27 de junho de 2015

Sobre a ficção e o contemporâneo

Luciene Azevedo


Foto: Regina Dalcastagnè


Como afirma Jean-Luc Nancy em conferência proferida na Itália em 2006, o que identificamos como contemporâneo muda suas fronteiras todo o tempo e isso pode contribuir para que essa categoria se torne inócua. Além disso, o filósofo francês chama a atenção para a facilidade com que nos referimos, por exemplo, à arte contemporânea, sem que atentemos para o fato de que o adjetivo não parece apontar, delimitar nenhuma modalidade estética específica. Ainda que valham como advertência necessária para os pesquisadores que prezam a reflexão sobre sua própria prática investigativa e sobre os horizontes teóricos que a orientam, as observações não são um argumento definitivo para que nos coloquemos sob um certo dictum presente na área das ciências humanas que aconselha ao pesquisador manter uma distância crítica de seu objeto, esperando que ele se distancie no tempo, e aí se acomode. Mas é o desdobramento da argumentação de Nancy que mais chama a atenção.

O filósofo afirma que o termo contemporâneo servindo como categoria de referência à produção artística hoje funciona como um sintoma de certa inespecificidade disciplinar, que viola categorias estéticas, violando, por tabela, a possibilidade de circunscrever com segurança (até bem pouco tempo possível) um número de práticas artísticas situadas essencialmente dentro de um campo artístico específico. Mesmo que o desenvolvimento do comentário esteja permeado por certo tom negativo, a dicção mesma do filósofo sugere uma transformação da noção de arte hoje. É aí que reside nosso interesse: não apenas na reflexão sobre a possibilidade de um deslizamento, de uma modificação dos regimes artísticos contemporâneos, mas na investigação sobre as formas que indiciam essa transformação. Assim, dentre as muitas perguntas formuladas por Nancy em seu texto, é essa que nos parece fundamental: “Quais são as formas, as formações de formas que a arte [contemporânea] faz surgir?”

As formas contemporâneas do romance (aquele produzido a partir da última década do século XX até hoje) oferecem uma forma de ler o presente através de formações que desafiam a própria literatura, uma vez que se deixam reconhecer em um número de obras que não parecem mais fazer parte do que reconhecemos como literatura desde o século XVIII.

Em 2013, em ensaio publicado no jornal O Globo, Flora Sussekind identificava na literatura contemporânea brasileira o que chamou de “objetos verbais não identificados” para nomear algumas experiências literárias perturbadoras das manias taxionômicas mais convencionais. Dentre as características elencadas, Sussekind destacava “a sobreposição de registros e de modos expressivos diversos” e apontava “um tensionamento propositado de gêneros, repertório e categorias basilares à inclusão textual em terreno reconhecidamente literário”.

O mais instigante no argumento é a constatação das transformações sofridas pela própria ideia de arte, das mudanças da forma de apresentação dos produtos que podem ser considerados artísticos, de seus procedimentos de formalização e dos valores envolvidos no ajuizamento de sua categorização (arte ou não?). A afirmação peremptória de que essa constatação deve ser encarada como um desafio crítico está fundamentada na existência de objetos estranhos às configurações com as quais estamos ainda acostumados a lidar quando se trata do universo artístico. Mas de onde vem essa estranheza? Não deixa de ser curioso que em ambos os argumentos a noção de forma apareça colocada em xeque. Digo curioso porque é a noção de forma que inaugura um campo específico para a arte. Se pensamos, por exemplo, nas Cartas sobre a educação estética do homem, vemos Schiller esforçando-se para configurar a noção de autonomia e a especificidade do mundo estético diante dos impasses colocados pelos desdobramentos da Revolução Francesa. Enfrentando a acusação da extemporaneidade das preocupações com a arte em momento tão delicado, Schiller quer arrebanhar partidários à causa da cultura literária e artística. Para tanto, parece supor como necessário estabelecer os limites, as definições, o característico do procedimento artístico e elege o labor com a forma na constituição da obra de arte como peça fundamental: “Numa obra de arte verdadeiramente bela o conteúdo nada deve fazer, a forma tudo. (...) O conteúdo, por sublime e amplo que seja, age sobre o espírito sempre como limitação, e somente da forma pode-se esperar verdadeira liberdade estética”. Mesmo a fúria demonstrada pelas vanguardas artísticas contra a noção de obra de arte como forma, como produto do investimento do artista na construção de um objeto para ser arte, cuja dessacralização máxima ainda hoje parece ser o famoso urinol de Duchamp exposto no museu, apenas parece confirmar por oposição a supremacia que a noção de forma tem para nossa cultura artística.

No entanto, é cada vez mais comum encontrarmos referências críticas que mencionam as categorias “texto” ou “narrativa” para obras que parecem forçar demais as fronteiras do gênero romance, tal como acontece com as publicações que exploram a exposição da intimidade ficcionalizando-a, como as autoficções. Assim, acreditamos que é possível reunir indícios bem palpáveis de um gradual deslocamento da literatura. Talvez seja possível pensar que a literatura está se reinventando, sendo reformulada e que as obras produzidas hoje estejam recriando uma nova inventio.

Para dar apenas um exemplo, como classificar a hexalogia do escritor norueguês Karl Ove Knausgård, Minha luta? Em A morte do pai, o primeiro volume da série, a narrativa parece desdenhar da ficção para favorecer o relato minucioso sobre o abandono da escrita literária em prol do que parece a “vida real” do autor, seja por evocar a vida ordinária do narrador (um passeio com os filhos, a narração de uma noite de ano novo, ainda na adolescência), seja pela circunstanciação detalhada sobre a preparação do processo da escrita da narrativa, da própria carreira como escritor: “Não crio histórias, faço digressões”.

O fato é que a leitura do livro de Karl Ove impõe uma estranheza ao leitor que parece residir no relato memorialístico de si mesclado a uma reflexão sobre o processo de elaboração da própria obra que lemos, e que nos é entregue como romance: “Agora são oito e cinco da manhã. É dia 4 de março de 2008. Estou no escritório, cercado de livros do chão ao teto, ouvindo a banda sueca Dungen e refletindo sobre o que escrevi e aonde isso vai levar”. Quanto mais a escrita parece expor os momentos de preparação do romance, expondo a voz de um eu que faz de si próprio um arquivo, atuando na curadoria de si, mais controversa torna-se a identificação do que lemos como um romance.

Karl Ove faz-nos saber que não estava satisfeito com o que vinha escrevendo e tenta explicar sua guinada subjetiva a partir do comentário feito por seu editor quando apresenta a ele uma versão da tentativa de escrita do próximo livro: “Não vai dar, não é um romance. Você tem que contar uma história, Karl Ove!, repetiu ele várias vezes. Você tem que contar uma história! Eu sabia que ele tinha razão, e foi aí que comecei com isto, no meu primeiro dia de trabalho de 2004, sentado à minha escrivaninha, fitando a tela em branco, como se a história pudesse vir apenas da vida”.

Aqui, a dicção narrativa não apela à denegação (é a vida de Karl Ove que Karl Ove conta) e em nenhum momento parece colocar em xeque o tema da ilusão referencial. Nesse sentido as narrativas aproveitam para falsificar a moeda literária, enxertando gêneros não-ficcionais (o ensaio, o diário, a autobiografia) e formando no tecido narrativo pequenos grumos de autonomia: são verdadeiros ensaios, diários e autobiografias contaminados de ficção, de literatura.

Entre vida e literatura, entre notas de preparação de um romance ou anotações pessoais sobre a experiência da morte e a literatura, parece haver um interstício que redesenha a fronteira: dentro e fora da literatura, objeto notavelmente (não) literário.

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