11 de novembro de 2017

Mulheres escritoras na literatura marginal

Pollianna de Fátima Santos Freire


Imagem: Massagona Sylla, art collage

No Brasil, cujo cânone literário foi constituído e edificado a partir de obras produzidas por homens heterossexuais, brancos e de classe média alta, a valorização da literatura produzida por diversos grupos minoritários é um fenômeno relativamente recente. Trabalhos desenvolvidos no âmbito da crítica literária feminista, por exemplo, têm se empenhado em mostrar que, aqui, o cânone se configurou excluindo da historiografia literária nacional as escritoras mulheres, a exemplo de Maria Firmina dos Reis — que publicou, em 1859, Úrsula, considerado o primeiro romance de autoria feminina — e Júlia Lopes de Almeida, que escreveu vários livros de sucesso, entre eles, Memórias de Marta, seu primeiro livro, publicado em 1888.

Essas constatações são reforçadas por críticas como Rita Terezinha Schmidt que, em seu texto “Cânone/ Contra - Cânone: Nem aquele que é o mesmo nem este que é o outro”, já havia denunciado, na última década do século passado, essa tendência de exclusão de grupos minoritários do campo literário. De acordo com a autora, no Brasil, “o discurso crítico sempre esteve atrelado à herança de uma identidade cultural ocidental europeia na medida em que [...] compactuou com a política das exclusões que sustenta a lógica canônica” (Schmidt, 1996, p. 117). Em seu texto, ela argumenta que todo processo do cânone é excludente porque, geralmente, a sua constituição está pautada em seu processo de reprodução, que, por sua vez, tem uma força homogeneizadora que atua sobre a seleção e reafirma as identidades, excluindo, portanto, as diferenças.
            
No entanto, contrários a essa tendência de exclusão das diferenças, escritores e escritoras vêm, nas últimas décadas, denunciando, dentro e fora da sua produção literária, o alijamento de grupos minoritários do campo literário, nos termos do sociólogo Pierre Bourdieu, bem como vem atuando politicamente para que esses grupos, por meio da escrita literária, se autorrepresentem ou trabalhem com a representação das minorias, a fim de questionar e desestabilizar as estruturas sociais conservadoras que, durante séculos, calcaram a nossa produção literária.
         
Nesse contexto, destaca-se, no cenário cultural brasileiro atual, a corrente literária que se autodenomina Literatura marginal. Essa corrente literária, que está ligada a uma certa necessidade de os escritores e as escritoras transformarem a sua produção artística em potência política e ética que dá voz e direito de representação justa a grupos minoritários, ganhou força, como instância política, nos saraus que começaram a ser realizados em regiões periféricas, na cidade de São Paulo, no início do século XXI. Com relação ao conceito, Heloísa Buarque de Hollanda explica, em seu texto Literatura Marginal, que Ferréz, um dos nomes de destaques dessa corrente literária, entende por marginal

a busca de um lugar na série literária para aqueles que vem da margem. E explica melhor: Literatura marginal é aquela feita por marginais mesmo, até por cara que já roubou, aqueles que derivam de partes da sociedade que não têm espaço. Mas adverte: “Quando a gente consegue alguma coisa por meio da arte, não quer dizer que a vamos sossegar. Temos é que organizar o nosso ódio, direcioná-lo para quem está nos prejudicando. Tudo o que o sistema não dá, temos que tomar”. (Hollanda, 2016, s/n)
            
Então, a Literatura marginal, definida como um tipo de instância política pelo seu representante mais conhecido, Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, luta para tirar da invisibilidade a literatura produzida nas periferias de grandes centros urbanos e seus disseminadores reivindicam reconhecimento do valor literário, cultural e simbólico das suas produções. Esse autor, que se alimenta da realidade em que vive para produzir sua literatura, vem, timidamente, ganhando espaço no campo literário, direito que ele reivindica ao longo do tempo. Ainda de acordo com Heloísa Buarque de Hollanda, em 2004, durante a sua participação em uma mesa no Seminário Cultura e Desenvolvimento, o escritor afirmou: “Quero entrar para o cânone, para a história da literatura como qualquer um dos escritores novos contemporâneos. E não acho também que minha comunidade deve se limitar à minha literatura, ela tem o direto de ter acesso ao Flaubert.” (Hollanda, 2016, s/n).
         
Os escritores e as escritoras que se consideram como produtores de Literatura marginal reivindicam para si e para a sua comunidade o direito de acesso a bens culturais e reconhecimento do valor literário das suas produções, o que implica mudanças de paradigmas relacionados à representação de grupos minoritários e local de fala. Nesse sentido, a designação Literatura marginal marca um posicionamento político que choca com a tendência de vários escritores, especialmente os contemporâneos, de não quererem atrelar diretamente a sua produção literária a categorias, como, por exemplo, literatura de autoria feminina, para não assumirem abertamente as implicações políticas inerentes a esse tipo de posicionamento.
         
Também no contexto da produção da Literatura marginal destacam-se os textos produzidos por mulheres escritoras, a exemplo de Elizandra Souza, Dinha, Mel Duarte, Raquel Almeida, Luiza Romão e Jéssica Balbino. A produção de autoria feminina, por sua vez, torna esse movimento uma instância política ainda mais significativa, já que a presença de mulheres e sua atuação política e literária no movimento Literatura marginal contribuem significativamente para ressignificação de identidades duplamente estigmatizadas — mulher e periférica. Essas escritoras trabalham para questionar a autoridade e o privilégio patriarcal nos espaços público e privado e, embora ainda timidamente, no campo literário, já que, como enfatizado anteriormente, o alijamento da produção literária de autoria feminina do campo literário não é um fenômeno recente.
             
Nesse contexto, a literatura produzida pelas mulheres que habitam periferias — as quais, em geral, carregam marcas de preconceitos, injustiças e desigualdades de gênero, sobretudo no que se refere ao reconhecimento do valor das suas produções literárias — tem operado com a representação literária de resistência e atuado como uma instância de renovação e de ruptura de padrões e de promoção de igualdade de direitos, no que se refere à representação literária e ocupação de espaços públicos e privado, conforme argumentarei a seguir.

No que se refere ao espaço, sabe-se que, inicialmente, a Literatura marginal ganhou força nos saraus das periferias da cidade de São Paulo. Esses eventos que ressignificaram os modos de produção e de divulgação das produções literárias de sujeitos oriundos das periferias, tornam-se mais significativos quando pensamos a sua definição a partir da proposta da pesquisadora Lucia Tennina no artigo “Saraus das periferias de São Paulo: poesia entre tragos, silêncios e aplausos”: “reuniões em bares de diferentes bairros suburbanos da cidade de São Paulo, onde os moradores declamam ou leem textos próprios ou de outros diante de um microfone, durante aproximadamente duas horas. Muitos bares [...] funcionam, desde então, também como centros culturais.” 

Os saraus que, conforme a teórica acima, são eventos abertos à comunidade e acontecem geralmente, em bares, são pensados aqui, inicialmente, como espaços de resistência, já que, ainda de acordo com Tennina, são “espaços nos quais normalmente acontecem os episódios que se transformam em estatísticas posteriormente (os assassinatos e o alcoolismo)”, mas que, no momento dos saraus, funcionam como espaços estratégicos utilizados pelos sujeitos oriundos dos espaços periféricos para dar visibilidade, com uma nova dimensão política, a problemas que se encerravam nas próprias periferias: por um lado, eles ocupam espaços estigmatizados do contexto social em que estão inseridos e transformam, por meio da arte, sobretudo da representação literária, questões das margens em questões do centro; por outro, inauguram na literatura brasileira contemporânea uma fase em que os escritores e as escritoras começam a reforçar a luta contra os estereótipos e desigualdades sociais por meio da reconfiguração do seu próprio local de fala.

                   
No que se refere à participação feminina nesses saraus, o fato de esses eventos acontecerem em bares torna-se então um evento ainda mais significativo se pensarmos que, historicamente, esse espaço sempre fez parte da história dos homens, e não da história das mulheres. Essa determinação dos espaços inerentes à mulher e ao homem está relacionada a modelos culturalmente estabelecidos de padrões de comportamentos femininos e masculinos, instituído pelo ideal de família burguesa, que é uma criação com pouco tempo de existência histórica, e que designou o espaço privado como o espaço legítimo das mulheres, ao passo que o espaço público foi designado como espaço legítimo dos homens. Logo, bares, na perspectiva patriarcal e conservadora, sempre foram considerados lugares inadequados para mulheres “decentes”.
         
Nessa perspectiva, conjecturo que o fato de os saraus acontecerem em bares, que passam também a ser ocupados por mulheres, as quais transitam livremente e participam de modo ativo das atividades culturais, desestabiliza noções conservadores de sexo/gênero, sobretudo àquelas intrinsecamente relacionadas aos espaços cultural e socialmente designados como sendo legítimos de homens — espaço público — e de mulheres — espaço privado. Aqui, o próprio espaço onde se promove a literatura ajuda a desconstruir discursos hegemônicos, já que as mulheres passam também a ocupar os bares e abrir caminho para novas formas de representação, que não só questiona esse sistema de base patriarcal, mas atua para desestabilizá-lo.

Voltando ao plano literário, as várias mulheres escritoras que vem se destacando nessa produção de literatura marginal estão inaugurando uma fase da literatura de autoria feminina no Brasil que oferece novas perspectivas em relação à posição que a mulher pobre, negra e periférica ocupa no cenário da produção literária. Em geral, essas produções denunciam e ressignificam as situações de opressão e violência a que as mulheres são submetidas nas relações sociais.


Com uma posição política clara e bem marcada, elas reivindicam o direito de falar por si mesmas e questionam os modelos femininos de submissão herdados da sociedade patriarcal. Nos textos, evidencia-se o discurso de luta pela emancipação feminina, o qual funciona para dar visibilidade às questões de gênero e, consequentemente, ajuda a movimentar as discussões sobre a necessidade de romper com paradigmas patriarcais relacionados à posição das mulheres na sociedade e no próprio campo literário. 


Aqui, destaco a poetisa Elizandra Souza, escritora negra e feminista que atua também como promotora de cultura, arte e, principalmente literatura, em bairros da periferia de São Paulo. Sobre a escritora, Sílvia Regina Lorenso Castro, em seu artigo “Elizandra Souza: escrita periférica em diálogo transatlântico”, afirma que


a vida e a obra da escritora Elizandra de Souza tornam-se uma espécie de lente de acesso, permitindo-nos ler a literatura e a periferia brasileiras partindo de outra perspectiva: uma perspectiva negra, feminista, jovem, urbana, conectada com as inovações tecnológicas da vida moderna, relacionada a um agir local e um pensar global a partir de referências afrodiaspóricas, em consonância com as teorias negras feministas e com o pensamento descolonial latino-americano. Vida e obra de Elizandra estão inseridas em um diálogo mais amplo sobre a atual geração de jovens escritores e escritoras da periferia de São Paulo, adeptos da cultura hip-hop e responsáveis pela produção literária e pelos saraus em bares nos bairros periféricos da cidade. (Castro, 2016, p. 52)

Elizandra Souza tem 33 anos e nasceu no bairro de Jardim Iporanga, periferia Sul de São Paulo. A escritora morou alguns anos na Bahia, terra natal dos pais, mas retornou à São Paulo na adolescência, momento em que conheceu o hip-hop e passou a frequentar, em 2004, o sarau da Cooperifa. Em 2006, ingressou na universidade, cursou jornalismo e hoje compõe uma voz significativa na representação de mulheres escritoras negras no ativismo e na Literatura marginal de autoria feminina. Inspirada em outras mulheres negras escritoras, como Conceição Evaristo, Elizandra Souza já publicou dois livros, Punga (2012) e Águas de Cabaça (2012). 

Com relação a essas publicações, o livro Punga traz poemas como, por exemplo, “Meu único dia de mulher”. Nesse poema, o eu lírico, ao expor as angústias da mulher que sofre violência física e simbólica cotidianamente, dá visibilidade a mecanismos de subalternização e de opressão existentes nas relações de gênero, como, por exemplo, a data simbólica 8 de março — Dia Internacional da Mulher —, desconstruindo os sentidos sociais associados a esse tipo de data para denotar como o patriarcado recorre a esses recursos para tentar coagir as mulheres e mantê-las silenciadas nas relações sociais e pessoais.


Oito de março lembraram de mim
Mandou flores, tocou até tamborim.
Como presente de consolação
Além dos bombons ganhei cartão
Elogiou tanto o meu caráter
E me fez se sentir rainha
Fingiu esquecer que não cobiçava o meu corpo
Mas sim a minha carinha

A estrofe acima, que inicia o poema “Meu único dia de mulher”, questiona a hipocrisia social associada aos incentivos midiáticos, cujo objetivo precípuo é o estímulo ao consumo, de valorização do sujeito feminino em um único dia que, na perspectiva do eu lírico, é marcado, simplesmente, por agrados materiais e compreendidos, ironicamente, como presentes de “consolação”, em contraponto às violências físicas e simbólicas vivenciadas por ela nos demais 364 dias do ano.

Nove de março que decepção
Pia cheia e toalha no chão
Pedi para tirar o prato da mesa
E quase levei um bofetão
Disse que o serviço de casa era minha obrigação.
Que mulher só prestava para cozinhar,
Fazer sexo,
Gerar filhos e amamentar.
[...]
Os dias passam e fico esperando
Meu único dia de mulher.
Oito de março.

Nesse poema, a escritora também problematiza a questão da injusta distribuição do trabalho doméstico entre os sexos — um dos grandes desafios das agendas feministas na atualidade — como mais um mecanismo de opressão e de subordinação feminina. Esse poema traz em seu bojo o anseio de não se deixar coagir e subjugar por dispositivos discursivos que invisibilizam as reais condições das mulheres em uniões como as do eu lírico com o seu companheiro — que, no poema, aparece representado ora como sujeito indeterminado ora como sujeito oculto, mas com clara referência a um sujeito do sexo masculino — e o desejo de tornar visíveis os mecanismos de opressão femininos existentes nesse tipo de união.

No que se refere ao campo literário, Elizandra Souza não se esquiva, em sua militância, de apontar as dificuldades enfrentadas por uma poetisa negra da periferia para escapar dos preconceitos. Em uma entrevista ao blog Polifonia Periférica, ela afirmou que o seu trabalho

“é uma luta cotidiana [...] Não é fácil ser uma mulher negra, poeta e da periferia. [...] existem situações complicadas como o assédio, discriminações de gênero, raça/etnia e social que entrelaçados você não sabe porque foi menosprezada se por ser negra, por ser mulher ou por morar na periferia. E tudo isso contribui para que o racismo seja apenas tratado como um tipo de preconceito… ser poetisa negra da periferia é ter dificuldade para publicar livros, as poucas poetisas negras presentes nos saraus não tem publicações dos seus trabalhos, e isso não é só com as poetisas negras, as poetisas em geral tem pouca participação nas antologias e livros, eu ainda não sei definir porque isso acontece, tenho uma hipótese que está muito relacionada com a educação que nós mulheres recebemos que são envolvidas com as atividades do privado, ou seja, atividades domésticas, enquanto os homens são estimulados a voaram cada vez mais alto. As poetisas mulheres negras e não negras mostram pouco seus trabalhos, preocupadas com o que a sociedade irá pensar sobre os seus textos. Como ela será vista depois de recitar um poema.”

Elizandra Souza representa um grupo de escritoras da periferia que, conscientes da exclusão das mulheres da historiografia literária, vem lutando, nos últimos anos, pelo direito de se autorrepresentarem e de representarem, em seus escritos, as demandas de diversos grupos minoritários que não têm espaço na produção literária dos escritores consagrados pelo cânone nacional. Portanto, o que fica evidente é que essas escritoras reivindicam, assim como Ferréz, reconhecimento e acesso não só aos bens culturais, mas ao próprio campo literário como escritoras de obras com significativo valor literário.

Por fim, ressalto, nesse texto, que entendo a Literatura marginal — como prática artística e como movimento social — como uma corrente que atua, nos termos de Teresa de Lauretis, como uma das tecnologias de gênero. Essas produções — que também se relacionam com uma sociedade ainda extremamente conservadora e resistente a modelos não hegemônicos — vêm reivindicando espaço no campo literário e se mostrando como uma potência política e estética de renovação e ruptura de padrões.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.