8 de janeiro de 2019

Literatura, mulheres e o direito a ter direitos


Edma de Góis


Imagem: Miriam Schapiro 


Já passa da página cinquenta quando a cena de violência aparece carregada nas tintas. A narradora sofre violência física e sexual de um ex crush, (“não éramos namorados porque ninguém pediu que sim”, ela avisa aos leitores). Daí em diante a narrativa dá uma curva brusca, sem abrir mão do lirismo, muito menos afastar o leitor. Pelo contrário, magoados pela confiança quebrada, e embalados por certa dose de inocência juvenil que teria tempo e espaço para acabar, acompanhamos ávidos o desfecho dessa narradora dos 7 aos 52 anos. Um dos livros mais interessantes tanto na forma quanto no tema, da recente safra de literatura brasileira contemporânea, O peso do pássaro morto (Editora Nós), de Aline Bei, uma das vencedoras do Prêmio São Paulo de Literatura 2018 (Melhor Livro do Ano –Estreantes / menos de 40 anos) toca em temas ainda pouco explorados em nossa literatura, sobretudo quando a autoria é feminina e branca, com raras exceções: a violência sexual e a maternidade não sacralizada, de onde advém a incomunicabilidade entre mãe e filho.
No ano em que mulheres clamaram pela legalização do aborto na Argentina e a hashtag “Ele não” ecoou no Brasil e no mundo, desceu do digital para ocupar as ruas, para citar dois casos em que mulheres se mostraram organizadas, o livro nos serve como flanco aberto para pensarmos sobre o que a literatura tem feito em relação aos direitos das mulheres. Se os direitos das mulheres fazem parte da discussão de direitos humanos, pelo menos desde 1993, quando a Declaração de Viena os incorporou no âmbito da discussão internacional dos direitos humanos, é fundamental observarmos também que representações andam alimentando o nosso imaginário social.
Em artigo do recém-lançado Literatura e Direitos Humanos (Editora Zouk), a professora da Universidade de Brown Leila Lehnen sugere que o modo como a literatura realça a linguagem pode enriquecer o modo como entendemos a democracia e a sociedade brasileira. É inevitável dizer que os “direitos” expressos na literatura brasileira contemporânea são diretamente ligados ao nosso próprio entendimento de democracia, uma vez que toma para si a função de representar o que foi conquistado e o que continua como uma deficiência a ser reparada no campo social. Assim, a literatura, e podemos dizer também outros bens culturais simbólicos, pode nos ajudar a refletir sobre direitos no campo da cultura, mas também os significados da democracia e da prática democrática. O texto de Lehnen se dedica a analisar o discurso democrático na produção literária contemporânea, pegando como caso a e-antologia de poesia Vinagre: uma antologia de poetas neobarrocos, organizado pelos poetas Fabiano Calixto e Paulo Tostes e lançado durante as manifestações de junho de 2013. Os poemas escolhidos, nos termos de Lehen, abordam “a ideia do direito a ter direitos, de uma coletividade não hegemônica e da democracia participativa”.
Me permito contrabandear algumas ideias colocadas por Lehen para pensar certa produção de autoras mulheres brasileiras que parecem mudar a rota da representação e mais que isso, propõem a representação de dissensos, nos termos do filósofo francês Jacques Rancière. O peso do pássaro morto, assim como Com armas sonolentas: um romance de formação (Companhia das Letras), de Carola Saavedra, lançado em 2018, são narrativas em que as maternidades rompem com a visão da maior parte da produção de autoras brasileiras brancas. Não quero dizer com isso, que seus livros inauguram um outro jeito de falar sobre a escolha de ser mãe, bem como de outros temas caros às mulheres como violência doméstica, abuso e estupro, afinal as obras de Ana Maria Gonçalves, Adriana Lisboa, Cíntia Moscovish, Conceição Evaristo e Tatiana Salem Levy, já trazem esses temas, com especial destaque ao modo como as autoras negras contemporâneas narram as experiências de maternagem, amorosas mas embaladas por dificuldades reais associadas ao estrato social. O que chama atenção nos livros citados é o interesse de incorporar tais temas e levanto ainda a consonância com produções estrangeiras também lançadas nos últimos anos, caso da adaptação de O Conto da Aia, de Margaret Atwood, e do romance Canção de Ninar, da franco-marroquina Leïla Slimali, em que a mãe que contrata a babá assassina se vê em meio a culpa e o arrependimento por ter filhos.
No romance de Aline Bei, o filho é gerado a partir de uma violência, de uma agressão silenciada por uma jovem, tal e qual acontece na vida fora da literatura. Os pais da narradora decidem por ela o destino da criança gestada: nascer e ser criado pela mãe. O único modo possível de viverem, sob um passado velado, faz da incomunicabilidade entre mãe e filho o contraponto ao crescimento de um amor genuíno e do mito da maternidade como vocação feminina. Já o romance de Carola Saavedra traz diferentes experiências de mães e filhas nas narrativas de três personagens, ainda tocando no não desejo de ser mãe, na violência doméstica e na difícil tarefa de se desligar dos papeis atribuídos ao gênero feminino. Além disso, uma das vozes que ecoa no livro de Saavedra é de Sor Juana Inés de la Cruz, escritora, poeta e dramaturga mexicana, considerada a primeira intelectual latino-americana. Ao recuperar a imagem de mulher que se tornou freira para conseguir estudar e escrever em pleno século XVII, a narrativa traz ainda um elogio ao direito das mulheres ao conhecimento, fazendo um traçado em direção aos movimentos de mulheres na atualidade. Nesse caso, a resistência das mulheres não deve ser palavra sacada da cartilha pós-eleitoral, porque nunca esteve engavetada, esperando uso em tempos mais difíceis.
Mal assumiu o recém-criado Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a advogada e pastora evangélica Damares Alves é destaque no centro gravitacional de polêmicas do governo Jair Bolsonaro. Entre as fagulhas soltas, está a afirmação em tom jocoso de que meninos devem vestir azul e meninas cor de rosa. Antes de assumir o cargo, ela defendeu o Estatuto do Nascituro, que prevê pagamento de bolsa para mulheres estupradas que decidirem levar a gravidez em diante, declarando em seguida ter sido, ela mesma, vítima de estupros sistemáticos dos 8 aos 10 anos. A partilha de sua experiência é um claro aceno à criminalização do aborto uma vez que não pretende tratar o tema como de saúde pública. Segundo a ministra, a gravidez é um problema apenas durante nove meses. Não é demais lembrar, inclusive para Damares, que a cada ano, o Sistema Único de Saúde (SUS) realiza mais de 200 mil atendimentos por complicações pós-aborto, na maioria dos casos em decorrência de procedimentos induzidos. Além disso, o aborto é a quinta causa de morte materna no país, sendo permitido apenas desde 2012 em caso de estupro, risco de morte e anencefalia do feto.
Quando tempo foi preciso para que mulheres passassem a falar sobre direitos sem risco de julgamento? Quando tempo levou até que as experiências das mulheres em relação ao aborto, à fertilidade e à violência doméstica e sexual virassem matéria literária e não mero artífice de enredo? Paula Queiroz Dutra, doutoranda em Literatura e Práticas Sociais na Universidade de Brasília (UnB), que também assina artigo em Literatura e Direitos Humanos, defende a literatura como terreno fértil para analisarmos as bases da violência, assim como instrumento de educação e formação de sujeitos mais atentos às desigualdades estruturais, daí a importância de textos que mostrem os dissensos sociais. É ela quem nos lembra outro texto importante, A invenção dos direitos humanos, em que a historiadora Lynn Hunt observa a literatura e a experiência de se colocar no lugar do outro, propiciado por ela, como elementos fundamentais para a compreensão da ideia de direitos humanos que temos hoje. Ou seja, a literatura nos ajudando a criar nosso próprio imaginário sobre os direitos humanos e por conseguinte os direitos das mulheres.
 De um lado a delicadeza como Aline Bei conduz sua narradora da infância à maturidade, uma mulher cujas escolhas na vida adulta foram todas tomadas a partir da herança de uma violência não denunciada e de outro a recuperação do pensamento de Sor Juana por Saavedra disparam outro leitmotiv caro ao ano de 2019, o de que o conhecimento é um dos mais poderosos arsenais das mulheres e talvez um dos principais direitos a que não podem se furtar.
O cenário que se anuncia desde o primeiro dia de governo é de que o direito a ter direitos, muito longe de plenamente conquistado, é ceifado sem escuta mútua e equilíbrio de interesses. Nesses tempos, a arte em geral e a literatura em particular dobram seu potencial de esclarecimento e reflexão, reassumindo seu papel estético, mas também ético em defesa dos indivíduos sem distinção em razão de raça, religião, classe social ou gênero.

Edma de Góis é jornalista, pós-doutoranda na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e pesquisadora do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB).

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