M. Carmen Villarino Pardo
Regina Dalcastagnè
Estamos
comemorando os 50 números da revista Estudos
de Literatura Brasileira Contemporânea e os 20 anos do Grupo de Estudos em
Literatura Brasileira Contemporânea, sediado na Universidade de Brasília, mas
com integrantes de diversas instituições do país e do exterior. Não é pouco
diante das dificuldades que rondam as pesquisas e a publicação de periódicos no
Brasil, especialmente na área de Humanas. Por isso, reservamos para o volume 50
um conjunto de textos que consideramos representativos das principais
preocupações do grupo de pesquisa que edita a revista e que se abre, também a
partir dela, para o diálogo com os demais estudiosos da literatura brasileira
contemporânea, seja no âmbito nacional, seja no internacional.
As
teorias sistêmicas – com diferenças de formulação entre elas – estão
basicamente interessadas, longe das concepções idealistas e atemporais da arte
e da literatura, em “descrever e explicar como funcionam os textos na
sociedade, em situações reais e concretas” (Iglesias Santos, 1994, p. 310). De
modo que, em vez de se dedicarem “à interpretação de uma série de obras
canônicas, atentem às condições de produção, distribuição, consumo ou
institucionalização dos fenômenos literários” (Iglesias Santos, 1994, p. 310).
Não se abandona o estudo e a análise do texto
literário, mas algumas dessas orientações teóricas (como a dos campos, de
Pierre Bourdieu, e a dos polissistemas, de Itamar Even-Zohar) consideram
fundamentais também o estudo dos diferentes fatores que intervêm no
sistema/campo (instituição, mercado, repertório, produtor, consumidor) e nas
práticas e funções de que participam. Trata-se de entender os sistemas como
espaços dinâmicos, onde se produzem diferentes lutas para delimitar, a cada
momento, categorias flexíveis, como centro(s) e periferia(s), por exemplo.
Essa
maneira de compreender o funcionamento do fenômeno literário abre amplas
possibilidades para conhecer obras, autores, tendências que ficaram fora de uma
determinada tradição ou que, em uma época concreta, não ocuparam posições
destacadas dentro do sistema (Villarino Pardo, 2000, p. 10-23). Considerar sua
existência contribui para entender melhor a posição de prestígio que ocupam
outros elementos da rede literária, assim como as relações (ou a mínima
presença delas) e as dinâmicas de que participam como integrantes do mesmo
campo (Bourdieu, 1996). Estão em jogo os processos de valorização que se
aplicam dentro de um sistema a determinados produtos literários, destacando que
não se trata de uma característica inerente a eles, mas do resultado de uma
série de disputas.
Assim,
da perspectiva sistêmica, o fenômeno literário deve ser entendido como uma
atividade ligada a outras dentro do espaço social, no interior de uma
sociedade. Ficam de parte determinados apriorismos (sobretudo no que diz
respeito ao objeto de estudo) e questiona-se o modelo estático de aproximação
ao(s) fenômeno(s) literário(s). Concebida como uma instituição social, a
literatura não se limita a uma coleção de textos, fundamentalmente aqueles
legitimados. De acordo com Even-Zohar (1999, p. 29),
aceitando-se a ideia de que seria mais conveniente o tratamento da “literatura” como uma rede ou um complexo de atividades, a distinção entre “bens” e “ferramentas” nessa rede seria um passo à frente para liberar a análise da “literatura” do isolamento que resulta de tratá-la como um fenômeno sui generis.
Esse
tipo de reflexão insere-se num debate mais amplo que afeta, entre outros, o
próprio caráter do literário e, de maneira visível para o campo acadêmico (mas
não apenas), implica o questionamento da função dos estudos literários na
atualidade. Se durante muito tempo estes se centraram na análise de gêneros,
textos e autores/as canônicos – em boa medida, na perspectiva de estar
trabalhando com “monumentos ou bens comuns compartilhados” por pessoas de uma
determinada tradição e no entendimento da produção literária como um “bem”
(Even-Zohar, 1999) –, nas últimas décadas foram se instaurando outras
propostas, dependendo das tradições acadêmicas.
Cientes
do chamado “giro cultural” que os estudos de Humanidades têm experimentado,
torna-se imprescindível discutir a incorporação de novos objetos de estudo às
nossas áreas habituais de pesquisa. Desse modo, as fronteiras do literário
passaram a alargar-se não apenas a outros âmbitos artísticos “tradicionalmente próximos”
(cinema, pintura, fotografia, música etc.) como também aos formatos e espaços
digitais (cibercultura e outras propostas) e à incorporação de novos elementos
repertoriais ou de produtores/as de outros âmbitos e outras posições no campo
literário e na própria sociedade.
O
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea tem problematizado e
colocado em discussão em diferentes fóruns (como a própria revista, as
publicações em livro e artigos, os colóquios realizados no Brasil ou no
exterior) a produção literária brasileira na contemporaneidade. Nos colóquios o
foco tem sido, em alguns casos, analisar “percursos, cruzamentos e interseções”
(2014, na Georgetown University) no interior do sistema literário brasileiro
que, como em outros países, incorporou os desafios de novos modos de produção,
recepção e mediação, além de inserir novos repertórios e novos modos de
institucionalização e mercado. Noutros, a ênfase recaiu sobre “espaços,
traduções e intermediações culturais” (2013, na Université Paris-Sorbonne e na
Freie Universität de Berlim); sobre “autoria, experiência e aportes críticos
rasurados” (2013, na Universidade de Brasília); e, recentemente, sobre
“territórios, comunidades e lugares do literário” (2015, na Universidade de
Buenos Aires); “o local, o nacional, o internacional” (2016, na Universidade de
Santiago de Compostela) e as “cartografias da produção atual” (2016, na
Universidade de Brasília).
Já a revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea vem publicando dossiês sobre diferentes aspectos do campo literário (n. 34) e do espaço social (n. 22, 42 e 49), observando, especialmente, as representações de grupos marginalizados, com foco em questões vinculadas a gênero (n. 16 e 32), raça (n. 31) e classe (n. 21 e 41). Também foram abordados os diálogos e fronteiras entre literatura e política (n. 43), literatura e memória (n. 14, 27 e 40), literatura e outras linguagens (n. 37), literatura e novas mídias (n. 47) e literatura e jornalismo (n. 17), por exemplo. Estiveram entre as preocupações da revista, ainda, questões mais específicas e, às vezes, menos valorizadas no campo acadêmico de Letras, como as poéticas da oralidade (n. 35) e a literatura infantojuvenil (n. 5, 36 e 46), e mesmo discussões voltadas para a construção narrativa na contemporaneidade, como a permanência do realismo (n. 39) ou a personagem do romance (n. 26). No presente volume, que comemora os 50 primeiros números da publicação, optamos por incluir trabalhos que, em boa medida, abordam vários desses assuntos e que discutem os lugares e os limites do literário.
Com perspectivas teóricas e abordagens metodológicas
bastante diferentes entre si, além de procedências institucionais muito
variadas, os artigos oferecem um conjunto de propostas de análise da literatura
brasileira contemporânea que se tornam desafios para discutir, hoje, o estatuto
do literário e sua valorização como um bem e/ou como uma ferramenta. Em um primeiro momento, estão reunidos cinco
textos (vindos da Espanha, Itália, Dinamarca e Brasil) que trabalham com a
relação entre literatura e memória, abordando questões vinculadas às artes
plásticas, política, afetividade e sexualidade. Depois, há oito artigos
(provenientes da Argentina, Portugal, Espanha e Brasil) que buscam discutir as
novas possibilidades de construção textual na contemporaneidade e suas
implicações, tanto estéticas quanto políticas. Em seguida, temos quatro textos
(do Brasil, Itália, França e Argentina) que retomam a discussão sobre a
autorrepresentação de grupos marginalizados e os lugares da literatura de
periferia no cenário atual. Por fim, um conjunto de cinco artigos (todos
brasileiros) que indagam as políticas públicas para a literatura no Brasil –
políticas que correm o risco de serem extintas a partir de agora, quando há um
retrocesso em todas as iniciativas para a democratização da cultura no país. O
dossiê se fecha com o texto de Rita Terezinha Schmidt, que discute o lugar dos
estudos literários e das Ciências Humanas nas universidades do país e no
exterior.
Esperamos que este trabalho seja uma contribuição
para a ampliação do acesso à literatura no Brasil, desde sua leitura até sua
produção, passando ainda por sua circulação, consumo, ensino e avaliação
crítica.
Para ler o
número 50 da revista Estudos de
Literatura Brasileira Contemporânea, clique aqui.
***
Referências
BOURDIEU, Pierre (1991). Le champ littéraire. Actes de la Recherche, v. 89, n. 1, p. 3-46, set.
BOURDIEU, Pierre (1996). As regras da arte: génese e estrutura do campo literário. Tradução de Miguel
Serras Pereira. Lisboa: Presença.
EVEN-ZOHAR, Itamar (1990). The
“literary system”. Poetics Today,
v. 11, n. 1, p. 27-44.
EVEN-ZOHAR, Itamar (1999). La literatura como
bienes y como herramientas. In: VILLANUEVA, Darío; MONEGAL, Antonio; BOU, Enric
(Coord.). Sin fronteras: ensayos
de literatura comparada en homenaje a Claudio Guillén. Madrid: Castalia, p. 27-36.
EVEN-ZOHAR, Itamar (2007). Polisistemas de cultura. Tel Aviv: Universidad de Tel Aviv/Laboratorio de
Investigación de la Cultura, 2007-2011. Disponível em:
https://goo.gl/1Yn9Q7.
IGLESIAS SANTOS, Montserrat (1994). El sistema literario: teoría empírica y
teoría de los polisistemas. In: VILLANUEVA, Darío (Comp.). Avances en teoría
de la literatura: estética de la
recepción, pragmática, teoría empírica y teoría de los polisistemas.
Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, p. 309-357.
VILLARINO PARDO, Maria del Carmen (2000). A República dos sonhos: a trajetória literária de Nélida Piñon na
segunda metade do século XX. Santiago de Compostela: Servicio de
Publicacións da Univ. de Santiago de Compostela. CD-Rom.
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