Regina Dalcastagnè
Universidade de Brasília
A filha morta |
Gostaria de
iniciar minha fala lembrando de uma entrevista com um grande escritor
brasileiro, que se debruçou com ética e desalento sobre o seu tempo. Antonio
Callado afirmava que um escritor pode inventar qualquer coisa, menos uma
revolução que não aconteceu. Não aconteceu nos anos 70 e não acontecerá hoje.
Este não é um país de revoluções, o que não significa que não seja um lugar de
profundas e históricas lutas de resistência – que o digam os descendentes dos
africanos escravizados, cada menino e menina negros por este país afora. Que o
diga Rafael Braga!
Por isso,
nessa mesa sobre artes e revolução, vou falar de literatura e resistência no
Brasil hoje.
Sartre dizia
que a tarefa do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e se considerar inocente diante dele. Pergunto se essa não é a nossa
tarefa, também, como pesquisadores e, fundamentalmente, como educadores. A cada
vez que entro em uma sala de aula, quando me sento para ler uma tese ou para
escrever sobre um livro, quando me vejo nessa posição, em um evento acadêmico
sobre literatura, penso o quanto seria inócuo um trabalho, uma vida, que ignorasse a sua implicação e a sua responsabilidade com
o mundo lá fora, para além dessas paredes que nos protegem e nos sufocam.
Em tempos
de golpe de Estado e de
avanço dos discursos fascistas no país, gostaria de propor uma breve reflexão
sobre as formas de resistência que vêm sendo construídas no interior do campo
literário brasileiro, me inserindo, desde já, ao lado daqueles que resistem.
Para isso, é
preciso lembrar, antes de mais nada, que o golpe instaurado no país em 2016, e
que continua se processando neste momento, tem como objetivo a destruição dos
direitos trabalhistas, a entrega das riquezas do país ao capital internacional,
a divisão do butim entre os banqueiros, os latifundiários, os especuladores, os
donos da grande mídia. Mas que, para conseguir isso, eles precisam conter o
movimento de democratização que, de algum modo, se fortalecia no país,
especialmente a partir do acesso à educação pública e à cultura. Portanto, esse
golpe se estabelece contra os direitos das mulheres, dos negros, dos
trabalhadores, dos moradores das periferias, da população LGBT; contra sua
inserção social e contra suas formas de expressão. Se estabelece, também,
contra o ensino público, gratuito, laico e de qualidade. Não é à toa que temos
uma universidade como a UERJ abandonada
pelo poder público, sem o pagamento dos salários de seus funcionários e
professores, fechada por tempo
indeterminado.
Daí a
importância de estarmos aqui dentro hoje, ocupando
esse espaço, essas mesas e cadeiras, esses corredores. Esse
encontro se configura, assim, como um manifesto de solidariedade aos que estão
lutando contra a destruição da UERJ, entendendo que esta não é uma peça que cairá
sozinha. Sabemos bem que a campanha para o fim do que chamam de “injusto
ensino gratuito” tem um olho na desoneração do Estado, outro no bolso dos que mercadejam
o ensino privado e um terceiro (é, eles são umas aberrações) na possibilidade
de perseguição de uma parcela importante da militância contra o golpe, ou seja,
nós, professores e estudantes.
Agradeço e
parabenizo, então, toda a direção da ABRALIC, representada por João Cézar de Castro
Rocha, e toda a equipe de organização, incluindo aí os monitores, estudantes que
se empenharam para que pudéssemos estar aqui e expressar nosso descontentamento
e nos organizar em torno de uma luta que é urgente e implica a nossa
sobrevivência enquanto professores e pesquisadores de literatura.
Afinal, o que
podemos imaginar que vá sobrar para nossa área após esse inconcebível desmonte?
O que faremos com o anunciado fim das bolsas do CNPq, com o já efetivo desaparecimento
dos editais de financiamento para pesquisa, para eventos, para publicação de periódicos,
com o contínuo desprezo aos estudos literários na educação fundamental e no
ensino médio? O que diremos aos nossos estudantes, aos nossos orientandos que
se preparam para ser professores? O que restará daquilo que acreditamos?
E não me
refiro apenas à nossa carreira (o que já é muito sério), mas ao nosso
entendimento da função dos estudos literários em nossa sociedade. O que vai
muito além da simples “preservação” de um cânone, ou de uma lista de nomes de
obras fundadoras em um quadro negro.
O historiador
francês Lucien Bianco dizia que “as armas dos fracos são sempre fracas armas”,
mas é com elas que teremos que lutar. Nossas soluções serão provisórias e,
certamente, angustiadas, mas talvez nos permitam ficar de pé enquanto as coisas
não mudam. Podemos usar o discurso, nossa arma principal, para referendar o que
querem os poderosos (como fazem alguns colegas e escritores), mas também
podemos usá-lo para desmascará-los ou, mesmo, para tirar-lhes o sossego. É
tempo de disputar consciências e tentar preservar espaços democráticos de
enunciação de discursos, de representações do mundo.
Por menor que
seja esse nosso restrito circuito acadêmico e literário, temos muitas frentes
de resistência aqui. Elas podem ir desde a produção de autoras e autores
negros, pobres e de periferia, que insistem em fazer arte em um mundo que nega
valor à sua experiência, e mesmo à sua
vida; até a recente retomada da ditadura como tema literário, por exemplo,
com o resgate de memórias apagadas e a sinalização de riscos que não são
passado, mas, infelizmente, possível futuro para nós.
A resistência
passa, ainda, pelo esforço de pequenas editoras, de pequenas livrarias, de
coletivos de escritoras e escritores que estão se organizando, nesse instante
mesmo, para manter abertos espaços de publicação e divulgação da literatura. Todo
um conjunto de pessoas que buscam, de algum modo, se erguer contra o
amesquinhamento do mundo e o desmonte de nossa cultura.
Outra dessas
frentes passa pela nossa atuação como professores e críticos literários, pelo necessário
apoio aos nossos estudantes e orientandos em suas escolhas e em suas
dificuldades, pessoais, econômicas, políticas. E passa – não poderia deixar de
ressaltar – pela resistência ao nosso próprio conceito de literatura, ao enquadramento
que damos ao literário, ao que aprendemos ser o bom, o belo, o correto, o legítimo,
à nossa tendência a excluir tudo aquilo que escapa desses contornos tão
pré-estabelecidos.
Em todos os extensos
levantamentos que venho coordenando a partir da Universidade de Brasília, seja
sobre os autores e romances publicados pelas grandes editoras (já temos dados
sobre cerca de 700 romances, cobrindo os últimos 40 anos); seja sobre nossa
própria produção enquanto pesquisadores da literatura (temos dados sobre mais
de 3 mil artigos publicados em revistas A1 – as melhor conceituadas na área –
nos últimos 15 anos), é possível observar uma preocupante repetição do mesmo.
Entre os
autores e personagens, um mesmo perfil muitas vezes reiterado: brancos, homens,
classe média, heterossexuais, moradores de Rio de Janeiro e São Paulo (o mesmo perfil
dos autores que são resenhados, premiados, traduzidos e adquiridos pelas
bibliotecas).
Entre a
produção acadêmica, entendendo-se que os artigos em periódicos sejam
reveladores do que se está pesquisando e ensinando nas universidades, vemos os
mesmos temas se repetirem, os mesmos escritores sendo estudados, os mesmos
teóricos dando suporte à discussão. Nem é preciso dizer que, mais uma vez, esse
perfil é branco, masculino, eurocêntrico etc. E, aqui, temos ainda o
constrangimento de esclarecer que a maior parte da autoria dos artigos (quase
60%) é composta por mulheres – ao contrário da autoria dos romances, onde as
mulheres não chegam a 30%.
Me refiro a
esses dados só para lembrar que precisamos refletir sobre nosso modo de olhar o
mundo, nos situar e agir nele. Precisamos refletir sobre o que estamos
escolhendo legitimar como literário,
sobre o que estamos excluindo quando fazemos isso e por quê. Precisamos, enfim,
pensar sobre o que estamos pensando, como dizia Pierre Bourdieu.
Esse é um
chamado a todos nós, professoras, professores e estudantes, mas também aos
escritores, editores, tradutores, livreiros, bibliotecários, jornalistas,
gestores públicos, curadores... A defesa da literatura brasileira tem de ser a
defesa de uma literatura para todos, feita por todos que acreditem ter algo a expressar sobre o mundo.
Com o fim –
primeiro de jure, agora de facto – do Ministério da Cultura, com
o fim dos programas de compras de livros para as escolas pelo Ministério da
Educação, com a sombra que ronda a universidade pública, com o desaparecimento
do ensino de literatura nas escolas, com o avanço da patrulha do pensamento
crítico que atende pelo nome risível de “Escola Sem Partido”, o que restará
para ser lido e estudado daqui para frente? Meia dúzia de autores iluminados?
Seremos os últimos guardiões de textos que já não dirão mais nada a ninguém?
Talvez eu esteja sendo muito apocalíptica, não sou da turma dos “tranquilos”. Mas
ainda quero crer que podemos manter alguns espaços conquistados.
Ressalto,
então, a importância de alguns movimentos que podem ser fortalecidos por nós de
diferentes maneiras, a começar pelo efetivo acompanhamento dessa produção:
Primeiro, os
coletivos de autoria negra, que têm início no final dos anos 70, começo dos
anos 80, com a publicação dos Cadernos Negros,
por exemplo, e que se desdobram hoje em uma série de editoras especializadas,
como a Mazza, a Nandyala, a Pallas, a Oguns Toques Negros, a recentíssima
Malês, entre outras, incluindo ainda espaços em sites e blogs, que armazenam e
divulgam essa produção, rica, extensa e variada.
Ao lado
deles, há os coletivos de periferia, que, como lembra Michel Yakini, escritor,
editor e ativista da periferia de São Paulo, ajudam a formar leitores, não só
para a literatura produzida ali, mas também aquela publicada pelas grandes
editoras: “tá lá neguinho participando dos saraus com o Leminski da Companhia
das Letras embaixo do braço”, ria ele em uma palestra outro dia, pedindo
reconhecimento de todo um trabalho cultural que vem sendo realizado nesses
espaços.
Também as
organizações de mulheres, que estão se juntando para ler, publicar e estudar
outras mulheres, ajudam a ampliar o espaço da literatura. A preparação coletiva
do Mulherio das Letras, sugerido pela escritora Maria Valéria Rezende, e já com
mais de 5 mil mulheres em rede (que se reunirão em um grande encontro em João
Pessoa agora em outubro) é um marco importante de resistência no campo
literário.
Há ainda um
jornalismo cultural que resiste bravamente, como o Suplemento Pernambuco, por exemplo, e curadores de festivais
preocupados em democratizar inclusive espaços comerciais, como fez Josélia
Aguiar neste ano.
Por fim, tem uma
garotada de diferentes regiões do país se juntando e publicando coletâneas
belíssimas em formato digital aqui e ali, disponibilizando seu trabalho gratuitamente
pelas redes sociais; e editores empenhados e teimosos, que continuam publicando
livros de autores brasileiros, em tiragens reduzidas ou mesmo com impressão
livro a livro. Todos fazendo um esforço miserável para divulgar sua produção,
muitas vezes ignorada por nós porque ainda valorizamos demais os livros
publicados pelas grandes editoras, resenhados pelos grandes jornais e expostos
nas prateleiras das grandes livrarias, quando, na verdade, o mais interessante
e original está, a meu ver, acontecendo muito longe dali.
Só como
exemplo, o belo Impossível como nunca ter tido um rosto, último livro de Ricardo Aleixo, poeta de
Minas Gerais com inúmeras obras publicadas, foi editado por sua própria conta,
é vendido diretamente por ele, pela internet, e foi lançado em uma ótica em
Belo Horizonte. Já Conceição Evaristo, aos 70 anos de idade, ainda anda com sua
malinha cheia de livros para vender ela própria em suas palestras pelo país e
mundo afora – nunca são suficientes!
Não custa
lembrar que essas obras, de escritores negros, periféricos, de mulheres e mesmo
jovens fora do eixo, causam – em diferentes medidas e proporções – uma
dissonância em um campo literário que se quer harmônico, estável e consolidado.
A disputa por espaço que esses autores e autoras empreendem não é algo que determinados
grupos, determinados críticos e determinados escritores (muito certos de sua
própria superioridade) aceitam entender como legítima.
A negação da
validade dessas expressões é, como já disse, um dos objetivos desse golpe. A
elite brasileira não aguenta ver sua empregada doméstica disputando a vaga do
vestibular com seus filhos, não suporta vê-la como professora, não aceita
imaginá-la como uma pesquisadora, como uma escritora, como uma artista. Mas
elas estão aí!
Cabe a nós a
reflexão sobre os significados dessa disputa e o sentido – estético e político
– dessas obras. Se eximir dessa discussão é, muitas vezes, já se situar – do lado daqueles que ocupam as
posições centrais no campo literário e social. Ser indiferente não me parece
ser uma opção hoje, se é que algum dia já foi.
E aqui retomo
as palavras de Abel, protagonista do romance Avalovara, de Osman Lins (publicado
em 1973), e que também é um escritor angustiado com o seu tempo, assim como
Antonio Callado e tantos outros e outras: “A indiferença do escritor é adequada
à sua presumível elevação de espírito? Para defender a unidade, o nível e a pureza
de um projeto criador, mesmo que seja um projeto regulado pela
ambição de ampliar a área do visível, tem-se
o privilégio da indiferença? Preciso
ainda saber se na verdade
existe a indiferença: se não é – e só isto – um disfarce
da cumplicidade. Busco as respostas
dentro da noite
e é como se estivesse nos intestinos de um cão. A sufocação e a sujeira,
por mais que procure
defender-me, fazem parte de mim – de nós. Pode o espírito a tudo sobrepor-se?
Posso manter-me limpo, não infeccionado, dentro das tripas do cão? Ouço: ‘A
indiferença reflete um acordo, tácito e dúbio, com os excrementos’. Não, não serei indiferente”.
Participar do debate político
em um momento de ruptura
da democracia, contaminar a própria escrita, ou a
crítica, em busca do desmascaramento de um processo autoritário é ainda acreditar – nos homens e mulheres e na
própria literatura como instrumento de ação. Quando desistirmos de nossa
capacidade de acreditar, a luta, enfim, estará perdida.
Gostaria de
finalizar minha fala com uma imagem. É do século XIX, dos primórdios da
fotografia, quando ela não era acessível a todos (e seus dispositivos não podiam
ser carregados dentro do bolso traseiro da calça). Durante séculos, gerações
viviam e morriam sem ter uma única imagem registrada. A fotografia permitiu
isso, a materialização da memória, mas muitas vezes alguém querido falecia
antes que se tivesse tempo de fotografá-lo. Daí o surgimento de toda uma
engenharia para fotografar pessoas já mortas como se estivessem vivas: suportes metálicos para a sustentação dos
corpos, maquiagem apropriada antes e pintura na pós-produção da fotografia,
entre outras técnicas e estratégias próprias de cada fotógrafo para cada
situação.
Com a
popularização da fotografia tudo isso foi desaparecendo, é claro. Mas lembrem
que as primeiras câmeras fotográficas – os daguerreótipos – exigiam um tempo de
exposição muito longo, para que a imagem se fixasse na película de prata que
recobria a placa de cobre. Por isso as fotos antigas trazem figuras tão
rígidas, ninguém podia se mexer ou a imagem ficaria desfocada.
Nesta foto, a
filha está morta. Reparem como seu rosto é tranquilo e nítido. Enquanto isso,
os rostos dos pais perdem clareza e foco. É que respirar gera movimento. Estar
vivo impossibilita a fixidez.
Essa imagem,
em sua tristeza contida, é uma metáfora sobre a necessidade do movimento para
confirmar a vida, e da necessidade de nos deslocarmos para enxergar o que está vivo
ao nosso redor, nos deslocarmos de nossos conceitos fechados, de nossas ideias
prontas, que sufocam e paralisam. E não importa que percamos um pouco o chão
que nos protege, que não consigamos ver com nitidez completa aquilo que
queremos entender, descrever, analisar – é preciso apostar na fertilidade da
vida, mesmo quando tudo à nossa volta parece negar suas possibilidades.
Esse é, para
mim, o nosso mais significativo gesto de resistência, em direção aos outros e ao
imponderável. E a literatura... pode ser um delicado convite para esse
movimento.
Intervenção na mesa “Artes e Revolução”, no XV
Congresso Internacional da ABRALIC, na UERJ, Rio de Janeiro, no dia 9 de agosto
de 2017.
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