25 de novembro de 2017

Literatura e religiões de matriz africana

Bruna Santos


Imagem: Robson Khalaf



Lá fora, no céu dor de íris, um enorme angarô multicolorido se diluía lentamente, enquanto Ponciá Vicêncio, elo e herança de uma memória reencontrada pelos seus, não se perderia jamais, se guardaria nas águas do rio.
Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio


Falar sobre religião na literatura brasileira contemporânea nem sempre é fácil. Se pensarmos em religião ligada ao que aparece em romances, por exemplo, facilmente seremos guiados para representações de religiões cristãs. Mas, e a representação das religiões de matriz africana?
De acordo com estudo coordenado por Regina Dalcastagnè junto ao Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, sobre a representação dos personagens em romances publicados entre os anos de 1990-2004, “em relação à religião, observa-se que ela está mais presente nas representações das personagens indígenas e negras. Enquanto 62,5% dos orientais, 58,8% dos brancos e 47,4% dos mestiços não apresentam indícios de filiação religiosa, a proporção cai para 37,8% no caso dos negros e 33,3% no caso dos indígenas. Trata-se de efeito da forte vinculação destas personagens com, num caso, os cultos indígenas e, no outro, a umbanda e o candomblé. Entre os indígenas, 40% são indicados como praticantes de cultos tradicionais. E 26,5% das personagens negras aparecem como seguidores das religiões afro-brasileiras, isto é, mais de 70% dos fiéis destes cultos são negros”. Dessa forma, para que se fale sobre a ideia da representação literária das religiões de matriz africana não podemos deixar de lado o vínculo da religião à questão racial.
De acordo com os dados apresentados no censo do IBGE de 2000, 50,4% dos seguidores das religiões afro-brasileiras – umbanda e candomblé agrupados – se declaram brancos e apenas 18,2% de pretos. Ainda, os pardos são 29,8% e 0,3% de amarelos. É de se pensar porque a representação literária traz tão poucas personagens brancas ligadas a essas religiões, quando a realidade mostra uma outra composição racial.
Durante muito tempo as religiões de matrizes africanas foram (e talvez ainda sejam) consideradas como menores, são vistas como menos importantes e suas práticas foram e ainda são apontadas como coisas do demônio (terreiros são queimados, mães de santo são perseguidas, livros que tratam da religião são abolidos por pais intolerantes). Parte disso se liga ao pensamento preconceituoso de que o que veio com os negros escravizados, em oposição às religiões cristãs predominantes, é negativo, perigoso e sem valor para nossa sociedade.
 O fato das religiões de matrizes africanas terem suas tradições registradas de forma oral também contribuiu para esse pensamento. Como diz Reginaldo Prandi em Mitologia dos Orixás,             “até onde se tem notícia, data de 1928 o primeiro documento extenso escrito contendo os mitos da arte oracular, um caderno compilado por Agenor Miranda Rocha, membro letrado de um dos terreiros da Bahia, em que tradições divinatórias haviam sido preservadas à moda dos antigos babalaôs, mas esse documento somente foi trazido à luz mais de meio século depois de ter sido escrito”.
Assim, o fato de mais personagens negras serem ligados a religiões de matrizes africanas pode ser explicado pelo infeliz pensamento enraizado na nossa sociedade de que o que é “coisa de preto” não tem importância.
Entretanto, algumas obras literárias já trazem pontos de vista importantes e diferentes sobre essa situação. 
Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves é uma das obras que traz a religião e religiosidade como temas que se entrelaçam e dão vida à narrativa principal. O candomblé, catolicismo e islamismo são religiões que em seus desdobramentos são importantes para a personagem durante a narrativa.
O candomblé é a religião que se faz mais presente. Kehinde, ou Luisa, conta das tradições trazidas de África e de como as adaptações aconteceram na época do Brasil escravocrata para que os cultos e a fé do povo continuassem sendo exercidos, mesmo com toda violência que foi imposta aos escravizados.
No livro, o candomblé de Jeje é o mais explorado, embora em alguns momentos as raízes Ketu e Angola também sejam comentadas: "Mas eu e o Piripiri já podíamos conversar, e achei muito bonito o que ele me contou, pois os angolas sabem respeitar e louvar a natureza muito mais do que qualquer outro povo. Para eles, todas as folhas têm seu nome e seu nkisi (...). Os Nkisis, a quem as folhas são consagradas, têm nomes bonitos como Lemba, Dandalunda, Kaiaia, Kitembu, Matamba ou Mametus, e achei que alguns também se parecem muito com orixás ou voduns, como Pambu Njila (...) ou Kavungu”.
Os Nkisis são as divindades cultuadas no candomblé de Angola, assim como os Orixás no de Ketu e os Voduns em Jeje.
 Já em Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, a presença do Nkisi Angorô é retratada pela cobra e também se faz presente de forma paralela durante a narrativa através da superstição do arco-íris: “Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio. Recordou o medo que tivera durante toda sua infância. Diziam que menina que passasse por debaixo do arco-íris virava menino. Ela ia buscar o barro na beira do rio e lá estava a cobra celeste bebendo água”.  Em Diário de Bitita, de Carolina Maria de Jesus, o arco-íris também se faz presente na história.  Carolina não gosta de ser mulher e quer virar homem e sua mãe recomenda:  “Quando você ver o arco-íris, você passa por debaixo dele que você vira homem. ” E ainda, na fala de Carolina:  “eu pensava que deveria passar por debaixo do arco-íris para virar o homem correto para auxiliar os homens. ”
A princípio não há ligação direta dessa superstição com as religiões, mas basta uma pequena busca sobre a origem dela para que a ligação com o Orixá Oxumaré se estabeleça. Como mostra Ana Maria Gonçalves em seu romance, houve uma mistura dos cultos para que a religião resistisse.  Angorô se assemelha a Oxumaré. Então, em Um defeito de cor, encontra-se uma explicação sobre o arco-íris e a cobra: “Algumas pessoas acreditam que o arco-íris é uma serpente das profundezas que vai beber água no céu, mas a minha avó dizia que ele é Oxumaré, o que controla o bom tempo. Nos dias de sol, o orixá se transforma em arco-íris e sobe até o céu, levando água para o castelo de Xangô, que fica acima das nuvens. A chuva é a água que ele deixa respingar sobre a terra, porque as mãos estão sempre ocupadas, carregando duas serpentes de ferro. Oxumaré não é homem nem mulher, mas as duas coisas juntas. Durante seis meses ele vive como homem e mora perto das árvores e durante os outros seis é uma mulher muito bonita que vive nas matas e nas lagoas”.
Pode-se entender, por essa associação, o medo de Ponciá Vicêncio em passar por baixo do arco-íris e virar menino, e o desejo de Bitita em poder fazer o mesmo.

         É relevante, então, pontuar e fazer conhecer que algumas das crenças tidas como populares e presentes na sociedade atual têm ligação direta com as religiões de matriz africana e que com o passar dos anos as referências, de forma indireta ou mais direta estão, aos poucos, se fazendo mais presentes.  O volume de obras de autoria negra no Brasil vem crescendo em número e importância, assim como as religiões de matriz africana tem ganhado um número crescente de adeptos e publicações de obras não-literárias sobre essa religião tem ganhado um pouco mais de espaço nas prateleiras de livraria.  Dessa forma, é preciso que os pesquisadores e pesquisadoras percebam a necessidade de conhecer melhor a mitologia e cosmogonia africana, para que cada vez mais análises possam ser feitas e narrativas possam ser interpretadas.

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