O que diabos estavam as mulheres fazendo
metidas em política, tornando-se ainda por cima
guerrilheiras,
numa época em que se ainda esperava delas
que ficassem circunscritas no âmbito do lar
e da vida privada? Putas comunistas.
Adriana Lisboa, Azul
corvo
Sabe-se
que muitas mulheres lutaram, juntamente com os homens, militando pela
redemocratização dos países que adotaram o regime militar, porém, a figura
feminina sofreu um apagamento na História. A razão desse apagamento tem suas
raízes na cultura patriarcal, em que a “mulher correta” não deveria ultrapassar
a área a ela destinada, o espaço privado, para se tornar um sujeito político,
no espaço público. A sociedade, estruturada a partir de tal premissa, sempre
ditou como as mulheres devem se comportar:
La mujer buena es encantadora, educada y discreta.
Las mujeres buenas trabajan, pero se conforman con ganar el 77 por ciento de lo
que ganan los hombres o, dependiendo de a quién preguntes, las mujeres buenas
tienen hijos y se quedan en casa a criarlos sin rechistar. Las mujeres buenas
son modestas, castas, sumisas. Las mujeres que no adhieren a estos cánones son
las desgraciadas, las indeseables; son malas mujeres.( GAY, 2016, pp. 303-304)
Partindo
dessa conjuntura, é estranho pensar em mulheres lutando contra o autoritarismo
e a supressão dos direitos constitucionais, que marcaram o período de exceção,
e resistindo às perseguições políticas, à prisão e à tortura por parte das
Forças Armadas. Entretanto, caminhando na contramão do que dita esse sistema
social em que os homens são os detentores do poder, muitas mulheres, nos anos
de chumbo, contestaram sim a ordem estabelecida e romperam com “o estereótipo
da mulher restrita ao espaço privado e doméstico, enquanto mãe, esposa, irmã e
dona de casa, que vive em função do mundo masculino”. (RIDENTI, 1990, p. 114)
De acordo com Luis Miguel e Flávia Biroli,
“hierarquias e desigualdades sociais são confirmadas e reproduzidas por meio de
palavras e imagens que naturalizam comportamentos e pertencimentos”.(MIGUEL e BIROLI, 2011, p. 11.) Nesse sentido, a literatura, enquanto representação da ordem objetiva, espaço
onde circulam tanto ideologias, como discursos, pode contribuir para manter os
estereótipos femininos aqui já mencionados ou, ao contrário, desconstruí-los,
ao instigar questionamentos e reflexões sobre as estruturas de dominação e os
papéis impostos de maneira tão arbitrária a ambos os sexos, os quais são
consolidados ao longo da história e reforçados pelos valores, aqui já
explicitados, que ainda vigoram em nossa sociedade. Assim, a fim de refletir
sobre como a personagem mulher militante é representada nas narrativas
contemporâneas, analisar-se-á a representação dessas “mulheres subversivas” em Volto semana que vem (2015), da escritora brasileira Maria Pilla, que apresenta uma
protagonista-testemunha, a qual militou durante as ditaduras militares
brasileira e argentina.
Com capítulos curtos e sem obedecer a uma ordem linear, esta
mulher recupera recortes de memórias sobre sua infância em Porto Alegre, a
ativa juventude no curso de Jornalismo, a militância política, que a conduz ao
exílio e, posteriormente, à prisão, entre outros acontecimentos. O título do
livro faz referência a uma frase dita ao próprio pai ao sair em uma viagem.
Todavia, ela não pôde cumprir sua palavra por conta das barbáries cometidas
pelo regime militar, que a acometeram. Ela só irá reaparecer em casa mais de
vinte anos após esse episódio. Rompendo com os padrões
tradicionais de gênero, essa mulher, agora já madura, que foi presa e
torturada, detém o poder do discurso e, por meio dos seus relatos, ela constrói
uma narrativa de sua vida, em que seu ativismo político é o tema central.
A
narradora adentrou esse território “proibido” às mulheres – o público,
masculino e político-, ainda jovem, se engajando em organizações clandestinas,
tanto no Brasil como na Argentina, manifestando, assim, seu repúdio àquele
regime e resistindo ao golpe. Com apenas quatro anos de militância no Brasil,
devido a uma ação da Oban (Operação Bandeirantes), a ideia do exílio surgiu.
Percebe-se, portanto, que “a tomada de decisão de viajar para a França [que]
foi tomada debaixo de grandes plátanos vizinhos ao cemitério da Consolação”(PILLA, 2015, p. 56),
teve por motivo fugir da violência que já circundava a mesma e seus companheiros.
A partir da resolução de se exilar, sua vida é perpassada por um trânsito
constante: São Paulo, Chile, Argentina, Paris, Porto Alegre, entre outros.
Acompanhando
o trajeto da protagonista, após o exílio, a mesma encontra-se na Argentina, a qual
também sofrera um golpe militar em 1966. Dessa maneira, com o objetivo de
continuar a militância, é que a protagonista teve como destino esse país. Lá,
se filiou ao ERP: “Ejercito do Partido Revolucionario del Pueblo, estrutura
militar do Partido Revolucionario de los Trabajadores”(PILLA, 2015, p. 15). Pelo o que já foi aqui exposto, percebe-se que a narradora não se encaixa no
modelo de sexo frágil atribuído à mulher pela estrutura patriarcal. Pelo
contrário, em Volto semana que vem,
ela mesma afirma que não se enquadra neste estereótipo ao dizer que “indo pelos
anos 60 eu já militava, e os ideais femininos da época passavam longe da minha
preferência. Os bailes da Reitoria, mesmo sendo unanimidade na minha geração,
não exerciam o mesmo fascínio sobre mim. Os namorados que me interessavam
estavam no meio militante”(PILLA, 2015, p. 50).
Outro aspecto que foge desse modelo do patriarcado é que, no recorte temporal
feito por ela (1950 a 1984), a temática do amor não é abordada. Apesar de
mencionar alguns namorados, ao longo da narrativa, ela não descreve ou
explicita a dinâmica desses relacionamentos, ou seja, não há investimento neste
assunto. Os relatos mais avançados deste recorte de memórias datam 1984, quando
ela teria 38 anos, o que seria, de acordo com a concepção tradicional de
família, uma idade já atrasada para o matrimônio, mas tal assunto não é sequer
mencionado, fugindo, assim, do que a sociedade espera das mulheres, isto é, que
sejam boas mães e esposas e que jamais ultrapassem o espaço do privado.
Na
Argentina, em 1975, a narradora-personagem é presa. Ela cumpriria, entre as
prisões de Olmos e de Devoto, aproximadamente dois anos de pena. Neste espaço,
a ideia da fragilidade da mulher também é desconstruída. As presas políticas que
ali se encontravam, e ela própria, apesar do medo que sentiam, não são
descritas de maneira vitimizada, mesmo após as torturas físicas e psicológicas
pelas quais passaram. Destaca-se que mesmo encarceradas, elas, como sujeitos
políticos que eram, resistiam da forma que podiam, como no episódio em que
descosturaram os uniformes para não os vestir, porque estavam no verão e estes
eram demasiado quentes, por serem escuros e feitos de sarja de lã. E “apesar
dos numerosos castigos individuais e coletivos, nos meses que se seguiram as
presas de Devoto jamais vestiram uniforme algum”(PILLA, 2015, p. 10).
Em
relação ao tema da tortura, a narradora o trata de maneira comedida, afinal
esse assunto gera a tensão de narrar o inenarrável. Segundo Charlotte Delbo, o
trauma seria não-representável, pelo fato de não fazer parte da ordem do simbólico
e da linguagem. Dessa maneira, seria um conteúdo impossível de materializar-se
em formas tradicionais de narrativas (DELBO, 1990). Logo, a protagonista opta por um sistema discursivo diferenciado, recuperando
sua memória da tortura por meio de um sonho. Ao acordar, ela diz: “senti uma
fisgada aguda no pé e levantei o edredom, agora muito sujo, em vez da gatinha,
vi meus pés manchados de sangue e estrangulados pela corda. O cheiro:
inesquecível cheiro de roupa suja misturado a um vago odor de pele queimada
pelos fios desencapados”(PILLA, 2015, p. 46).
Observa-se
que, mais uma vez, não há vitimização de sua figura ou um tom de lamento em
suas palavras, demonstrando coragem e determinação, mesmo em frente à dor de
tão terrível lembrança, indicando que sua decisão de aderir à militância,
buscando, portanto, a derrocada da ditadura militar, foi tomada de maneira
consciente, já que compreendia os riscos os quais corria. Outro relato do texto
que endossa a força desta militante mulher é quando a mãe a culpa pela morte do
pai, alegando que o mesmo teria morrido de estresse por conta de seu
engajamento político. De acordo com a historiadora Ana Maria Colling,
“inegavelmente houve uma ruptura entre a família e as mulheres militantes,
principalmente pelas condições de clandestinidade em que se desenvolvia a
atividade política” (COLLING, 1997, p. 61),
assim, uma tensão foi causada entre a família e os ativistas políticos, pois
aquela “sente-se traída pela opção política dos filhos” (COLLING, 1997, p. 112). Contudo, ao invés de interiorizar essa culpa, ela rapidamente a refuga, dizendo:
“fiquei aturdida. Não sabia como ordenar os argumentos para tirar de sua cabeça
[da mãe] ideia tão bárbara. (...). Disse que o pai tinha morrido porque estava
doente e que a medicina não conseguira mudar esse fato”(PILLA, 2015, p. 65). Sem sentimento de culpa, rancor ou sentimentalismo, utilizando-se da razão, ela
argumenta com a mãe, fazendo-a mudar de opinião.
O
livro de Maria Pilla mescla memória, história e testemunho e evidencia que a
produção literária feminina pode consumar-se independentemente do tema a ser
abordado, descontruindo, pois, o preceito de que as mulheres deveriam se
dedicar apenas a temáticas amenas e confessionais. Além disso, Volto semana que vem revela que as
mulheres, nas ditaduras na América Latina, tornavam-se militantes das
organizações clandestinas de esquerda em razão de suas convicções políticas,
lutando por “um mundo que fosse bem melhor” (PILLA, 2015, p. 32). Dessa forma, o que leitor encontrará nesta obra é
a perspectiva da própria guerrilheira, a qual é um ser pensante, independente,
dona de suas próprias vontades e que transgride o mísero espaço privado a ela
destinado. Nesta narrativa, a mulher torna-se sujeito, deixando de ser apenas
objeto de representação de outrem. Desse modo, a representação da “mulher
subversiva” de Maria Pilla se afasta daquela em que os conceitos em relação à
mulher estão ancorados às estruturas patriarcais e se aproxima do sujeito
social defendido por Teresa de Lauretis, em que este deve ser “múltiplo em vez
de único, e contraditório em vez de simplesmente dividido”(LAURETIS, 1994, p. 208).
Referências
COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
DELBO, Charlotte. Days and memory. Vermont: Marlboro Press, 1990.
GAY, Roxane. Mala feminista. Madrid: Capitán Swing Libros, 2016.
LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
MIGUEL, Luis Felipe e BIROLI, Flávia. “Gênero, mídia e política”. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Caleidoscópio convexo: mulheres, política e mídia. São Paulo: Editora Unesp, 2011, pp. 11-33.
PILLA, Maria. Volto semana que vem. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
RIDENTI, Marcelo Siqueira. “As mulheres na política brasileira: os anos de chumbo”. In: Tempo social. São Paulo, v.1, 1990, pp. 113-128.
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