Edma de Góis
Imagem: Miriam Schapiro |
Já passa da página cinquenta
quando a cena de violência aparece carregada nas tintas. A narradora sofre
violência física e sexual de um ex crush,
(“não éramos namorados porque ninguém pediu que sim”, ela avisa aos leitores).
Daí em diante a narrativa dá uma curva brusca, sem abrir mão do lirismo, muito
menos afastar o leitor. Pelo contrário, magoados pela confiança quebrada, e
embalados por certa dose de inocência juvenil que teria tempo e espaço para
acabar, acompanhamos ávidos o desfecho dessa narradora dos 7 aos 52 anos. Um
dos livros mais interessantes tanto na forma quanto no tema, da recente safra
de literatura brasileira contemporânea, O
peso do pássaro morto (Editora Nós), de Aline Bei, uma das vencedoras do
Prêmio São Paulo de Literatura 2018 (Melhor Livro do Ano –Estreantes / menos de
40 anos) toca em temas ainda pouco explorados em nossa literatura, sobretudo
quando a autoria é feminina e branca, com raras exceções: a violência sexual e
a maternidade não sacralizada, de onde advém a incomunicabilidade entre mãe e
filho.
No ano em que mulheres
clamaram pela legalização do aborto na Argentina e a hashtag “Ele não” ecoou no
Brasil e no mundo, desceu do digital para ocupar as ruas, para citar dois casos
em que mulheres se mostraram organizadas, o livro nos serve como flanco aberto
para pensarmos sobre o que a literatura tem feito em relação aos direitos das
mulheres. Se os direitos das mulheres fazem parte da discussão de direitos
humanos, pelo menos desde 1993, quando a Declaração de Viena os incorporou no
âmbito da discussão internacional dos direitos humanos, é fundamental
observarmos também que representações andam alimentando o nosso imaginário
social.
Em artigo do recém-lançado Literatura e Direitos Humanos (Editora
Zouk), a professora da Universidade de Brown Leila Lehnen sugere que o modo como
a literatura realça a linguagem pode enriquecer o modo como entendemos a
democracia e a sociedade brasileira. É inevitável dizer que os “direitos”
expressos na literatura brasileira contemporânea são diretamente ligados ao
nosso próprio entendimento de democracia, uma vez que toma para si a função de
representar o que foi conquistado e o que continua como uma deficiência a ser
reparada no campo social. Assim, a literatura, e podemos dizer também outros
bens culturais simbólicos, pode nos ajudar a refletir sobre direitos no campo
da cultura, mas também os significados da democracia e da prática democrática.
O texto de Lehnen se dedica a analisar o discurso democrático na produção
literária contemporânea, pegando como caso a e-antologia de poesia Vinagre:
uma antologia de poetas neobarrocos, organizado pelos poetas Fabiano
Calixto e Paulo Tostes e lançado durante as manifestações de junho de 2013. Os
poemas escolhidos, nos termos de Lehen, abordam “a ideia do direito a ter
direitos, de uma coletividade não hegemônica e da democracia participativa”.
Me permito contrabandear
algumas ideias colocadas por Lehen para pensar certa produção de autoras
mulheres brasileiras que parecem mudar a rota da representação e mais que isso,
propõem a representação de dissensos, nos termos do filósofo francês Jacques
Rancière. O peso do pássaro morto, assim
como Com armas sonolentas: um romance de formação (Companhia das
Letras), de Carola Saavedra, lançado em 2018, são narrativas em que as
maternidades rompem com a visão da maior parte da produção de autoras
brasileiras brancas. Não quero dizer com isso, que seus livros inauguram um
outro jeito de falar sobre a escolha de ser mãe, bem como de outros temas caros
às mulheres como violência doméstica, abuso e estupro, afinal as obras de Ana
Maria Gonçalves, Adriana Lisboa, Cíntia Moscovish, Conceição Evaristo e Tatiana
Salem Levy, já trazem esses temas, com especial destaque ao modo como as
autoras negras contemporâneas narram as experiências de maternagem, amorosas
mas embaladas por dificuldades reais associadas ao estrato social. O que chama
atenção nos livros citados é o interesse de incorporar tais temas e levanto
ainda a consonância com produções estrangeiras também lançadas nos últimos anos,
caso da adaptação de O Conto da Aia,
de Margaret Atwood, e do romance Canção
de Ninar, da franco-marroquina Leïla Slimali, em que a mãe que contrata a
babá assassina se vê em meio a culpa e o arrependimento por ter filhos.
No romance de Aline Bei, o
filho é gerado a partir de uma violência, de uma agressão silenciada por uma
jovem, tal e qual acontece na vida fora da literatura. Os pais da narradora
decidem por ela o destino da criança gestada: nascer e ser criado pela mãe. O
único modo possível de viverem, sob um passado velado, faz da incomunicabilidade
entre mãe e filho o contraponto ao crescimento de um amor genuíno e do mito da
maternidade como vocação feminina. Já o romance de Carola Saavedra traz
diferentes experiências de mães e filhas nas narrativas de três personagens,
ainda tocando no não desejo de ser mãe, na violência doméstica e na difícil
tarefa de se desligar dos papeis atribuídos ao gênero feminino. Além disso, uma
das vozes que ecoa no livro de Saavedra é de Sor Juana Inés de la Cruz,
escritora, poeta e dramaturga mexicana, considerada a primeira intelectual
latino-americana. Ao recuperar a imagem de mulher que se tornou freira para
conseguir estudar e escrever em pleno século XVII, a narrativa traz ainda um
elogio ao direito das mulheres ao conhecimento, fazendo um traçado em direção
aos movimentos de mulheres na atualidade. Nesse caso, a resistência das
mulheres não deve ser palavra sacada da cartilha pós-eleitoral, porque nunca
esteve engavetada, esperando uso em tempos mais difíceis.
Mal assumiu o recém-criado
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a advogada e pastora
evangélica Damares Alves é destaque no centro gravitacional de polêmicas do
governo Jair Bolsonaro. Entre as fagulhas soltas, está a afirmação em tom
jocoso de que meninos devem vestir azul e meninas cor de rosa. Antes de assumir
o cargo, ela defendeu o Estatuto do Nascituro, que prevê pagamento de bolsa
para mulheres estupradas que decidirem levar a gravidez em diante, declarando
em seguida ter sido, ela mesma, vítima de estupros sistemáticos dos 8 aos 10
anos. A partilha de sua experiência é um claro aceno à criminalização do aborto
uma vez que não pretende tratar o tema como de saúde pública. Segundo a ministra,
a gravidez é um problema apenas durante nove meses. Não é demais lembrar,
inclusive para Damares, que a cada ano, o Sistema Único de Saúde (SUS) realiza
mais de 200 mil atendimentos por complicações pós-aborto, na maioria dos casos
em decorrência de procedimentos induzidos. Além disso, o aborto é a quinta
causa de morte materna no país, sendo permitido apenas desde 2012 em caso de
estupro, risco de morte e anencefalia do feto.
Quando tempo foi preciso para
que mulheres passassem a falar sobre direitos sem risco de julgamento? Quando
tempo levou até que as experiências das mulheres em relação ao aborto, à
fertilidade e à violência doméstica e sexual virassem matéria literária e não
mero artífice de enredo? Paula Queiroz Dutra, doutoranda em Literatura e
Práticas Sociais na Universidade de Brasília (UnB), que também assina artigo em
Literatura e Direitos Humanos,
defende a literatura como terreno fértil para analisarmos as bases da
violência, assim como instrumento de educação e formação de sujeitos mais
atentos às desigualdades estruturais, daí a importância de textos que mostrem
os dissensos sociais. É ela quem nos lembra outro texto importante, A invenção dos direitos humanos, em que
a historiadora Lynn Hunt observa a literatura e a experiência de se colocar no
lugar do outro, propiciado por ela, como elementos fundamentais para a
compreensão da ideia de direitos humanos que temos hoje. Ou seja, a literatura
nos ajudando a criar nosso próprio imaginário sobre os direitos humanos e por
conseguinte os direitos das mulheres.
De um lado a delicadeza como Aline Bei conduz
sua narradora da infância à maturidade, uma mulher cujas escolhas na vida
adulta foram todas tomadas a partir da herança de uma violência não denunciada
e de outro a recuperação do pensamento de Sor Juana por Saavedra disparam outro
leitmotiv caro ao ano de 2019, o de que o conhecimento é um dos mais poderosos
arsenais das mulheres e talvez um dos principais direitos a que não podem se
furtar.
O cenário que se anuncia desde
o primeiro dia de governo é de que o direito a ter direitos, muito longe de
plenamente conquistado, é ceifado sem escuta mútua e equilíbrio de interesses.
Nesses tempos, a arte em geral e a literatura em particular dobram seu
potencial de esclarecimento e reflexão, reassumindo seu papel estético, mas
também ético em defesa dos indivíduos sem distinção em razão de raça, religião,
classe social ou gênero.
Edma de Góis é jornalista,
pós-doutoranda na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e pesquisadora do
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de
Brasília (UnB).
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