Conceição Evaristo
Imagem: M.C. Escher
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Talvez o primeiro sinal gráfico, que me
foi apresentado como escrita, tenha vindo de um gesto antigo de minha mãe.
Ancestral, quem sabe? Pois de quem ela teria herdado aquele ensinamento, a não
ser dos seus, os mais antigos ainda? Ainda me lembro, o lápis era um graveto,
quase sempre em forma de uma forquilha, e o papel era a terra lamacenta, rente
às suas pernas abertas. Mãe se abaixava, mas antes cuidadosamente ajuntava e
enrolava a saia, para prendê-la entre as coxas e o ventre. E, de cócoras, com
parte do corpo quase alisando a umidade do chão, ela desenhava um grande sol,
cheio de infinitas pernas. Era um gesto solene, que acontecia sempre
acompanhado pelo olhar e pela postura cúmplice das filhas, eu e minhas irmãs,
todas nós ainda meninas. Era um ritual de uma escrita composta de múltiplos
gestos, em que todo corpo dela se movimentava e não só os dedos. E os nossos
corpos também, que se deslocavam no espaço acompanhando os passos de mãe em
direção à página-chão em que o sol seria escrito. Aquele gesto de
movimento-grafia era uma simpatia para chamar o sol. Fazia-se a estrela no
chão.
Na composição daqueles traços, na
arquitetura daqueles símbolos, alegoricamente ela imprimia todo o seu
desespero. Minha mãe não desenhava, não escrevia somente um sol, ela chamava
por ele, assim como os artistas das culturas tradicionais africanas sabem que
as suas máscaras não representam uma entidade, elas são as entidades esculpidas
e nomeadas por eles. E, no círculo-chão, minha mãe colocava o sol, para que o
astro se engrandecesse no infinito e se materializasse em nossos dias. Nossos
corpos tinham urgências. O frio se fazia em nossos estômagos. Na nossa pequena
casa, roupas molhadas, poucas as nossas e muitas as alheias, isto é, as das
patroas, corriam o risco de mofarem acumuladas nas tinas e nas bacias. A chuva
contínua retardava o trabalho e o pouco dinheiro, advindo dessa tarefa,
demorava mais e mais no tempo. Precisávamos do tempo seco para enxugar a
preocupação da mulher que enfeitava a madrugada com lençóis arrumados um a um
nos varais, na corda bamba da vida. Foi daí, talvez, que eu descobri a função,
a urgência, a dor, a necessidade e a esperança da escrita. É preciso
comprometer a vida com a escrita ou é o inverso? Comprometer a escrita com a
vida?
Mais um momento, ainda bem menina, em
que a escrita me apareceu em sua função utilitária e às vezes, até
constrangedora, era no momento da devolução das roupas limpas. Uma leitura
solene do rol acontecia no espaço da cozinha das senhoras:
4 lençóis
brancos,
4
fronhas,
4
cobre-leitos,
4 toalhas de
banho,
4 toalhas de
rosto,
2 toalhas de
mesa,
15
calcinhas,
20
toalhinhas,
10
cuecas,
7 pares de
meias,
etc., etc.,
etc.
As mãos lavadeiras, antes tão firmes no
esfrega-torce e no passa-dobra das roupas, ali diante do olhar conferente das
patroas, naquele momento se tornavam trêmulas, com receio de terem perdido ou
trocado alguma peça. Mãos que obedeciam a uma voz-conferente. Uma mulher pedia,
a outra entregava. E quando, eu menina testemunhava as toalhinhas antes
embebidas de sangue, e depois, já no ato da entrega, livres de qualquer odor ou
nódoa, mais a minha incompreensão diante das mulheres brancas e ricas crescia.
As mulheres de minha família, não sei como, no minúsculo espaço em que
vivíamos, segredavam seus humores íntimos. Eu não conhecia o sangramento de
nenhuma delas. E quando em meio às roupas sujas, vindas para a lavagem, eu
percebia calças de mulheres e minúsculas toalhas, não vermelhas, e sim
sangradas do corpo das madames, durante muito tempo pensei que as mulheres
ricas urinassem sangue de vez em quando.
Foram, ainda, essas mãos lavadeiras,
com seus sois riscados no chão, com seus movimentos de lavar o sangue íntimo de
outras mulheres, de branquejar a sujeira das roupas dos outros, que
desesperadamente seguraram em minhas mãos. Foram elas que guiaram os meus dedos
no exercício de copiar meu nome, as letras do alfabeto, as sílabas, os números,
difíceis deveres de escola para crianças oriundas de famílias semianalfabetas.
Foram essas mãos também que, folheando comigo revistas velhas, jornais e poucos
livros que nos chegavam recolhidos dos lixos ou recebidos das casas dos ricos,
aguçaram a minha curiosidade para a leitura e para a escrita. Daquelas mãos
lavadeiras recebi também cadernos feitos de papeis de embrulho de pão, ou ainda
outras folhas soltas, que, pacientemente costuradas, evidenciavam a nossa
pobreza, e distinguiam mais uma de nossas diferenças, em um grupo escolar que
nos anos 50 recebia a classe média alta belorizontina.
Das mãos lavadeiras, recebi ainda
listas de mantimentos, palavras cifradas, preços calculados para não
ultrapassar o nosso minguado orçamento (sempre ultrapassavam) e lá ia eu,
menina, às tendinhas, aos armazéns e às padarias perto da favela para fazer
compras. Nesse exercício de quase adivinhar os textos escritos produzidos por
minha família, quem sabe o meu aprendizado para um dia caminhar pelas vias da
ficção...
Ainda, uma de minhas tias, a que me
criou, tinha por hábito anotar resumidamente em folhas de papéis, datas e
acontecimentos importantes, desde fatos relacionados à economia doméstica a
acontecimentos sociais ou religiosos. Anotações familiares como:
“A nossa
última galinha d’angola fugiu semana passada, isto é, no final do mês de novembro”.
“No dia 13
de dezembro, pus a galinha garnisé para chocar sobre nove ovos”.
“Dona
Etelvina de Seu Basílio voltou para São Paulo no dia 15 de agosto de
1965”.
“Já paguei
duas mensalidades para ajudar na festa da Capela do Rosário”.
“Maria Inês,
minha sobrinha ficou noiva no dia 22 de junho de 1969”.
E à medida que eu crescia e os meus
conhecimentos também, alguns desses eventos passaram a ser registrados por mim,
como também passou a ser de minha responsabilidade cuidar de meus irmãos
menores na escola, acompanhar seus deveres, ir às reuniões escolares e
transmitir os resultados para mim mãe. De meus irmãos passei a acompanhar os
deveres das crianças menores vizinhas. No pequeno quintal de nossa casa,
debaixo das árvores, improvisei uma sala de aula. Das moedas, que me eram dadas
pelas mães gratas pelo desenvolvimento de seus filhos na escola, surgiam meu
primeiro salariozinho. Riqueza que me permitia comprar ora o pão diário, ora
açúcar, ora o leite do irmãozinho menor, ora um caderno para mim, e às vezes
algum livrinho (revistinhas infantis, gibis, que não sei porque eu considerava
como sendo livro) ou ainda obter uma alegria maior: doces, doces,
doces...
Mas digo sempre: creio que a gênese de
minha escrita está no acúmulo de tudo que ouvi desde a infância. O acúmulo das
palavras, das histórias que habitavam nossa casa e adjacências. Dos fatos
contados a meia-voz, dos relatos da noite, segredos, histórias que as crianças
não podiam ouvir. Eu fechava os olhos fingindo dormir e acordava todos os meus
sentidos. O meu corpo por inteiro recebia palavras, sons, murmúrios, vozes
entrecortadas de gozo ou dor dependendo do enredo das histórias. De olhos
cerrados eu construía as faces de minhas personagens reais e falantes. Era um
jogo de escrever no escuro. No corpo da noite.
Na origem da minha escrita ouço os gritos,
os chamados das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das portas
contando em voz alta uma para outras as suas mazelas, assim como as suas
alegrias. Como ouvi conversas de mulheres! Falar e ouvir, entre nós, era talvez
a única defesa, o único remédio que possuíamos. Venho de uma família em que as
mulheres, mesmo não estando totalmente livres de uma dominação machista,
primeiro a dos patrões, depois a dos homens seus familiares, raramente se
permitiam fragilizar. Como “cabeça” da família, elas construíam um mundo
próprio, muitas vezes distantes e independentes de seus homens e mormente para
apoiá-los depois. Talvez por isso tantas personagens femininas em meus poemas e
em minhas narrativas? Pergunto sobre isto, não afirmo.
Afirmo, porém que foi do tempo/espaço
que aprendi desde criança a colher as palavras. Não nasci rodeada de livros, do
meu berço trago a propensão, o gosto para ouvir e contar histórias. A grande
oportunidade para a leitura constante me chegou, quando eu, já quase mocinha,
tinha a autonomia para ir e vir à Biblioteca Pública de Belo Horizonte,
casa-tesouro, na qual uma das minhas tias se tornou servente.
Se a leitura desde a adolescência foi
para mim um meio, uma maneira de suportar o mundo, pois me proporcionava um
duplo movimento de fuga e inserção no espaço em que eu vivia, a escrita, também
desde aquela época, abarcava estas duas possibilidades. Fugir para sonhar e
inserir-se para modificar. Essa inserção para mim pedia a escrita. E se
inconscientemente, desde pequena, nas redações escolares eu inventava outro
mundo, pois dentro dos meus limites de compreensão eu já havia entendido a
precariedade da vida que nos era oferecida, aos poucos fui ganhando uma
consciência. Consciência que compromete a minha escrita como um lugar de autoafirmação
de minhas particularidades, de minhas especificidades como
sujeito-mulher-negra.
E retomando a imagem da escrita
diferencial de minha mãe, que surge marcada por um comprometimento de traços e
corpo (o dela e nossos) e ainda a um de diário escrito
por ela, volto ao gesto em que ela escrevia o sol na terra e imponho a mim
mesma uma pergunta. O que levaria determinadas mulheres, nascidas e criadas em
ambientes não letrados, e quando muito, semialfabetizados, a romperem com a
passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita?
Tento responder. Talvez, estas mulheres
(como eu) tenham percebido que se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o
de escrever ultrapassa os limites de uma percepção da vida. Escrever pressupõe
um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto
inscrição no interior do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por
mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais
diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um
sentido de insubordinação. Insubordinação que pode se evidenciar, muitas vezes,
desde uma escrita que fere “as normas cultas” da língua, caso exemplar o de
Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da matéria narrada.
A nossa escrevivência não pode ser lida
como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus
sonos injustos.
Texto publicado originalmente no livro Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas
interfaces, organizado por Marcos Antônio Alexandre. Belo Horizonte: Mazza,
2007, pp. 16-21.
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