Nívia Maria Santos Silva
Universidade Federal da Bahia
Imgem: Robert Rauschenberg, Untitled, Tate Modern |
Recentemente,
a editora Companhia das letras lançou uma antologia de poetas brasileiros
contemporâneos, É agora como nunca (2017),
organizada pela cantora e compositora Adriana Calcanhoto. O título é um verso tirado de um dos poemas finais da antologia, “Ponteiro”,
de Laura Liuzzi, publicado originalmente no livro Desalinho (2014), lançado pela saudosa Cosac Naify. Em seu
subtítulo a antologia se promete: “antologia incompleta da poesia contemporânea
brasileira”. A orelha, por sua vez, fala dos riscos que corre Calcanhoto “Ao
apresentar esta reunião de 41 poetas brasileiros contemporâneos, instantâneos,
novos, novíssimos”. O compromisso que ela assume não é a de uma especialista,
mas a de uma “leitora especial – diletante e delicada”.
Não vou
entrar na linha dos que rechaçam o livro por ter sido escrito por uma cantora e
compositora, penso que ela já pagou pedágios suficientes para tanto, nem vou
fazer a vez dos ressentidos por não terem os seus escolhidos na reunião de
poetas aí elencados. Antologiar é selecionar, é escolher e, consequentemente,
excluir. Daí a incompletude ser essência e não circunstância das antologias. Diante
disso, o subtítulo se mostra redundante uma vez que toda antologia é uma
reunião que parte de escolhas, muitas vezes, carregadas de subjetividade. Por
isso, me incomoda a quantidade de ressalvas presentes na capa, na orelha, na
apresentação. É possível fazer uma antologia que seja completa?
Fica
evidente que a insistência com que pede desculpas
é uma estratégia para atenuar possíveis críticas e diminuir o impacto das
ausências. A impressão que passa é a de que não se deve exigir tanto do livro,
afinal ele não passa de um “livro de férias” escrito por uma cantora. Será? Esse
discurso da modéstia, e até de certo desinteresse, é o que me preocupa na antologia,
pois, por mais que queira passar o ar de ser um livro “pessoal, intransferível,
autoral”, ele é um registro desse “instantâneo da poesia brasileira agora” e,
enquanto registro, sublinha nomes e demarca geografias.
A
despretensão que acompanha É agora como
nunca não condiz com a força comercial da editora Companhia das Letras que
o publica, lança e distribui nacionalmente, nem com a visibilidade que a artista
Adriana Calcanhoto dá à obra, pois ela, não só por causa de produções como o excelente
Fábrica de poemas (1994), tem um nome
conhecido e reconhecido como ponto de intersecção entre o campo da música e o
campo literário, dos quais é uma habitué
e uma das responsáveis, na contemporaneidade, por misturar esse caldeirão da
letra de música e do poema num diálogo e, por vezes, numa fusão tão homogênea que
não se sabe mais o que é o ferro ou o que é o carbono.
O que
quero dizer é que o fato de Calcanhoto não ser uma “especialista” não conta
como algo negativo, e sim aumenta ainda mais o apelo comercial da obra e seu
alcance, já que amplia o público alvo para além dos muros da academia. É quase
certo que nenhum dos poetas eleitos por ela vendeu tantos livros quanto ela
vendeu CDs ou até mesmo seu divertido livro de crônicas, Saga lusa (2008), que escreveu em Portugal. O discurso da despretensão
não consegue apagar também o fato de que a Companhia das letras atua como uma
instância reguladora do meio, nem a realidade de que as antologias,
historicamente, são importantes não só por afirmar e divulgar a existência
desses ou daqueles poetas, mas, sobretudo, por atribuir-lhes uma chancela.
Não
podemos nos esquecer, por exemplo, da importância de antologias como 26 poetas hoje (1976) e Esses poetas (2001), da atuante professora
e crítica literária Heloísa Buarque de Holanda, nas quais se publicaram nomes
como Francisco Alvim, Antonio Carlos de Brito (Cacaso), Capinan, Waly Salomão, Ana
Cristina Cesar, Antonio Cícero, Carlito Azevedo, Ricardo Aleixo. A editora Objetiva,
que hoje faz parte do grupo Companhia das letras, também lançou antologias que
viraram referência, como Os cem melhores
contos brasileiros do século e Os cem
melhores poemas brasileiros do século, ambas organizadas pelo professor,
crítico e poeta Ítalo Moriconi e lançadas em 2001. Além de selecionar e
divulgar, ainda traziam na capa um juízo de valor, aqueles ali elencados eram
os melhores do século, no caso, do
século xx.
Curioso
que, no mesmo ano, a editora Geração editorial também se aventurou a fazer uma
antologia que reunisse os melhores do século passado, mas em vez de apostar nos
poemas, intitulou a obra de Os cem
melhores poetas brasileiros do século (2001), organizada pelo jornalista e
poeta José Nêumanne Pinto. Como toda antologia é relativa, há poetas
considerados melhores do século por Nêumanne que não têm poemas na antologia de
Moriconi, como Bruno Tolentino, Ildásio Tavares e Orides Fontela, assim como há
autores de poemas considerados melhores do século por Moriconi que não figuram
na lista de Nêumanne, como Torquato Neto, Gilka Machado e Zila Mamede.
Em
comparação com essas e outras antologias, como a coleção Roteiro da poesia brasileira, da editora Global, uma das coisas que
fazem falta em É agora como nunca é a
existência de um ensaio introdutório ou pelo menos de um texto de apresentação
de maior fôlego. Talvez essa falta apenas seja coerente com a proposta de ser apenas
a listagem de uma leitora “não acadêmica ou crítica”. Cabe destaque ainda a notável
semelhança entre as capas de É agora como
nunca e Os cem melhores poemas
brasileiros do século. Além de ambas terem passado a ser do mesmo grupo editorial,
a disposição dos nomes dos autores eleitos na capa e as cores em amarelo e azul
fazem com que o despretensioso “livro
de férias” lançado em 2016 remeta à
pretensiosa seleção dos melhores lançada em 2001, dando um ar de continuidade
ou, pelo menos, de sequência. Só que, enquanto a antologia de Moriconi diz abertamente
para o que veio, a de Calcanhoto, por trás do mea culpa, parece querer disfarçar a sua importância e abrangência.
O que
quero acentuar é que, por mais que haja critérios técnicos ou não ou que o
antologista seja ou não um “especialista”, toda antologia, uma vez publicada, ainda
mais se for por uma editora de peso, não é apenas uma “lista de preferidos”, é
a formação de uma referência e, nesse caso particular, uma referência para se
ler a literatura contemporânea, o que tem como efeito direto ou indireto a hierarquização
e a valoração daqueles que passam a existir
por meio dela e a ressoar, em alguma medida, na formação de novos poetas. Antologias
publicadas viram testemunhos de época. A tarefa do antologista é criar uma
espécie de catálogo, guia, inventário, por mais que pareça querer, Calcanhoto
não pode fugir dessa responsabilidade.
Ao falar
de responsabilidades, não posso deixar de realçar que positivamente a antologia
colocou muitas poetas em cena. Apesar do placar continuar pendendo para eles, 18
mulheres e 23 homens, isso é de se comemorar. Não digo com isso que o gênero
seja ou deva ser critério de escolha, mas que ele, assim como a etnia, a
orientação sexual e a naturalidade, não deve ser critério de exclusão.
Não
posso deixar de destacar também o quanto é sintomático na antologia de
Calcanhoto a quantidade de poetas vinculados a uma só editora, 7Letras, e como
não me causa estranhamento que a maioria dos escolhidos seja de um mesmo local
do Brasil, Rio de Janeiro. Isso mostra a força da editora carioca que começou
suas atividades em 1990, chegou a ter uma influente revista literária, Inimigo Rumor (1997-2007), e vem
acumulando reconhecimento de público e crítica, apresentando um catálogo dedicado
à literatura, sobretudo aos livros de poesia, através dos quais investe em
novos poetas.
Essa
força do mercado pode explicar um dos porquês de o Rio de Janeiro ter feito
tanto volume na antologia. Entretanto, perceber que a centralização em uma
localidade do Sudeste não se atenuou é um tanto desapontador, ainda mais num
momento histórico em que a poesia se expandiu para além do livro e a internet
diminuiu distâncias, podendo ser uma ferramenta para uma seleção mais ampla daquilo
que se propõe nacional, principalmente algo organizado por alguém que é
apresentada como uma leitora que “acompanha com entusiasmo a produção poética
brasileira de hoje”.
Não é
como a antologia da FUNARTE, 41 poetas do
Rio (1998), sob a organização de Moacyr Félix, que tinha por objetivo se circunscrever
a poetas que residiam no Rio de Janeiro. É
agora como nunca se apresenta como um recorte da poesia contemporânea
brasileira. Talvez o problema esteja novamente no subtítulo da referida
antologia, pois, se é óbvia ao se confessar incompleta, é inconsequente ao se
presumir nacional.
Por isso
me preocupa a sua suposta despretensão. Vendida como “livro de férias”, a
antologia é um mapeamento da poesia contemporânea mais recente que vai para as
salas de escolas e universidades, foi inclusive lançada em Portugal pela
editora Cotovia, uma das parceiras da 7Letras na Inimigo Rumor. Não por ser algo particular, mas por ser algo que se
tornou público, mesmo que o livro não queira entrar na seara do debate
acadêmico, ele instiga diversas discussões que vão além do irrefletido “por que
esse e não aquele poeta?” ou do preguiçoso julgamento “isso não é poesia!”.
Algumas
coisas continuam agora como sempre. Cabe a nós leitores problematizá-las. Este
texto existe não para questionar a importância da antologia É agora como nunca, mas por perceber nela
mais importância do que ela mesma se dispõe a oferecer. Afinal de contas, toda
antologia é uma convocação à leitura.
CALCANHOTO, Adriana. É agora como nunca: antologia incompleta da poesia contemporânea
brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
HOLANDA, Heloísa Buarque. 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Editora Labor, 1976.
_____________. Esses poetas: uma antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2001.
MORICONI, Ítalo. Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001.
_____________. Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001.
Nêumanne Pinto, José. Os cem melhores contos brasileiros do século.
São Paulo: Geração editorial, 2001.
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