Anderson de Figueiredo Matias
Imagem: Adauto Cruz |
A
tristeza era grande. Olhava ao redor e só sentia a frieza das algemas. Quantas
vezes fora preso por tráfico. Duas? Três? Não se recordava. Estava meio
confuso com o que acabara de ouvir. Ainda mais porque fora dito por um
policial. Eles só queriam bater, ferrar e matar a gente! (...) Mas a frase
ficava se repetindo em sua mente. Às vezes como se fosse um sussurro. “Todos
podemos mudar e melhorar. Por que com você seria diferente? Tente.” A voz era
calma e ele não parecia querer me esfolar vivo.
(PAVIANI,
2015, p. 124)
A epígrafe, parte do artigo “A geopolítica da
violência urbana e o papel do Estado”, de Marília Steinberger e Ana Izabel
Cardoso, publicado no livro Brasília:
dimensões da violência urbana (2015), antecipa a dimensão do problema
aqui apresentado. Trata-se do relato de um cidadão autuado em uma delegacia de
Ceilândia, cidade distante 30 km de Brasília. De início, um aspecto chama a
atenção: a atuação equilibrada, ética e respeitosa de um policial militar,
que apresentaria um tratamento mais humanizado por aqueles que implementam
ações do Estado de combate à violência e ao crime na periferia.
Mesmo sendo o Brasil, pelo menos no
plano teórico, uma sociedade democrática e, portanto, inclusiva, atuações
como essas não são uma regra. O que se vê ainda é a ação de um estado
autoritário que distingue cidadãos com mais e menos poder e utiliza a
estratégia de combate ao inimigo, principalmente nas regiões periféricas e
contra populações pobres. Por essa razão, é preciso pensar as relações que
se estabelecem entre espaço, violência e Estado, uma vez que a gênese da
violência urbana é normalmente atribuída às desigualdades sociais
materializadas na segregação espacial.
Outro artigo, publicado no mesmo
livro, aborda justamente essas relações. Em “A violência e as condições
degradantes do meio urbano”, Marta Adriana Bustos Romero analisa a
periferização institucionalizada pelo Estado a partir da relação
centro-periferia, usando como exemplo duas cidades de Brasília. De um lado, o
Plano Piloto, com larga oferta de infraestrutura e serviços públicos. Do
outro, Ceilândia, com poucos equipamentos públicos, sem lugares para o
exercício de relações de convívio e com grande oferta de força de trabalho
em um evidente processo de segregação urbana. Ainda segundo Romero, em
relação à Ceilândia, “o tamanho, a disposição, a escassa diversidade, a
falta de tratamento, a falta de definição dos espaços, a falta de
identidade, a pobreza do vocabulário formal, etc. contribuem para a
elaboração de um espaço que reforça as relações conflituosas do lugar”.
Nesse sentido, Ceilândia, que já
nasce como uma ação de violência cometida pelo Estado, é um caso a respeito do
qual se deve pensar. O próprio nome aponta para isso, pois deriva da sigla CEI
(Campanha de Erradicação de Invasões), resultado de uma política de
segregação cujo intuito real era preservar a pureza do Plano Piloto. Para
isso, em 1970, mais de 80 mil moradores das favelas da Vila do IAPI, Vila
Tenório, Vila Esperança, Vila Bernardo Sayão e Morro do Querosene foram
removidos à revelia pelo governo para um local sem infraestrutura, com escassa
acessibilidade.
De acordo com o discurso oficial,
essas favelas eram uma quebra no padrão habitacional de Brasília. Daí a
necessidade de transferi-las e, assim, oferecer condições melhores para a
população carente. Além da promessa de aquisição da casa própria, que, embora
em áreas distantes, seguiria os mesmos princípios de planejamento moderno, o
Estado, para justificar a remoção, usou um argumento ideológico: os
moradores deixariam a condição de invasores.
Entretanto, os benefícios
anunciados por esse discurso desapareceram diante da violência na remoção
das famílias e da precariedade dos novos assentamentos, a qual, de certa
forma, é mantida até hoje. Para verificar essa afirmação, vale considerar
dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD), publicada em
2015/2016, pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). Os
resultados mostram que apenas 19,2% dos domicílios contam com ruas
arborizadas, 4,8% com espaço cultural e 4,9% com jardins e parques. Além
disso, essas condições podem ser associadas a outras, como condições
bioclimáticas desfavoráveis, a difícil mobilidade e a dependência
socioeconômica do Plano Piloto.
Nesse sentido, é preciso compreender
como opera, nos espaços físicos e políticos da cidade, a segregação, que acaba
marcada também por recortes de classe e raça. No caso de Ceilândia, o Estado
utilizou o planejamento urbano com objetivo claro: silenciar, separar, isolar e
confinar geograficamente elementos indesejados – no caso, os pobres – e manter
esse grupo social em condição de subalternidade. Isso porque a configuração
sociocultural desse espaço altera profundamente valores, resultando, muitas
vezes, em violência empregada como recurso, como estratégia para afirmação
de identidades socialmente negadas, oportunidade para compensar frustrações e
raiva. Assim, ao mesmo tempo em que se produziu um território marginal,
marcado por um modelo urbano pobre, passível de desintegração e
deterioração, criou-se uma visão estigmatizada dessa população, sobre a
qual a degradação própria do espaço se projeta.
Essa constatação, que também pode ser
observada em outros lugares no Brasil, remete-nos a questões interessantes para
aqueles que, a partir de uma perspectiva crítica, desejam uma sociedade mais
justa e menos excludente. Entre elas, está: como se pode garantir espaço para a
expressão dos socialmente excluídos?
No centro do debate suscitado por
essa questão está a reflexão acerca da função da arte e do seu potencial de
humanização, a partir dos quais se pode romper a linha contínua, existente
desde o fim do século XIX, entre um imaginário social eivado de preconceitos
e as práticas excludentes. Isso
porque em narrativas literárias a representação do espaço pode reconstruir a
periferia como um lugar do qual personagens se apropriam a fim de ressignificar
o sentido da degradação e da precariedade, sem perder de vista a abordagem
crítica dos problemas sociais e a consciência da necessidade de superação
desses problemas. Pode-se considerar, como exemplo dessa representação, duas
narrativas: o filme A cidade é uma só?,
de Adirley Queirós (2013), e o romance Becos
da memória, de Conceição Evaristo (2006).
No filme, observa-se o contraste
entre dois ambientes interdependentes, já que são faces de um mesmo
acontecimento, tanto na realidade quanto na ficção. De um lado, Ceilândia,
espontânea e caótica. De outro, o Plano Piloto, planejado e estéril. Por
isso o nome do filme, uma pergunta que mostra como a segregação criou uma
cidade inacabada e aponta para consciência crítica acerca dessa segregação.
Essa consciência está diretamente
relacionada ao personagem Dildu, que trabalha como servente no Plano Piloto e
faz o percurso entre a rodoviária e a Ceilândia. Na sua função é
invisível, mas, em Ceilândia, é reconhecido e mostra a indignação com a
situação da periferia por meio de sua campanha para deputado distrital, reivindicando
o reconhecimento de uma população não incorporada à cidade que ajudou a
construir.
Já em Becos da memória, a violência do processo de desfavelamento pode
ser observada na passagem em que a narradora, Maria-Nova, apresenta a organização
da festa junina, patrocinada pelo moradores do bairro nobre, ao lado da favela.
Segundo a personagem, “bancavam para que os favelados não os importunassem.
Havia outros bairros perto de favelas em que as casas eram constantemente
arrombadas. Parece que havia mesmo um acordo tácito entre os favelados e seus
vizinhos ricos. Vocês banquem nossa festa junina, deem-nos as sobras de suas
riquezas, oportunidades de trabalho para nossas mulheres e filhas e, antes de
tudo, deem-nos água, quando faltar aqui na favela. Respeitem nosso local,
nunca venham com plano de desfavelamento, que nós também não arrombaremos a
casa de vocês”. Essa passagem materializa, no campo literário, um fato que
demostra a importância de se estudar a violência impingida às populações
periféricas.
É também por meio dessas memórias
que a narradora apresenta uma ficção singular, marcada por narrativas
particularizadas, pelas quais personagens como Bondade são retratados. Bondade
é um agregado de passado desconhecido cujo nome remete a uma característica
muito peculiar, a capacidade de acolher os mais necessitados mesmo vivendo a
miséria. Para a narradora, “Bondade fazia jus ao apelido. Não tinha pouso
certo. Morava em lugar algum, a não ser no coração de todos. (…) O tempo ia
passando, Bondade ficando ali. Comia em casa de um, bebia em casa de outro. Era
amigo comum de dois ou mais inimigos. Não era traidor e nem mediador também.
Quando chegava a casa de um, por mais que indagassem, por mais que futricassem,
Bondade não abria a boca. Desconversava, conversava, e a intriga morria logo.
Vivia intensamente cada lugar em que chegava. Cada casa, cada pessoa, cada
miséria e grandeza a seu tempo certo, no seu exato momento”.
O comportamento de Bondade impede a
visão estereotipada que associa a degradação do espaço das periferias com a
degradação dos personagens e revela a coexistência de misérias e grandezas,
um retrato normalmente ignorado pelos noticiários e pela escrita hegemônica.
Dessa maneira, personagens como
Dildu e Bondade, moradores de espaços com tantas ausências, demonstram que, no
contexto no qual vivem, existe a possibilidade de sobreviver à precariedade e assim
defender a própria identidade. Isso constitui uma estratégia de relevante
importância política e cultural, já que permite ao leitor vivenciar a
representação das diferenças sociais e raciais em nossa sociedade por uma outra
perspectiva.
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