Tomaz Amorim Izabel
Xilogravura de Gilvan Samico |
Gótico nordestino, último livro de contos de
Christiano Aguiar, publicado este ano pela Alfaguara, tem um apelo para o
público jovem e é indissociável de uma estética contemporânea ligada ao pop das
séries de televisão. O livro traz nove histórias curtas com enredos ligados ao
sobrenatural ou, no sentido literário mais tradicional, ao “estranho”. A
inovação do livro estaria na ambientação dos temas para cenários locais,
adaptando figuras do imaginário pop como zumbis e vampiros para as condições
sociais e psicológicas do Nordeste brasileiro. A exuberância “neo-armorial” que
poderia surgir daí (como sugerido na bela capa escolhida para a edição) acaba
pendendo mais para a repetição com pouco diferença típica da Indústria Cultural
e o resultado estético é como muitas das séries brasileiras dos serviços de
streaming: mantém uma estrutura narrativa gringa, com uma cor local. Isso não
impede que muitos leitores possam se divertir com o esforço imaginativo do
livro, que tem principalmente nas descrições mais plásticas um estranho efeito sedutor.
A
reflexão sobre o livro pode nos levar a pensar sobre a literatura fantástica,
ou “especulativa”, em sentido amplo e a duas coisas que são fatais a ela: a
explicação total dos acontecimentos, de um lado, e sua gratuidade, do outro. As
melhores histórias fantásticas são aquelas em que o monstro nunca surge
completamente descrito, em que o mistério nunca se revela por completo. (É
conhecido o pedido de Franz Kafka a seu editor de que o terrível inseto nunca
fosse desenhado na capa!) As histórias mais instigantes são aquelas em que algo
do estranho está intimamente ligado ao lugar, às pessoas, ao cotidiano e nunca
é mesmo completamente separável deles. Para ter profundidade, para incomodar,
para se ligar ao leitor como uma ventosa que nunca mais se soltará de sua pele,
o novo do estranho precisa ser também um velho conhecido (como Freud argumenta
em seu conhecido ensaio sobre O homem de areia de E.T.A. Hoffmann).
Em
Gótico nordestino, há desde o título uma tentativa feliz de fazer o
horror surgir a partir das especificidades locais. O sucesso da tentativa é
bastante variado nas diferentes histórias. Embora o cenário seja declaradamente
o sertão de cangaceiros ou uma praia abandonada de uma cidadezinha do litoral,
as especificidades deste local nem sempre se ligam ao misterioso. A impressão é
de que as histórias permanecem mais fiéis ao gótico de origem do que ao
nordestino para onde são transplantadas. Isso dá um elemento de gratuidade a
algumas das narrativas, como se cenário e ação flutuassem um sobre o outro, sem
se ligar e sem interferir um no outro. A rica tradição oral de histórias de
assombrações e criaturas fantásticas brasileiras, seu modo específico de
indicar a presença conhecida daquele estranho, dá lugar a um misterioso
externo, que vem de fora (o que literalmente acontece, por exemplo, no caso na
maldição de “A mulher dos pés molhados”). Uma outra estratégia praticada no
livro, a de normalizar o estranho e com isso causar um espanto ainda maior (ao
modo de Cortázar, Calvino ou Borges), também não se concretiza por um excesso
de adjetivos e tons penumbrosos demais.
Assim, as histórias do livro
parecem ser concebidas mais a partir de um certo efeito visual sedutor que, ao
invés de servir de motor para a narrativa, acaba servindo de ponto de chegada,
como uma faca ou olhos ou um incêndio que brilham no escuro e que se quer
mostrar. Esse efeito não surge tanto da relação entre os personagens, de um
acontecimento infeliz do passado, acobertado pela razão, que ressurge novamente
no presente (como em tantas histórias de Edgar Allan Poe), mas fica desligado
deles. Abate-se sobre os personagens com uma certa arbitrariedade, que faz
também com que a construção narrativa perca em força. Em resumo, as histórias
parecem buscar mais uma exuberância visual do que narrativa, por assim dizer.
Isso não é tanto um problema
desse trabalho específico, quanto um sintoma das relações pendulares entre
cinema e literatura, e sua manifestação específica em nosso momento atual. O
último peso adicionado nessa balança em movimento (depois talvez dos
videoclipes de duas décadas atrás) são justamente as séries de streaming. No
caso de Gótico nordestino, vê-se as influências já consagradas do
audiovisual – a velocidade, o corte das cenas, o elemento visual como condutor
da construção das personagens –, mas também algo além. A narrativa privilegia
de tal maneira os elementos visuais e suspensão ao se confrontar com o estranho
(“Fim do episódio, desejar continuar assistindo a série?”), que acaba por abrir
mão da construção psicológica dos personagens. O último conto, “Vampiro”, é
exemplar disso. Toda a longa construção da personagem e de cenário é trocada
por um pequeno susto-revelação no final.
A adição de elementos
estranhos rumo a um rompante surpreendente (coisa já da estética romântica que
a Indústria Cultural repete ad nauseam)
é um procedimento tão recorrente no livro que o leitor às vezes tem a impressão
de estar lendo uma versão romantizada de uma série fantástica da Netflix. Ou,
dito pelo contrário, é como se lêssemos um livro de contos escrito para ser
roteirizado e transformado em série. A simplicidade vocabular e sintática,
voltada quase sempre para a ação ou para as impressões de um narrador colado no
protagonista, dá às histórias uma clareza de vídeo, o que dificulta justamente
a construção de uma ambientação de horror... A opção por estes mecanismos, ao
invés de técnicas narrativas da palavra ou da tradução de técnicas
cinematográficas em técnica literária, parece visar um leitor mais educado na
tradição do audiovisual do que na literária, ou seja, sem dúvida fala muito com
a maioria dos leitores brasileiros, o que talvez justifique sua inclusão no
polêmico gênero da “literatura de entretenimento”.
O conto mais interessante do
livro, “Anna e seus insetos”, funciona melhor justamente porque explica menos,
envolve a estranha presença dos insetos em questões pessoais da protagonista,
que é descrita em detalhes convincentes. A questão do “sobrenatural” quase não
se coloca. Podia ser tudo mergulho psicológico ao modo clariciano, ou seja, de
profundidade metafísica, assombrosa, já para muito além da mera física...
Uma
das dificuldades dessa empreitada do horror brasileiro (ou melhor, da ficção
especulativa como um todo) talvez seja a relação histórica específica de nossa
cultura com o chamado sobrenatural. Enquanto as histórias fantásticas europeias
e estadunidenses surgiam quase que em oposição à racionalização e à
secularização modernas (como, por exemplo, no Drácula de Bram Stoker ou
nas histórias do Cthulhu de H. P. Lovecraft), tratando dos vestígios do
encantado (locais ou trazidos das colônias) durante seu próprio processo de
extinção, aqui, nos territórios colonizados, mas com múltiplas matrizes
culturais vivas e atuantes como o nosso, o elemento fantástico não pode ser
simplesmente “folclorizado” e dissociado da vida cotidiana e das práticas
religiosas das pessoas. O fantástico aqui precisa ser tratado como elemento
ordinário, não extraordinário, e isso subverte o elemento de excepcionalidade
que até então definia o gênero nos territórios modernizados do norte.
O termo já paradoxal “realismo fantástico”, que se desenvolveu não por acaso na América do Sul, foi uma tentativa de representação dessa configuração específica. A ambivalência católica (que aqui também sempre tem algo de mágico) e a indecidibilidade diante da existência do Diabo em Grande sertão: veredas é outro grande exemplo. A literatura contemporânea também parece lidar de maneira crítica com a questão. É difícil, por exemplo, chamar obras contemporâneas como Torto arado, de Itamar Vieira, Exu em Nova Iorque, de Cidinha da Silva, ou O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk, de literatura fantástica ou de realismo mágico. A sobrevivência de certos elementos do encantado resistentes à modernização colonizadora por todo o território são o que existe de mais característico e fundamental para nossa riquíssima tradição oral, e são fundamentais para uma literatura especulativa que se queira brasileira. (Experimentações afrofuturistas, por exemplo, parecem seguir esta trilha...) Lidar com isso pode abrir possibilidades excitantes para redefinir os estatutos do real e do fantástico, ou melhor, pode oferecer representações condizentes das relações únicas entre o real e o fantástico que se estabelecem por aqui. Seria o caso talvez de imaginar depois do “Gótico nordestino”, também um “Nordestino gótico".
* Este texto é uma versão modificada de uma resenha publicada no Jornal Rascunho.
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