Pollianna de Fátima Santos Freire
Imagem: Massagona Sylla, art collage |
No Brasil, cujo cânone literário foi constituído e edificado a partir de
obras produzidas por homens heterossexuais, brancos e de classe média alta, a
valorização da literatura produzida por diversos grupos minoritários é um
fenômeno relativamente recente. Trabalhos desenvolvidos no âmbito da crítica
literária feminista, por exemplo, têm se empenhado em mostrar que, aqui, o
cânone se configurou excluindo da historiografia literária nacional as
escritoras mulheres, a exemplo de Maria Firmina dos Reis — que
publicou, em 1859, Úrsula, considerado o primeiro romance de
autoria feminina — e Júlia Lopes de
Almeida, que escreveu vários livros de sucesso, entre eles, Memórias
de Marta, seu primeiro livro, publicado em 1888.
Essas constatações são reforçadas por críticas como Rita Terezinha
Schmidt que, em seu texto “Cânone/ Contra - Cânone: Nem aquele que é o mesmo nem este
que é o outro”, já havia denunciado, na última década do século
passado, essa tendência de exclusão de grupos minoritários do campo literário.
De acordo com a autora, no Brasil, “o discurso crítico sempre esteve atrelado à
herança de uma identidade cultural ocidental europeia na medida em que [...]
compactuou com a política das exclusões que sustenta a lógica canônica”
(Schmidt, 1996, p. 117). Em seu texto, ela argumenta que todo processo do
cânone é excludente porque, geralmente, a sua constituição está pautada em seu processo
de reprodução, que, por sua vez, tem uma força homogeneizadora que atua sobre a
seleção e reafirma as identidades, excluindo, portanto, as diferenças.
No entanto, contrários a essa tendência de exclusão das diferenças,
escritores e escritoras vêm, nas últimas décadas, denunciando, dentro e fora da
sua produção literária, o alijamento de grupos minoritários do campo literário,
nos termos do sociólogo Pierre Bourdieu, bem como vem atuando politicamente
para que esses grupos, por meio da escrita literária, se autorrepresentem ou
trabalhem com a representação das minorias, a fim de questionar e
desestabilizar as estruturas sociais conservadoras que, durante séculos,
calcaram a nossa produção literária.
Nesse contexto, destaca-se, no cenário cultural brasileiro atual, a
corrente literária que se autodenomina Literatura marginal. Essa
corrente literária, que está ligada a uma certa necessidade de os escritores e
as escritoras transformarem a sua produção artística em potência política e
ética que dá voz e direito de representação justa a grupos minoritários, ganhou
força, como instância política, nos saraus que começaram a ser realizados em
regiões periféricas, na cidade de São Paulo, no início do século XXI. Com relação ao conceito, Heloísa Buarque de Hollanda
explica, em seu texto Literatura Marginal, que Ferréz, um dos nomes de
destaques dessa corrente literária, entende por marginal
a busca
de um lugar na série literária para aqueles que vem da margem. E explica
melhor: Literatura marginal é aquela feita por marginais mesmo, até por cara
que já roubou, aqueles que derivam de partes da sociedade que não têm espaço.
Mas adverte: “Quando a gente consegue alguma coisa por meio da arte, não quer
dizer que a vamos sossegar. Temos é que organizar o nosso ódio, direcioná-lo
para quem está nos prejudicando. Tudo o que o sistema não dá, temos que
tomar”. (Hollanda, 2016, s/n)
Então, a Literatura marginal, definida como um tipo de instância
política pelo seu representante mais conhecido, Reginaldo
Ferreira da Silva, o Ferréz, luta para
tirar da invisibilidade a literatura produzida nas periferias de grandes
centros urbanos e seus disseminadores reivindicam reconhecimento do valor
literário, cultural e simbólico das suas produções. Esse autor, que se alimenta
da realidade em que vive para produzir sua literatura, vem, timidamente,
ganhando espaço no campo literário, direito que ele reivindica ao longo do
tempo. Ainda de acordo com Heloísa Buarque de Hollanda, em 2004,
durante a sua participação em uma mesa no Seminário Cultura e Desenvolvimento,
o escritor afirmou: “Quero entrar para o cânone, para a história da literatura
como qualquer um dos escritores novos contemporâneos. E não acho também que
minha comunidade deve se limitar à minha literatura, ela tem o direto de ter
acesso ao Flaubert.” (Hollanda, 2016, s/n).
Os escritores e as escritoras que se consideram como produtores de
Literatura marginal reivindicam para si e para a sua comunidade o direito de
acesso a bens culturais e reconhecimento do valor literário das suas produções,
o que implica mudanças de paradigmas relacionados à representação de grupos
minoritários e local de fala. Nesse sentido, a designação Literatura
marginal marca um posicionamento político que choca com a tendência de vários
escritores, especialmente os contemporâneos, de não quererem atrelar
diretamente a sua produção literária a categorias, como, por exemplo,
literatura de autoria feminina, para não assumirem abertamente as implicações
políticas inerentes a esse tipo de posicionamento.
Também no
contexto da produção da Literatura marginal
destacam-se os textos produzidos por mulheres escritoras, a exemplo de Elizandra
Souza, Dinha, Mel Duarte, Raquel Almeida, Luiza Romão e Jéssica Balbino. A
produção de autoria feminina, por sua vez, torna
esse movimento uma instância política ainda mais significativa, já que a
presença de mulheres e sua atuação política e literária no movimento Literatura
marginal contribuem significativamente para ressignificação de
identidades duplamente estigmatizadas — mulher
e periférica. Essas escritoras trabalham para questionar a autoridade e o
privilégio patriarcal nos espaços público e privado e, embora ainda
timidamente, no campo literário, já que, como enfatizado anteriormente, o alijamento
da produção literária de autoria feminina do campo literário não é um fenômeno
recente.
Nesse contexto, a literatura produzida pelas mulheres que habitam
periferias — as quais, em geral, carregam marcas de preconceitos, injustiças e
desigualdades de gênero, sobretudo no que se refere ao reconhecimento do valor
das suas produções literárias — tem operado com a representação literária de
resistência e atuado como uma instância de renovação e de ruptura de padrões e
de promoção de igualdade de direitos, no que se refere à representação
literária e ocupação de espaços públicos e privado, conforme argumentarei a seguir.
No que se
refere ao espaço, sabe-se que, inicialmente, a Literatura marginal ganhou força
nos saraus das periferias da cidade de São Paulo. Esses eventos que
ressignificaram os modos de produção e de divulgação das produções literárias
de sujeitos oriundos das periferias, tornam-se mais significativos quando
pensamos a sua definição a partir da proposta da pesquisadora Lucia Tennina no
artigo “Saraus das periferias de São Paulo: poesia entre tragos,
silêncios e aplausos”: “reuniões em bares de diferentes bairros
suburbanos da cidade de São Paulo, onde os moradores declamam ou leem textos
próprios ou de outros diante de um microfone, durante aproximadamente duas
horas. Muitos bares [...] funcionam, desde então, também como centros
culturais.”
Os saraus que, conforme a teórica acima, são eventos abertos à comunidade e
acontecem geralmente, em bares, são pensados aqui, inicialmente, como
espaços de resistência, já que, ainda de acordo com Tennina, são “espaços nos
quais normalmente acontecem os episódios que se transformam em estatísticas
posteriormente (os assassinatos e o alcoolismo)”, mas que, no momento dos
saraus, funcionam como espaços estratégicos utilizados pelos sujeitos
oriundos dos espaços periféricos para dar visibilidade, com uma nova dimensão
política, a problemas que se encerravam nas próprias periferias: por um lado,
eles ocupam espaços estigmatizados do contexto social em que estão inseridos e
transformam, por meio da arte, sobretudo da representação literária, questões
das margens em questões do centro; por outro, inauguram na literatura
brasileira contemporânea uma fase em que os escritores e as escritoras começam
a reforçar a luta contra os estereótipos e
desigualdades sociais por meio da reconfiguração do seu próprio
local de fala.
No que se
refere à participação feminina nesses saraus, o fato de esses eventos
acontecerem em bares torna-se então um evento ainda mais significativo se
pensarmos que, historicamente, esse espaço sempre fez parte da história dos
homens, e não da história das mulheres. Essa
determinação dos espaços inerentes à mulher e ao homem está
relacionada a modelos culturalmente estabelecidos de padrões de comportamentos
femininos e masculinos, instituído pelo ideal de
família burguesa, que é uma criação com pouco tempo de existência histórica, e
que designou o espaço privado como o espaço legítimo das mulheres, ao passo que
o espaço público foi designado como espaço legítimo dos homens. Logo, bares, na
perspectiva patriarcal e conservadora, sempre foram considerados lugares
inadequados para mulheres “decentes”.
Nessa perspectiva, conjecturo que o fato de os saraus acontecerem
em bares, que passam também a ser ocupados por mulheres, as quais transitam
livremente e participam de modo ativo das atividades culturais, desestabiliza noções conservadores de sexo/gênero,
sobretudo àquelas intrinsecamente relacionadas aos espaços cultural e socialmente
designados como sendo legítimos de homens — espaço público — e de mulheres —
espaço privado. Aqui, o próprio espaço onde se promove a literatura ajuda a
desconstruir discursos hegemônicos, já que as mulheres passam também a ocupar
os bares e abrir caminho para novas formas de representação, que não só
questiona esse sistema de base patriarcal, mas atua para desestabilizá-lo.
Voltando ao plano literário, as várias mulheres escritoras que vem se
destacando nessa produção de literatura marginal estão
inaugurando uma fase da literatura de autoria feminina no Brasil que oferece
novas perspectivas em relação à posição que a mulher pobre, negra e periférica
ocupa no cenário da produção literária. Em geral, essas produções denunciam e
ressignificam as situações de opressão e violência a que as mulheres são
submetidas nas relações sociais.
Com uma posição política clara e bem marcada, elas reivindicam o direito de
falar por si mesmas e questionam os modelos femininos de submissão herdados da
sociedade patriarcal. Nos textos, evidencia-se o discurso de luta pela
emancipação feminina, o qual funciona para dar visibilidade às questões de
gênero e, consequentemente, ajuda a movimentar as discussões sobre a
necessidade de romper com paradigmas patriarcais relacionados à posição das
mulheres na sociedade e no próprio campo literário.
Aqui, destaco a poetisa Elizandra Souza, escritora negra e feminista que atua
também como promotora de cultura, arte e, principalmente literatura, em bairros
da periferia de São Paulo. Sobre a escritora, Sílvia Regina Lorenso Castro, em
seu artigo “Elizandra Souza: escrita periférica em diálogo transatlântico”,
afirma que
a vida e a obra da escritora
Elizandra de Souza tornam-se uma espécie de lente de acesso, permitindo-nos ler
a literatura e a periferia brasileiras partindo de outra perspectiva: uma
perspectiva negra, feminista, jovem, urbana, conectada com as inovações
tecnológicas da vida moderna, relacionada a um agir local e um pensar global a
partir de referências afrodiaspóricas, em consonância com as teorias negras
feministas e com o pensamento descolonial latino-americano. Vida e obra de
Elizandra estão inseridas em um diálogo mais amplo sobre a atual geração de
jovens escritores e escritoras da periferia de São Paulo, adeptos da cultura
hip-hop e responsáveis pela produção literária e pelos saraus em bares nos
bairros periféricos da cidade. (Castro, 2016, p. 52)
Elizandra Souza tem 33 anos e nasceu no bairro de Jardim Iporanga, periferia Sul de São Paulo. A escritora morou alguns anos na Bahia, terra natal dos pais, mas retornou à São Paulo na adolescência, momento em que conheceu o hip-hop e passou a frequentar, em 2004, o sarau da Cooperifa. Em 2006, ingressou na universidade, cursou jornalismo e hoje compõe uma voz significativa na representação de mulheres escritoras negras no ativismo e na Literatura marginal de autoria feminina. Inspirada em outras mulheres negras escritoras, como Conceição Evaristo, Elizandra Souza já publicou dois livros, Punga (2012) e Águas de Cabaça (2012).
Com relação a essas publicações, o livro Punga traz poemas
como, por exemplo, “Meu único dia de mulher”. Nesse poema, o eu lírico, ao
expor as angústias da mulher que sofre violência física e simbólica
cotidianamente, dá visibilidade a mecanismos de subalternização e de opressão
existentes nas relações de gênero, como, por exemplo, a data simbólica 8 de
março — Dia Internacional da Mulher —, desconstruindo os
sentidos sociais associados a esse tipo de data para denotar como o patriarcado
recorre a esses recursos para tentar coagir as mulheres e mantê-las silenciadas
nas relações sociais e pessoais.
Oito de março lembraram de mim
Mandou flores, tocou até tamborim.
Como presente de consolação
Além dos bombons ganhei cartão
Elogiou tanto o meu caráter
E me fez se sentir rainha
Fingiu esquecer que não cobiçava o meu corpo
Mas sim a minha carinha
Mandou flores, tocou até tamborim.
Como presente de consolação
Além dos bombons ganhei cartão
Elogiou tanto o meu caráter
E me fez se sentir rainha
Fingiu esquecer que não cobiçava o meu corpo
Mas sim a minha carinha
A estrofe
acima, que inicia o poema “Meu único dia de mulher”, questiona a hipocrisia
social associada aos incentivos midiáticos, cujo objetivo precípuo é o estímulo
ao consumo, de valorização do sujeito feminino em um único
dia que, na perspectiva do eu lírico, é marcado, simplesmente, por
agrados materiais e compreendidos, ironicamente, como presentes de
“consolação”, em contraponto às violências físicas e simbólicas vivenciadas por
ela nos demais 364 dias do ano.
Nove de março que decepção
Pia cheia e toalha no chão
Pedi para tirar o prato da mesa
E quase levei um bofetão
Disse que o serviço de casa era minha obrigação.
Que mulher só prestava para cozinhar,
Fazer sexo,
Gerar filhos e amamentar.
[...]
Os dias passam e fico esperando
Meu único dia de mulher.
Oito de março.
Nesse
poema, a escritora também problematiza a questão da injusta distribuição do trabalho doméstico entre os
sexos — um dos grandes desafios das agendas feministas na
atualidade — como mais um mecanismo de
opressão e de subordinação feminina. Esse poema traz em seu bojo o
anseio de não se deixar coagir e subjugar por dispositivos discursivos que
invisibilizam as reais condições das mulheres em uniões como as do eu lírico
com o seu companheiro — que, no poema, aparece representado ora como
sujeito indeterminado ora como sujeito oculto, mas com clara referência a um
sujeito do sexo masculino — e o desejo de tornar visíveis os
mecanismos de opressão femininos existentes nesse tipo de união.
No que se refere ao campo literário, Elizandra Souza não se esquiva, em sua militância, de apontar as dificuldades enfrentadas por uma poetisa negra da periferia para escapar dos preconceitos. Em uma entrevista ao blog Polifonia Periférica, ela afirmou que o seu trabalho
“é uma luta cotidiana [...] Não é
fácil ser uma mulher negra, poeta e da periferia. [...] existem situações
complicadas como o assédio, discriminações de gênero, raça/etnia e social que
entrelaçados você não sabe porque foi menosprezada se por ser negra, por ser
mulher ou por morar na periferia. E tudo isso contribui para que o racismo seja
apenas tratado como um tipo de preconceito… ser poetisa negra da periferia é
ter dificuldade para publicar livros, as poucas poetisas negras presentes nos
saraus não tem publicações dos seus trabalhos, e isso não é só com as poetisas
negras, as poetisas em geral tem pouca participação nas antologias e livros, eu
ainda não sei definir porque isso acontece, tenho uma hipótese que está muito
relacionada com a educação que nós mulheres recebemos que são envolvidas com as
atividades do privado, ou seja, atividades domésticas, enquanto os homens são
estimulados a voaram cada vez mais alto. As poetisas mulheres negras e não
negras mostram pouco seus trabalhos, preocupadas com o que a sociedade irá
pensar sobre os seus textos. Como ela será vista depois de recitar um poema.”
Elizandra
Souza representa um grupo de escritoras da periferia que, conscientes da
exclusão das mulheres da historiografia literária, vem lutando, nos últimos
anos, pelo direito de se autorrepresentarem e de representarem, em seus
escritos, as demandas de diversos grupos minoritários que não têm espaço na produção
literária dos escritores consagrados pelo cânone nacional. Portanto, o que fica
evidente é que essas escritoras reivindicam, assim como Ferréz, reconhecimento
e acesso não só aos bens culturais, mas ao próprio campo literário como
escritoras de obras com significativo valor literário.
Por fim,
ressalto, nesse texto, que entendo a Literatura marginal — como prática
artística e como movimento social — como uma corrente que atua, nos termos de
Teresa de Lauretis, como uma das tecnologias de gênero. Essas produções — que
também se relacionam com uma sociedade ainda extremamente conservadora e
resistente a modelos não hegemônicos — vêm reivindicando espaço no campo
literário e se mostrando como uma potência política e estética de renovação e
ruptura de padrões.
*Este texto contém partes da dissertação intitulada Entre o impasse e a transgressão: a representação da
conjugalidade em narrativas de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e
Cíntia Moscovich, defendida por mim, em 2015, na UnB.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.