edição, datada de fevereiro de 1957, são "Morre
Gabriela Mistral" e "Malba Tahan em contacto com intelectuais
goianos". Olavo Tormin também realizava
exposições, como as dos artistas plásticos Maria Guilhermina, Otto Marques e
Siron Franco, e
promovia debates de interesse da socidade, divulgados na imprensa. Os assuntos
eram os mais diversos: criação do estado do Tocantins, Modernismo, teatro em
Goiás, arquitetura contemporânea, Canal de Suez, doença de Chagas etc. Em 1956,
o impresso carioca Para Todos assim
se referia a esses momentos: "Desde fins de julho, semanalmente, às
quintas-feiras, vêm-se realizando debates culturais no Bazar Oió, a livraria
mais movimentada lá de Goiânia de propriedade do sr. Olavo Tormin" (Para Todos, Rio de Janeiro. 1956.
Quinzenal). O menor abandonado, por exemplo, já foi tema de um debate. Dele,
participaram o secretário do Interior e Justiça de Goiás, Joaquim Neves, e o
juiz de Menores, Sebastião de Souza. A ideia era propôr soluções possíveis para
cada problema.
O
Bazar Oió também costuma ser lembrado como um local que incentivava a leitura
não apenas vendendo livros, mas disponibilizando-os para pessoas que não
pudessem comprá-los. Recentemente,
encontrei uma referência à livraria que me chamou muita a atenção. Foi
na tese de doutorado da pesquisadora Orlinda Melo, pela Unicamp (2002). Ela
pesquisou os pontos de leitura de Goiânia entre os anos de 1933 e 1959 e se
deparou com o Bazar Oió e a história da empregada doméstica e benzedeira
Sebastiana (a pesquisadora não informa o nome completo), que assim se recorda
da sua experiência na livraria do Olavo Tormin:
Sempre
que saía do trabalho mais cedo, ou quando a minha patroa viajava eu ía ao Bazar
Oió. Tinha todos os livros. Lá, eles deixavam um livro de cada lançamento sobre
uma mesa. Quem quisesse podia ler esses livros lá. Eu “futricava” e lia outros
da prateleira. Lia em pé, diante da prateleira, não gostava de conversar para
não perder tempo, porque eu tinha que pegar meus filhos na escola. Nem sentia
as dores nas pernas. Nem sentia fome. Lia cada dia um pedaço do livro, e depois
eu guardava bem no fundo da prateleria, com esperanças de que ele não ia ser
vendido.
Um depoimento emocionante e do qual me aproveito para
explicar que Olavo Tormin, como indica o sobrenome, é meu parente. Para ser
mais precisa, meu avô, pai da minha mãe. Por isso, descobertas como a que
acabei de citar acima ganham grandes proporções para mim. É aí que vem um ponto
importante durante esse trabalho: manter certa distância do objeto pesquisado.
Não muita, apenas o necessário. Até porque a relação que criamos com ele é o
que nos motiva a enfrentar os obstáculos e seguir com a pesquisa. E, ao longo
dela, alguns momentos como esse nos enchem de fôlego. Lembro-me claramente do
dia em que encontrei o nome do meu avô numa citação de Lawrence Hallewell, em O livro no Brasil. Se não fosse a
sugestão do meu professor à epoca para procurar no índice remissivo, não sei
quanto tempo demoraria para achar essas palavras na página 626 da obra:
E, já em 1959, possuía um livreiro-editor
digno de menção: Olavo Tormin, que publicava obras de história e
literatura locais com o selo editorial Oió, nome de sua livraria
localizada na praça do Bandeirante, em Goiânia.
A cena cultural de Goiânia
contava ainda com outras duas livrarias, o Bazar Municipal e o Brasil Central;
tinha três cinemas, o Cine Teatro Goiânia, o Cine Goiás e o Cine Santa Maria;
além dos clubes sociais, como o Jóquei Clube e o Country Clube. Entre os bares
e cafés, que serviam de ponto de encontro, havia o Bar Royal e o Café Central.
O fechamento do Bazar Oió se deu
como muitas outras livrarias durante o regime militar: ela não resisistiu às
pressões da censura e da repressão e foi obrigada a fechar as portas por falta de dinheiro. O número
de clientes caiu muito – quem era visto no local era logo tachado de comunista
e corria o risco de ser preso. Alguns livros eram vendidos escondidos, outros,
com a capa trocada. Olavo escondeu,
nos fundos da livraria, escritores perseguidos, como lembra o livreiro Luiz
Scartezini, filho do dono do Bazar Municipal: “essa casa serviu de bunker para escritores goianos
perseguidos pela revolução. Dentre eles, Carmo Bernardo e Bernardo Élis. O
Olavo inclusive levava comida escondida pra eles por muitos dias”.
O escritor Modesto Gomes, amigo pessoal do livreiro, conta que o “clima
em Goiânia era o pior possível, porque o que funcionava mais era o
“dedo-durismo” e todo mundo ficava com medo de ser denunciado”. O advogado Pereira Zeka, frequentador e um dos
fundadores da Faculdade de Direito da UFG, relembra que “foi uma época em que a
convivência humana se tornou muito dolorosa em virtude da grande capacidade de
apontar o dedo”. Pode parecer repetitivo, mas vozes diferentes contam quase que
a mesma história. “Tinha que saber com quem estava conversando, porque polícia
era à paisana, todo mundo investigava todo mundo”, me contou o livreiro Ivan da
Silva, que na época foi vendedor do Bazar Oió.
Um momento crucial para o fechamento da
livraria foi a prisão de Olavo Tormin, em 1969. Ele e
sua filha Sônia, então com vinte anos, estavam no escritório, na parte superior
da loja, quando agentes da Polícia Federal entraram e pediram para falar com o
dono. O livreiro, depois de uma conversa rápida, voltou-se para Sônia e disse: “Estou
indo. Não sei pra onde. Eles estão me levando”. Ele passou 63 dias preso,
trocando cartas com a família. O desespero da filha ainda teve que ser contido
porque, como ela mesma lembra, o caminho até a sua casa para contar para a notícia
a mãe foi longo já que ela não podia chamar atenção.
Grande parte do estoque da livraria foi levada pelo Exército. E em
1974, com as estantes vazias, o Bazar Oió foi fechado. O ex-gerente da livraria, Clóvis Carrilho, se recorda daqueles últimos anos: “Depois
que prenderam o seu avô ficou muito difícil a situação financeira, a situação
psicológica, o medo. A repressão, sabe? Sempre estava indo gente do exército
lá, gente da Polícia Federal... Foi indo até acabar e acabou”.
A livraria Bazar Oió é objeto
de pesquisa no projeto de mestrado “Bazar Oió: uma livraria, um livreiro e o
campo literário”, que está sendo desenvolvido por mim junto ao Programa de
Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília.
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