Maíra Silva da Fonseca Ramos
Universidade de Brasília
Imagem: Mark Acetelli, Antonio |
Neste ensaio, proponho uma análise do conto Joana, de Bernardo Kucinski, constante do livro Você vai voltar pra mim e outros contos,
que aborda a temática do desaparecimento involuntário de pessoas durante a
ditadura militar brasileira e os efeitos dessa ausência nas relações familiares.
O desaparecimento forçado de pessoas traz consequências para além daquelas
ditadas pelas leis brasileiras. A falta de um corpo para velar e enterrar faz
com que o fim da vida fique em suspenso: como reconhecer a morte quando falta
um corpo?
Com a morte, cessa a personalidade jurídica do
indivíduo. Contudo, isso pode gerar maiores controvérsias quando se trata de
pessoa ausente, em casos nos quais não foi possível a localização do corpo do
falecido. A ausência comprova-se pelo simples desparecimento de uma pessoa de
seu domicílio, sem dar notícias nem deixar procurador responsável pela
administração de seus bens, mas tal fato não significa uma certeza do óbito,
que seria comprovado pelo corpo físico do falecido.
Não se sabe se a pessoa foi exposta a eventos que
gerem risco de vida, a única coisa real é a falta prolongada de notícias, que
faz supor a morte. Em algumas situações, quando seja extremamente provável a
morte do indivíduo exposto a situação de risco, o Código Civil e a lei de
registros públicos permitem que seja decretada a morte presumida, como por
exemplo, em casos de incêndio ou desastre aéreo, nos quais não se faça possível
a localização do cadáver.
A Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979 (Lei da
Anistia), permitiu que parentes de pessoas desaparecidas, das quais não se
tenha notícia há mais de um ano e que estavam envolvidas em atividades
políticas entre 02/09/1961 e 15/08/1979, postulassem a declaração de ausência e
posterior sucessão definitiva nos bens deixados pelo ausente. Após esgotados os
recursos, a sentença que declarasse a ausência deveria ser levada a registro no
Cartório de Registro Civil, gerando, neste momento, a presunção de morte para
os fins sucessórios, nos termos do art. 4º, § 6º.
Por sua vez, a Lei 9.140/95 trouxe em seu anexo uma
relação nominal de 136 pessoas presumidamente mortas no período da ditadura
militar brasileira, em relação às quais se fará possível a lavratura do assento
de óbito (art. 3º da Lei). Não afastou, entretanto, a possibilidade de
reconhecimento da condição de desaparecidos políticos para pessoas ali não
nominadas, desde que os familiares, juntando provas do fato, solicitassem a uma
Comissão Especial que esse reconhecimento fosse feito. Foi conferido aos
familiares o direito de postular indenização, no prazo de 120 dias contados da
promulgação da Lei ou do reconhecimento do óbito por parte da Comissão
Especial.
Caio Mário da Silva Pereira afirma que se está
diante de uma “morte fictícia”, ao estabelecer como verdadeiro um fato não
confirmado[1], gerando
efeitos no mundo jurídico: a abertura da sucessão, para transmissão dos bens deixados
pelo ausente; o recebimento de pensão previdenciária por parte dos familiares,
comprovada a dependência econômica; a extinção do vínculo matrimonial, que não
mais poderá impedir o cônjuge sobrevivente de contrair novo casamento; o
reconhecimento do direito à indenização ao cônjuge ou companheiro(a), aos
descendentes, ascendentes e colaterais até o quarto grau.
E como fica a situação dos familiares do
desaparecido, já que seus bens estarão sob administração? Os filhos e a esposa,
se houver, poderão dar continuidade à vida mesmo depois da decretação da morte
presumida? A morte inconclusa e a busca quase eterna por um corpo para enterrar
tem consequências que desbordam aquelas previstas pela legislação. A aceitação
da morte, inclusive, vai se dar em momentos diferentes para cada uma das
pessoas da família e a decisão de encerramento das buscas tem um preço para os
que ficam: o luto eterno, enfim, chega ao fim e a vida dos sobreviventes precisa
seguir adiante.
A escrita ficcional consegue se tornar espaço
privilegiado para expor rasuras e traumas vividos recentemente no país, após a
implementação do Golpe Militar de 1964, respondendo de forma positiva à
pergunta sobre ainda ser possível fazer literatura após momentos de horror. Os
limites da representação são testados e a “ficção torna-se fundamental para a
expressão do trauma” (SILVA, 2014, p. 60).
Você vai voltar
pra mim e outros contos, obra publicada por ocasião dos 50
anos do Golpe Militar de 1964, traz um alerta em sua introdução, dado pelo
autor: as histórias da coletânea fazem parte de um conjunto maior, de 150
contos, escritos entre junho de 2010 e junho de 2013, tendo sido selecionados
aqueles inspirados “no clima de opressão reinante no nosso país nas décadas de
1960 e 1970 e suas sequelas”. Arremata que os contos podem remeter a pessoas
reais, porém não passam de invenção, sem obrigação de fidelidade a pessoas ou
fatos que eventualmente inspiraram as histórias.
O autor, jornalista, escritor e ex-professor
universitário, vivenciou o desaparecimento de sua irmã, Ana Rosa Kucinski e do
marido, em abril de 1974. Seu primeiro romance, K.: relato de uma busca, aborda a ausência sob a perspectiva
paterna. Depois de anos de busca, o pai, ciente da impossibilidade material de
acesso ao corpo da filha desaparecida durante a ditadura militar e já
convencido do pior, decide “enterrar” a filha cujo corpo não pôde localizar.
Mas que autoridade religiosa aceitaria desafiar as leis divinas e velar um
corpo de que não se tem notícias?
No mesmo sentido está o conto Joana, que tematiza o desaparecimento familiar, agora sob a
perspectiva da esposa, e a rasura que essa ausência forçada deixou na vida dos
que ficaram. O conto nos traz a história de uma mulher, mãe, avó de quatro
netos, esposa, cujo marido desapareceu há exatos 26 anos. A voz narrativa,
porém, é a de um advogado, que acompanha de relance a peregrinação diária dessa
mulher em busca do ex-companheiro.
Não convencida da morte do marido, a protagonista
caminha noite após noite abordando todos os mendigos que encontra pelas ruas,
na esperança de que algum deles tenha notícia do desaparecido:
Uma ou duas noites por semana, ela
junta algumas moedas e sai envolta em seu xale. Exibe a fotografia de Raimundo
aos moradores de rua, pergunta se apareceu algum andarilho ou indigente
desconhecido de mais idade e tez branca. Se dizem que sim, ela quer saber
debaixo de qual marquise ou em qual abrigo da Prefeitura ele está e vai atrás
dele. (...) É como se uma força superior a fizesse se levantar automaticamente
e sair errante pelas ruas à procura do marido. (KUCINSKI,
2014, p. 60)
O marido de Joana, Raimundo, é descrito pelo
advogado como um nordestino migrante, que aportou em São Paulo para trabalhar
como metalúrgico. Envolve-se com um grupo que organizava operários nas fábricas,
tendo sido desaparecido pela Polícia, que o retirou de casa sem ao menos um
mandado de prisão. Após sessões de torturas, pois “seus gritos eram ouvidos em
outras celas” (KUCINSKI, 2014, p. 59), a polícia terminou por ocultar o cadáver
do desaparecido.
O aparato estatal repressivo à tortura e protetivo
às vítimas dos desmandos ocorridos no período da ditadura militar é descrito
pelo advogado, que relata o recebimento, por parte de Joana, de uma pensão paga
pelo Estado, após a judicialização do conflito:
(...) Sumiram com o corpo de
Raimundo. Tudo isso foi comprovado, depois que acabou a ditadura, por
documentos e depoimentos em várias comissões. Só não se sabe, nunca se soube,
para onde levaram o corpo e como se desfizeram dele. Se foi enterrado como
indigente ou incinerado, ou disposto de outra forma. Isso nenhuma das
diligências conseguiu elucidar. Foi um dos casos mais impenetráveis de
desaparecimento, um caso em que nenhuma pista surgiu. (KUCINSKI, 2014, p. 59)
A não aceitação da morte, em vista da ausência de um
corpo para enterrar e a falta de apontamento real da causa do óbito, levam a
companheira a duvidar do desfecho dado ao caso pelo governo e pelas
instituições oficiais. A vida de Joana precisa seguir, mas a mulher ainda persiste,
dia após dia, em busca do marido, que acredita desmemoriado por conta das
inúmeras agressões físicas. O encerramento judicial do caso, com o pagamento de
pensão mensal aos familiares, não cessa as esperanças no reencontro, tampouco é
capaz de suprir a lacuna deixada com a ausência:
(...) Cadê o corpo?, ela
perguntou. E sempre pergunta. Diz que só vai se considerar viúva no dia em que
trouxerem o atestado de óbito de Raimundo e mostrarem sua sepultura. (...) Não
aceita como prova da morte o atestado de óbito fornecido pelo Governo, que não
diz em que dia ele morreu, nem onde, nem a causa mortis. De fato é um
pseudoatestado, só serve para a família cuidar do inventário e seguir a vida. E
Joana segue a vida, mas a seu modo. (KUCINSKI, 2014, p. 59)
A ausência do corpo já foi objeto de estudo por
parte da autora Ludmila Silva Catela, segundo a qual o desaparecimento pode ser
encarado como uma morte inconclusa (CATELA apud
SILVA, 2014, p. 62). E mais, para a
autora, resta impossibilitado um momento específico do luto para os parentes do
desaparecido, fazendo com que esse momento, temporário por natureza, se
eternize, produzindo uma situação contrária à morte: tudo continua como se não
houvesse acontecido (CATELA apud
LEHNEN, 2014, s/p).
O conto situa o leitor numa atmosfera de intensa
crueldade e desrespeito à dignidade humana, num cenário em que reinam abuso de
poder e impunidade, podendo ser notada, na escrita de Kucinski, “uma grande
preocupação estética em ‘apresentar o evento traumático’, a partir da
autenticidade ficcional em situações de grande credibilidade, na demarcação
construtiva da memória.” (XAVIER, 2016, p. 97)
Como visto, a despeito de a legislação regular o
instituto da ausência e, de forma especial, a presunção (ou ficção) da morte dada
por lei aos desaparecidos políticos, vê-se que o instituto permanece protetivo
à segurança do patrimônio do ausente, não à reconstrução da família, que se viu
atingida pelo desaparecimento de seu membro. O conto Joana traz a questão da ausência, em particular a incerteza da
morte e como os familiares lidam com a situação, evidenciando que nem sempre a
regulamentação legislativa possibilita pôr fim à história, nos moldes em que
oficialmente foi encerrada. A falta de um corpo para enterrar e a morte
inconclusa geram efeitos que as páginas de processos judiciais e a proteção
conferida por lei não são capazes de dimensionar. Daí a importância da
literatura, que, por meio da ficção, problematiza a representação de eventos
traumáticos, oferecendo multiplicidade de pontos de vista a questões que ainda
se apresentam bastante tormentosas.
[1] “A presunção se vincula à prova, e não ao
fato. Enquanto a presunção supõe a
prova de um fato verdadeiro, a ficção estabelece como verdadeiro um fato não
confirmado. Ao reconhecer como mortas pessoas desaparecidas em razão da
participação ou acusação de participação em atividades políticas, no período de
02.09.61 a 15.08.79, a ficção comparece no mundo jurídico para indicar ‘uma
verdade, ainda que seja uma verdade abstrata’, como ensina Valdir Sznick.”
(PEREIRA, 2001, p. 24)
Referências
KUCINSKI, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos.
São Paulo: Cosac Naify, 2014.
LEHNEN, Leila. A memória como empresa: os empresários da memória em K., de
Bernardo Kucinski. Revista Nonada Letras
em Revista, v. 1, n. 22, 2014. Disponível em http://seer.uniritter.edu.br/index.php/nonada/article/view/827/569.
Acesso em 05.01.2017
PEREIRA, Caio Mário
da Silva. Pessoas Desaparecidas em Atividades Políticas no Período da
Repressão: os efeitos jurídicos e sociais da Lei 9.140/95 in Direito Contemporâneo: estudos em homenagem
a Oscar Dias Corrêa, I. G. da Silva Martins (coord.). Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2001. p. 12-26.
PEREIRA, Caio Mário
da Silva. Instituições de Direito Civil,
vol. V, Direito de Família. 11a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
SILVA, Izabel Priscila Pimentel da. Narrando o inenarrável: a literatura de
testemunho de Bernardo Kucinski. Revista
Outras Fronteiras, Cuiabá, vol. 1, n. 1, jun. 2014. p. 50-71.
XAVIER, Joelma Rezende. De memória, trauma e ficção: um olhar sobre a
narrativa de Bernardo Kucinski. Revista
Literatura e Autoritarismo, n. 16, 2016. Disponível em https://periodicos.ufsm.br/LA/article/viewFile/21508/13030.
Acesso em 15.01.2017
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