2 de dezembro de 2017

Da produção tardia de Lygia Fagundes Telles

Vanessa Maranha


Lygia Fagundes Telles



Com uma carreira vasta, pontuada por uma produção admirável e com a rara qualidade de ser quase unanimemente reconhecida por público e crítica, dois livros da produção mais tardia de Lygia Fagundes Telles e que passaram quase desapercebidos, tal a magnitude de sua obra pregressa, merecem destaque: A noite escura e mais eu e Conspiração de nuvens.
Em A noite escura e mais eu, belo livro de contos de 1995, reeditado pela Companhia das Letras em 2009, tem-se quase uma síntese estilística de sua obra: estão ali o fantástico, a crueldade humana, o narrador insólito (em “O crachá nos dentes”, a autora apresenta um conto sob o ponto de vista de um cão narrador e, em “Anão de Jardim”, a estátua de pedra é quem conduz a trama).
“Uma branca sombra pálida”, que evoca a canção “Whiter Shade of Pale”, de Credence Clearwater, é das narrativas mais geniais de todo o seu acervo de contos, revisitando seus temas íntimos: a tocar no suicídio de uma jovem, na ambiguidade sexual; uma mãe que é quase o desdobramento descritivo da pulsão de morte freudiana.
Nesse conto, a autora tangencia a loucura trabalhando com maestria a caracterização psicológica a partir das ações e pensamentos das personagens. Com Conspiração de nuvens, Lygia fecha o ciclo memorialístico iniciado em 1980 com A disciplina do amor; retomado em 2000, no volume Invenção e memória e continuado em 2002, com Durante aquele estranho chá.
Conspiração de nuvens, nesse arremate, segue a linha de engajamento pela escrita límpida e inconfundível de Lygia e permite a ficcionalização das memórias, demonstrando a tênue fronteira a separar (ou não) a ficção da realidade, na ideia heideggeriana que indica ser a arte o “pôr-se em obra da verdade”.
Esse o ponto mais impactante de toda a escrita de Lygia Fagundes Telles: adensar-se em busca de alguma “verdade” sem aferrar-se a nenhum sistema rígido de verdades. Se a ideia de “clássico” baseia também o estatuto de autores que conseguem ser plurais mantendo sua identidade literária mesmo quando se debruçam sobre suas lembranças pessoais, Lygia é, sem dúvida, um clássico.
O livro agrega dezenove crônicas bem alinhavadas de lembranças sem ordenação cronológica, no mote explicitado pela própria escritora: “a memória enleada de invenção”. Em “A quermesse”, ela faz uma viagem de volta à infância repleta de imagens, perguntas e temores, confirmando a tese de Santo Agostinho, que dizia ser a memória a casa da alma.
No livro, a autora não se furta às reminiscências do amor por seu marido, já falecido, Paulo Emílio Salles Gomes, o crítico “de voz flamante” e que em pelo menos três crônicas será afetuosamente citado.
O texto “Conspiração de nuvens”, a emprestar o título para a antologia, narra a moção encabeçada em 1976 por Rubem Fonseca, ladeada por Nélida Piñon, entre outros, durante a fase mais sombria da ditadura militar no Brasil e denominada “O Manifesto dos Mil”, para se opor à censura que vinha mutilando indiscriminadamente obras literárias de grande valor, quando não as vetava e também contra os horrores que surdamente ecoavam dos porões do regime de exceção.
Lygia Fagundes Telles relembra ainda amigos caros como Décio de Almeida Prado e Érico Verissimo. Dedica páginas quase líricas a Machado de Assis e Álvares de Azevedo, amalgamando, na forma, o acento ensaístico ao da contística.
“Tunísia”, talvez o mais literário dos textos que escolheu para compor a obra, é também o mais sinestésico de todos e, por isso mesmo, leve como um cartão-postal: nele o leitor alucina cantos berberes, olhos núbios, perfume de jasmim, suks e tapeçarias magníficas.

Finalmente, num texto impecável, intitulado “O chamado”, a autora de Ciranda de pedra discorre sobre questões que julga relevantes para o seu êxito nas letras. A principal delas, a disciplina adquirida na prática de esportes, em especial, a esgrima. Sobre a vocação, escreveu: “obedecer à vocação seria simplesmente exercer o ofício da paixão, era o que me ocorria quando diante da pequena mesa abria o estojo com as canetas, escolhia a pena preferida, molhava no tinteiro e começava a escrever minhas histórias (...) Na vocação não está incluída a glória, tantas vocações verdadeiras e o silêncio, ninguém leu, ninguém viu”, avisa.

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