Camila Alexandrini (PUCRS)
Tiago Martins de Morais (UFRGS)
Imagem: Marina Ancona |
Ser professores tem sido nossa maior aventura. E há quem considere os
aventureiros algum tipo inconsequente, que, sem elaborar o trajeto da viagem,
sai em busca do nada. É exatamente na contramão deste discurso que instauramos
nosso devir-ser. Somos professores jovens, porque nos compreendemos sempre
aprendendo, e há aqueles que sabem muito mais do que nós. E aqui a condição
básica do devir-docente: considerar o percurso um acontecimento -
acontecimento esse que é ruptura.
Neste percurso que se constitui por meio de experiências vividas, trocas
de saberes, incômodo contínuo, pesquisa rizomática, ser professor tem sido uma
aventura nômade, onde o deslocamento é provocado pelo desejo e pelos
agenciamentos de seu fazer. Por estarmos juntos, convidamos outros professores-aventureiros
a continuar - porque esse não deve ser um investimento solitário.
Juntos e empoderados deveriam estar todos os professores. E é claro que
não estamos cegos à realidade educacional brasileira, sentimos seus efeitos e
convivemos com as suas amarras. Estamos aqui, porém, pensativos sobre um dos
sentimentos que percorre nossos dias: a insegurança. Tantas vezes fruto
de um sistema educacional - que desvaloriza o fazer docente, que
desprestigia a sua rotina diária, que desencoraja a inovação, a criatividade e
a vivacidade da utopia de um saber sempre compartilhado - a insegurança
transforma o corpo (do) docente em um corpo que reproduz velhos hábitos, velhas
didáticas, velhas formas de se pensar o espaço de ensino e aprendizagem. A insegurança
resulta na impossibilidade do professor se ver como autor e criador desse(s)
espaço(s). Quando inseguros, somos levados, muitas vezes, a duvidar de nossa
capacidade profissional e acadêmica de decidir o que consideramos melhor a
estudantes com quem construímos o saber.
Tanto em instituições privadas, quanto em instituições públicas de
ensino, as instituições de poder e saber provocam seus abalos. Sob diversas
camadas de autoridade, professores chamados de subversivos poderão ser
silenciados. Professor é, no entanto, máquina de guerra, avessa à compreensão
que o Estado faz do universo social. Para ser professor é preciso que se
encontre o ritornelo de todas essas camadas para dali sair e se tornar outro.
Professor age neste território sem dono, sem hierarquia, sem propriedade. Em
outras palavras, se considerarmos o conhecimento a maior pulsão à transformação
de nossa sociedade e de nossas relações sociais e afetivas, professores serão
sempre a subversão deste jogo.
Há cerca de um ano e meio, estamos atuando na formação de professores e
temos encontrado sujeitos curiosos com a prática que eles mesmo constituem.
Parecem duvidar do que sabem, do que podem fazer, da potência de sua prática.
Ouvem-se pouco, compartilham saberes que não são os deles, subjugam-se diante
da realidade das escolas, das salas de aula, do Estado. A curiosidade com que
se olham não se trata da curiosidade epistemológica da qual nos fala Paulo
Freire. Trata-se da curiosidade estranha de não se reconhecerem como linha de
fuga ao que aprisiona suas práticas.
Essa fraqueza de empoderamento passa por diversas questões: (1) de ordem
subjetiva - quando jovens, pensamos ser a ausência de larga experiência o que
nos faz tão impotentes diante do complexo território que é o do ensino; quando
experientes, desacreditamos do que anos de vivência nos ensinaram; (2) de ordem
do político - ensinar é tarefa política, cambaleiam entre empregos mal
remunerados e instituições de ensino conservadoras os professores que
compreendem o ensino como tal; (3) de ordem institucional - o sistema
educacional de ensino no Brasil, com poucas exceções, vê o professor como o
último membro da hierarquia institucional, suas escolhas e decisões continuam
atreladas ao topo desta organização. (4) de ordem social - que lugar ocupa o
professor no território da sociedade? Quando não atrelados às demandas do
Estado, da própria escola, de instituições privadas, da família brasileira,
professores podem se sentir apenas os responsáveis pelo cumprimento de tarefas
distantes da realidade de seus alunos, da vida que almejam construir em
comunidade, das relações humanas fundamentadas naquele espaço de vida que,
afinal de contas, é a sala de aula.
Em outra via, no papel de professores, dentro de instituições, muito
ouvimos de nossos colegas um discurso potente, cheio de sonhos e utopias sobre
o papel do ensino. No entanto, ao mesmo tempo em que potentes, esses sonhos
eram ditos em voz baixa, cheios de medo e obliterados pela resignação das
imposições institucionais, da pressa, da burocracia, do acúmulo de trabalho e
da sombria meta de “vencer” quantidades excessivas de conteúdo. No papel de
formadores, em cursos e palestras, quando puxamos a discussão sobre o que é
afinal ser professor/a - sabedores de que a visão que temos sobre nossa
identidade docente determina nossas práticas - recebemos palavras-ponte,
palavras-sonho, mas apenas palavras. Apenas palavras, pois na prática vemos um
aprisionamento na falsa segurança das tradições, o medo do voo, o receio do
desvio.
Daí, pois, entendemos que um dos principais objetivos da formação de
professores é o empoderamento. É a prática de estimular que as
palavras-potência ditas em tom baixo se tornem gritos e consciência ética da
impossibilidade de continuarmos a praticar uma educação que não vincula
conhecimento e vida, que não estimula à criação, que não olha a diversidade,
que não foge das práticas homogeneizadoras.
A prática da formação de professores precisa tocar na ferida
desconfortável de que temos treinado nossos estudantes, seja na escola seja no
ensino superior, para passar em provas, para memorizar palavras e fórmulas,
para se sobrecarregar de conteúdos e ter pouco espaço para pensar e para criar.
Com isso, não queremos, é claro, manter o eixo apenas nos problemas ou mergulhar
tanto no passado a ponto de nos soterrar de um conhecimento histórico e erudito
que nos impeça de pensar a partir do momento presente com a urgência da
revolução necessária. No entanto, naquilo que se refere ao ensino, temos
percebido como olhar para o passado nos faz entender (a partir da lógica do
susto) que práticas estão se repetindo há tempo demais.
No contexto de trabalho pedagógico dos jesuítas - a partir de 1547 -,
encontramos ações comuns entre muitos profissionais hoje. O professor repete o
livro, estimula que o estudante assimile palavras mortas e as copie para uma
folha em branco. A qualidade da cópia do estudante - prova de sua boa memória -
é a garantia do aprendizado.
Ainda hoje, em nós docentes, habita esse professor-explicador e repetidor
que igualmente ensina aos estudantes que sejam repetidores. E não é que façamos
por mal, muito pelo contrário, assimilamos que melhores somos quanto melhores
são nossas explicações, quanto mais conteúdo e informações conseguirmos
“transmitir” durante um semestre ou ano letivo. Nos esforçamos imensamente, às
vezes ao ponto da sobrecarga emocional, para oferecer aquilo que achamos ser o
nosso melhor, sem nos darmos conta - por não habitar um sistema que estimule o
contrário - de que emancipar e dar autonomia é caminhar por outras vias.
Subjetivados por um modus operandi que nos cerceia a subversão,
ensinamos de uma maneira homogeneizadora ignorando que aprender é uma prática
individual e, portanto, singular. Cada um aprende de formas diversas e a manifestação
dessa diversidade de formas de acessar um conhecimento é o que enriquece o
ambiente de aprendizado. No entanto, as formas sacralizadas prendem os docentes
a um padrão de comportamento que estimula nada além de sua própria passividade,
de sua incapacidade de ser autor da própria aula. Mecanizam-se e mecanizam as
gerações vindouras.
A nós, professores e professoras, cabe não esquecer, também fomos
desestimulados à criação quando, por uma média de 14 anos, estivemos submetidos
ao ensino tradicional. Fomos alunos e alunas, filhos e filhas de
escolas-prisão. Antes de adentrarmos as licenciaturas, assimilamos uma imagem
retrógrada do que é a docência. O quadro insuficiente da formação de
professores das universidades quase nada resolve para tirar de nosso organismo
uma educação-tradição, uma educação opressiva. Quando assumimos nossos postos,
as salas de aula, tanto as instituições quanto muitos de nossos colegas nos
estimulam na direção do passado.
Muito embora, a maior parte dos grandes pensadores da educação tenha
afirmado que mais aprendemos quanto mais agimos, que mais uma prática pedagógica
faz sentido quanto mais tiver vínculo com a realidade do estudante, quanto mais
for cheia de vida e de potência, muito embora um arsenal maravilhoso de
pensamento sobre o ensinar-aprender, predominam figuras de autoridade nas
direções, nas coordenações e até mesmo entre os professores que, vítimas de um
autoritarismo sistêmico, estão sempre prontos a dizer àqueles que saem da rota
que um passo para longe das tradições não é uma aula, não é educação. A força
do conservadorismo é tão forte que apaga qualquer incêndio de ousadia e
criatividade de professores dispostos a ir além.
O quadro é talvez digno de uma tragédia kafkiana. Temos teorias
pedagógicas pulsantes que nos encaminham a uma outra forma de agir-docente,
temos parâmetros curriculares e leis que nos estimulam a sair do marasmo do
conteudismo empilhador, dos conceitos vazios, dos quadros cheios, temos Paulo
Freire, temos LDB, temos PCN’s, temos BNCC, temos autores nos recordando do
papel social do Ensino Superior, da importância da interdisciplinaridade e,
ainda assim, tudo isso não basta para impedir que continuemos a caminhar para
trás.
Sejamos nós, quando no papel de formadores de professores, a estimular o
acesso a esse arsenal de guerra contra a tradição, a lembrar que ensinamos para
a emancipação e para a autonomia, para a ruptura com modelos que têm como
premissa a ausência de liberdade e todas as perigosas consequências de tal
ausência.
Sejamos nós, quando nesse papel de formadores, a insistir que as instituições de ensino sejam locus constante de pensamento conjunto - evitando a prática individualista - sobre o ensino. Seja o desafio de formar professores prática de relembrar a consciência ética de que cada uma de nossas ações docentes deve ser pensada para estimular a curiosidade, a criação, o desvio, e não a repetição, a subserviência e a impossibilidade do devir-ser.
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