Érica Peçanha do Nascimento
Imagem: Bansky
São diversos os recursos para classificar, validar ou deslegitimar textos e autores: qualificá-los como literatura com letra maiúscula ou minúscula; incluí-los ou excluí-los de currículos obrigatórios de cursos da educação básica, graduação e pós-graduação; considerá-los ou desprezá-los nas premiações literárias; adjetivá-los para circunscrever, positiva ou pejorativamente, um lugar de enunciação; incorporá-los ou suprimi-los do acervo de bibliotecas; garantir-lhes ou negar-lhes o acesso aos mecanismos de estímulo à criação e difusão cultural, entre outros.
Entretanto, não se pode pensar esses mecanismos de valoração como processos unilaterais protagonizados por agentes especializados no campo literário (como críticos, editoras, instituições culturais e de ensino, livrarias, etc.) e aceitos, passivamente, pelos demais, entre eles, autores e leitores. Trata-se de um contexto de disputa, onde indivíduos e grupos se colocam em situação de concorrência por espaço e legitimidade, por vezes lançando mão de estratégias que visam tensionar tradições e estruturas de incentivo e reconhecimento.
Penso que é nessa direção que podem ser compreendidas as estéticas e estratégias de produção e circulação mobilizadas por escritores de origem negra e periférica, que ganharam visibilidade na cena artística a partir da defesa de uma literatura com suas próprias marcas, mas cujos textos e atuação estão muito além da distinção racial ou de território. Não me refiro a biografias isoladas que podem ser encontradas desde o século XIX (dentre os quais Cruz e Souza e Lima Barreto, por exemplo), mas da emergência coletiva de vozes literárias que se afirmam negras e periféricas entre o final do século XX e início do XXI, e que, por meio de suas formas de produzir e fazer circular textos, buscam reivindicar o lugar de grupos marginalizados na história da literatura brasileira.
A despeito das particularidades estéticas e de surgimento histórico das literaturas negra e periférica, e das divergências e dissensos que cercam essas expressões, considero, aqui, aquilo que as aproxima em suas perspectivas sobre o fazer literário e relações mais amplas com a sociedade. Em primeiro lugar, refiro-me à possibilidade de se discutir marginalizados sociais – especificamente negros e periféricos – que sempre foram tema ou inspiração para criações artísticas, não apenas como objetos, mas também como sujeitos da escrita. E isso não é pouco, tendo em vista que, mesmo no caso das obras que não se atém a questões morais, éticas e políticas, literatura é sempre uma representação que interpreta e organiza aspectos da realidade. Portanto, como produção artística, carrega consigo marcas históricas e convenções sociais, e traz à tona importantes debates sobre o ponto de vista de quem fala (autores e suas marcas de classe, raça, local de moradia, gênero, orientação sexual, etc.) e do lugar de onde se ouve (o público-leitor, o mercado, os estudiosos, a crítica especializada, etc.).
O que se coloca em debate é o perfil sociológico dos escritores brasileiros e do tipo de discurso literário que vem sendo produzido, já que, como sinalizam estudos de diferentes momentos históricos (Antonio Candido, nos anos 1950; e Regina Dalcastagnè, mais recentemente), a literatura brasileira pode ser caracterizada como predominantemente elitista, branca, masculina e, atualmente, urbana. É muito significativo, nesse sentido, que um conjunto de autores de origem popular assuma o projeto estético de retratar o que é peculiar a espaços e sujeitos marginalizados, trazendo para o campo literário temas, termos, recursos, personagens e linguajares igualmente submetidos a processos de marginalização. Produzindo, com isso, uma ressignificação do que é ser negro e periférico a partir da construção de novos discursos sobre esses sujeitos, seus corpos, suas subjetividades e experiências sociais, na busca por uma representação positiva e afetiva do que comumente (e literariamente) está associado à falta intelectual e material, objetificação, violência e subalternidade.
Em segundo lugar, conforme argumento defendido por Mário Medeiros da Silva em A descoberta do insólito, mesmo que acumulem algumas décadas de criação e atuação, produtores de literatura negra e periférica continuam participando de forma “desigual e subalternizada no sistema social e literário em sua forma produtiva (no que tange aos recursos), distributiva (enquanto acesso a um público) e de consumo (referente à recepção) dessas manifestações”. Isso significa apontar que, muito embora as marcas raciais e de território ajudem escritores a se posicionar no campo literário, sendo parte importante da construção da autoimagem e do modo pelo qual gostariam de ser reconhecidos por financiadores, estudiosos, críticos e leitores, ainda é pouco expressivo, no que diz respeito à circulação e legitimação, o interesse demonstrado até aqui pelo mercado editorial, Estado, academia, imprensa e público-consumidor por essas estéticas.
Desse modo, apesar de não demonstrarem resistência em publicar por grandes editoras – pelo contrário, até aventam essa oportunidade como um modo de agregar prestígio às suas produções e ampliar seu número de leitores – escritores negros e periféricos continuam publicando, majoritariamente, de maneira independente, em livros artesanais ou impressos em gráficas que cobram pela edição. Por isso mesmo, uma das estratégias mais recorrentes de produção têm sido as publicações coletivas, onde se pode dividir os custos ou somar talentos na busca por patrocínio. Outro recurso tem sido a criação de um circuito especializado, com editoras, selos e livrarias voltadas para nichos de produção/consumo negro e periférico.
Nesses circuitos, os produtos gerados surgem como projetos coletivos para dar visibilidade a uma produção existente e que não encontra espaço no mercado editorial consolidado – e possivelmente por isso não figure nas listas de contemplados de importantes prêmios literários do país (como lembra Regina Dalcastagnè). É por meio desses produtos (revistas e coletâneas literárias, CDs de poesia, livros autorais) que se busca aprofundar e discutir a experiência de sujeitos negros e periféricos na literatura e incentivar o hábito da leitura de seus textos. Sobretudo porque a circulação dos textos ocorre, principalmente, nas áreas de atuação desses autores: eventos focados em cultura negra e periférica e saraus literários organizados nas periferias, tendo em vista que muitos deles ficam encarregados de vender seus livros ou encontrar espaços alternativos para comercializá-los.
Em terceiro lugar, na medida em que literatura negra e literatura periférica se traduzem em obras, perfis sociológicos e modos de inserção específicos de produtos e autores no campo literário, para além das questões teóricas e problematizações já formalizadas no âmbito acadêmico (como as discussões sobre o próprio fazer literário, lugar de enunciação, representação social e representatividade, função da literatura, formação de cânones, etc.), faz-se urgente pensar na manutenção ou criação de ações públicas que permitam ampliar os mecanismos de produção e difusão dessas estéticas e, assim, romper o monopólio de estratos socialmente privilegiados como produtores reconhecidos e legitimados de literatura. Em especial, por conta do papel determinante do Estado brasileiro na conformação de um mecenato cultural e das tradições estéticas que vigoraram no cenário artístico, ou mesmo, do quadro de políticas que vem sendo implementadas desde os anos 1990 para ampliar a participação da sociedade civil no setor da cultura.
Este texto é uma versão reduzida de artigo publicado originalmente em Africanidades e relações raciais (organizado por Cidinha da Silva). Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2014.
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