19 de agosto de 2017

Dilemas da ausência: a morte sem corpo no conto “Joana”, de Bernardo Kucinski

Maíra Silva da Fonseca Ramos

Universidade de Brasília

Imagem: Mark Acetelli, Antonio

Neste ensaio, proponho uma análise do conto Joana, de Bernardo Kucinski, constante do livro Você vai voltar pra mim e outros contos, que aborda a temática do desaparecimento involuntário de pessoas durante a ditadura militar brasileira e os efeitos dessa ausência nas relações familiares. O desaparecimento forçado de pessoas traz consequências para além daquelas ditadas pelas leis brasileiras. A falta de um corpo para velar e enterrar faz com que o fim da vida fique em suspenso: como reconhecer a morte quando falta um corpo?
Com a morte, cessa a personalidade jurídica do indivíduo. Contudo, isso pode gerar maiores controvérsias quando se trata de pessoa ausente, em casos nos quais não foi possível a localização do corpo do falecido. A ausência comprova-se pelo simples desparecimento de uma pessoa de seu domicílio, sem dar notícias nem deixar procurador responsável pela administração de seus bens, mas tal fato não significa uma certeza do óbito, que seria comprovado pelo corpo físico do falecido.
Não se sabe se a pessoa foi exposta a eventos que gerem risco de vida, a única coisa real é a falta prolongada de notícias, que faz supor a morte. Em algumas situações, quando seja extremamente provável a morte do indivíduo exposto a situação de risco, o Código Civil e a lei de registros públicos permitem que seja decretada a morte presumida, como por exemplo, em casos de incêndio ou desastre aéreo, nos quais não se faça possível a localização do cadáver.
A Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979 (Lei da Anistia), permitiu que parentes de pessoas desaparecidas, das quais não se tenha notícia há mais de um ano e que estavam envolvidas em atividades políticas entre 02/09/1961 e 15/08/1979, postulassem a declaração de ausência e posterior sucessão definitiva nos bens deixados pelo ausente. Após esgotados os recursos, a sentença que declarasse a ausência deveria ser levada a registro no Cartório de Registro Civil, gerando, neste momento, a presunção de morte para os fins sucessórios, nos termos do art. 4º, § 6º.
Por sua vez, a Lei 9.140/95 trouxe em seu anexo uma relação nominal de 136 pessoas presumidamente mortas no período da ditadura militar brasileira, em relação às quais se fará possível a lavratura do assento de óbito (art. 3º da Lei). Não afastou, entretanto, a possibilidade de reconhecimento da condição de desaparecidos políticos para pessoas ali não nominadas, desde que os familiares, juntando provas do fato, solicitassem a uma Comissão Especial que esse reconhecimento fosse feito. Foi conferido aos familiares o direito de postular indenização, no prazo de 120 dias contados da promulgação da Lei ou do reconhecimento do óbito por parte da Comissão Especial.
Caio Mário da Silva Pereira afirma que se está diante de uma “morte fictícia”, ao estabelecer como verdadeiro um fato não confirmado[1], gerando efeitos no mundo jurídico: a abertura da sucessão, para transmissão dos bens deixados pelo ausente; o recebimento de pensão previdenciária por parte dos familiares, comprovada a dependência econômica; a extinção do vínculo matrimonial, que não mais poderá impedir o cônjuge sobrevivente de contrair novo casamento; o reconhecimento do direito à indenização ao cônjuge ou companheiro(a), aos descendentes, ascendentes e colaterais até o quarto grau.
E como fica a situação dos familiares do desaparecido, já que seus bens estarão sob administração? Os filhos e a esposa, se houver, poderão dar continuidade à vida mesmo depois da decretação da morte presumida? A morte inconclusa e a busca quase eterna por um corpo para enterrar tem consequências que desbordam aquelas previstas pela legislação. A aceitação da morte, inclusive, vai se dar em momentos diferentes para cada uma das pessoas da família e a decisão de encerramento das buscas tem um preço para os que ficam: o luto eterno, enfim, chega ao fim e a vida dos sobreviventes precisa seguir adiante.
A escrita ficcional consegue se tornar espaço privilegiado para expor rasuras e traumas vividos recentemente no país, após a implementação do Golpe Militar de 1964, respondendo de forma positiva à pergunta sobre ainda ser possível fazer literatura após momentos de horror. Os limites da representação são testados e a “ficção torna-se fundamental para a expressão do trauma” (SILVA, 2014, p. 60).
Você vai voltar pra mim e outros contos, obra publicada por ocasião dos 50 anos do Golpe Militar de 1964, traz um alerta em sua introdução, dado pelo autor: as histórias da coletânea fazem parte de um conjunto maior, de 150 contos, escritos entre junho de 2010 e junho de 2013, tendo sido selecionados aqueles inspirados “no clima de opressão reinante no nosso país nas décadas de 1960 e 1970 e suas sequelas”. Arremata que os contos podem remeter a pessoas reais, porém não passam de invenção, sem obrigação de fidelidade a pessoas ou fatos que eventualmente inspiraram as histórias.
O autor, jornalista, escritor e ex-professor universitário, vivenciou o desaparecimento de sua irmã, Ana Rosa Kucinski e do marido, em abril de 1974. Seu primeiro romance, K.: relato de uma busca, aborda a ausência sob a perspectiva paterna. Depois de anos de busca, o pai, ciente da impossibilidade material de acesso ao corpo da filha desaparecida durante a ditadura militar e já convencido do pior, decide “enterrar” a filha cujo corpo não pôde localizar. Mas que autoridade religiosa aceitaria desafiar as leis divinas e velar um corpo de que não se tem notícias?
No mesmo sentido está o conto Joana, que tematiza o desaparecimento familiar, agora sob a perspectiva da esposa, e a rasura que essa ausência forçada deixou na vida dos que ficaram. O conto nos traz a história de uma mulher, mãe, avó de quatro netos, esposa, cujo marido desapareceu há exatos 26 anos. A voz narrativa, porém, é a de um advogado, que acompanha de relance a peregrinação diária dessa mulher em busca do ex-companheiro.
Não convencida da morte do marido, a protagonista caminha noite após noite abordando todos os mendigos que encontra pelas ruas, na esperança de que algum deles tenha notícia do desaparecido:

Uma ou duas noites por semana, ela junta algumas moedas e sai envolta em seu xale. Exibe a fotografia de Raimundo aos moradores de rua, pergunta se apareceu algum andarilho ou indigente desconhecido de mais idade e tez branca. Se dizem que sim, ela quer saber debaixo de qual marquise ou em qual abrigo da Prefeitura ele está e vai atrás dele. (...) É como se uma força superior a fizesse se levantar automaticamente e sair errante pelas ruas à procura do marido. (KUCINSKI, 2014, p. 60)

O marido de Joana, Raimundo, é descrito pelo advogado como um nordestino migrante, que aportou em São Paulo para trabalhar como metalúrgico. Envolve-se com um grupo que organizava operários nas fábricas, tendo sido desaparecido pela Polícia, que o retirou de casa sem ao menos um mandado de prisão. Após sessões de torturas, pois “seus gritos eram ouvidos em outras celas” (KUCINSKI, 2014, p. 59), a polícia terminou por ocultar o cadáver do desaparecido.
O aparato estatal repressivo à tortura e protetivo às vítimas dos desmandos ocorridos no período da ditadura militar é descrito pelo advogado, que relata o recebimento, por parte de Joana, de uma pensão paga pelo Estado, após a judicialização do conflito:

(...) Sumiram com o corpo de Raimundo. Tudo isso foi comprovado, depois que acabou a ditadura, por documentos e depoimentos em várias comissões. Só não se sabe, nunca se soube, para onde levaram o corpo e como se desfizeram dele. Se foi enterrado como indigente ou incinerado, ou disposto de outra forma. Isso nenhuma das diligências conseguiu elucidar. Foi um dos casos mais impenetráveis de desaparecimento, um caso em que nenhuma pista surgiu. (KUCINSKI, 2014, p. 59)

A não aceitação da morte, em vista da ausência de um corpo para enterrar e a falta de apontamento real da causa do óbito, levam a companheira a duvidar do desfecho dado ao caso pelo governo e pelas instituições oficiais. A vida de Joana precisa seguir, mas a mulher ainda persiste, dia após dia, em busca do marido, que acredita desmemoriado por conta das inúmeras agressões físicas. O encerramento judicial do caso, com o pagamento de pensão mensal aos familiares, não cessa as esperanças no reencontro, tampouco é capaz de suprir a lacuna deixada com a ausência:

(...) Cadê o corpo?, ela perguntou. E sempre pergunta. Diz que só vai se considerar viúva no dia em que trouxerem o atestado de óbito de Raimundo e mostrarem sua sepultura. (...) Não aceita como prova da morte o atestado de óbito fornecido pelo Governo, que não diz em que dia ele morreu, nem onde, nem a causa mortis. De fato é um pseudoatestado, só serve para a família cuidar do inventário e seguir a vida. E Joana segue a vida, mas a seu modo. (KUCINSKI, 2014, p. 59)

A ausência do corpo já foi objeto de estudo por parte da autora Ludmila Silva Catela, segundo a qual o desaparecimento pode ser encarado como uma morte inconclusa (CATELA apud SILVA, 2014, p. 62).  E mais, para a autora, resta impossibilitado um momento específico do luto para os parentes do desaparecido, fazendo com que esse momento, temporário por natureza, se eternize, produzindo uma situação contrária à morte: tudo continua como se não houvesse acontecido (CATELA apud LEHNEN, 2014, s/p).
O conto situa o leitor numa atmosfera de intensa crueldade e desrespeito à dignidade humana, num cenário em que reinam abuso de poder e impunidade, podendo ser notada, na escrita de Kucinski, “uma grande preocupação estética em ‘apresentar o evento traumático’, a partir da autenticidade ficcional em situações de grande credibilidade, na demarcação construtiva da memória.” (XAVIER, 2016, p. 97)
Como visto, a despeito de a legislação regular o instituto da ausência e, de forma especial, a presunção (ou ficção) da morte dada por lei aos desaparecidos políticos, vê-se que o instituto permanece protetivo à segurança do patrimônio do ausente, não à reconstrução da família, que se viu atingida pelo desaparecimento de seu membro. O conto Joana traz a questão da ausência, em particular a incerteza da morte e como os familiares lidam com a situação, evidenciando que nem sempre a regulamentação legislativa possibilita pôr fim à história, nos moldes em que oficialmente foi encerrada. A falta de um corpo para enterrar e a morte inconclusa geram efeitos que as páginas de processos judiciais e a proteção conferida por lei não são capazes de dimensionar. Daí a importância da literatura, que, por meio da ficção, problematiza a representação de eventos traumáticos, oferecendo multiplicidade de pontos de vista a questões que ainda se apresentam bastante tormentosas.



[1] “A presunção se vincula à prova, e não ao fato. Enquanto a presunção supõe a prova de um fato verdadeiro, a ficção estabelece como verdadeiro um fato não confirmado. Ao reconhecer como mortas pessoas desaparecidas em razão da participação ou acusação de participação em atividades políticas, no período de 02.09.61 a 15.08.79, a ficção comparece no mundo jurídico para indicar ‘uma verdade, ainda que seja uma verdade abstrata’, como ensina Valdir Sznick.” (PEREIRA, 2001, p. 24)

 Referências

KUCINSKI, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

LEHNEN, Leila. A memória como empresa: os empresários da memória em K., de Bernardo Kucinski. Revista Nonada Letras em Revista, v. 1, n. 22, 2014. Disponível em http://seer.uniritter.edu.br/index.php/nonada/article/view/827/569. Acesso em  05.01.2017

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Pessoas Desaparecidas em Atividades Políticas no Período da Repressão: os efeitos jurídicos e sociais da Lei 9.140/95 in Direito Contemporâneo: estudos em homenagem a Oscar Dias Corrêa, I. G. da Silva Martins (coord.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 12-26.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. V, Direito de Família. 11a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

SILVA, Izabel Priscila Pimentel da. Narrando o inenarrável: a literatura de testemunho de Bernardo Kucinski. Revista Outras Fronteiras, Cuiabá, vol. 1, n. 1, jun. 2014. p. 50-71.

XAVIER, Joelma Rezende. De memória, trauma e ficção: um olhar sobre a narrativa de Bernardo Kucinski. Revista Literatura e Autoritarismo, n. 16, 2016. Disponível em https://periodicos.ufsm.br/LA/article/viewFile/21508/13030. Acesso em 15.01.2017

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