Maurício Silva
Foto: Regina Dalcastagnè |
Dois grandes mitos impactam, desde o início, o debate sobre a sociedade moderna no Brasil e, no limite do que aqui nos propusemos discutir, sobre a literatura brasileira contemporânea: o mito da democracia racial, formulada a partir dos estudos socioantropológico de Gilberto Freyre acerca da constituição da sociedade brasileira colonial; e o mito da cordialidade, explicitado por Sérgio Buarque de Holanda, ao estudar as "raízes" de nossa formação histórica. Ao contrário do que esses dois mitos sugerem, a sociedade brasileira é, de modo geral, embora de forma nem sempre evidente, uma sociedade cronicamente racista e violenta, o que, em definitivo, colocar por terra ambas as representações simbólicas do Brasil como uma nação socialmente democrática e psicologicamente afetiva.
Considerando a literatura, grosso modo, uma expressão estética da sociedade na qual se insere, não causa espécie o fato de ela também se constituir – e, assim, poder ser estudada – a partir dessas duas tônicas recorrentes de nossa formação social: o racismo e a violência. Ambas se conjugam, a nosso ver, na constituição de uma grande parcela – que, se não for a maior, é seguramente a mais expressiva atualmente – da produção literária brasileira mais recente, resultando na conformação de dois grandes conjuntos de produção literária a que a crítica tem convencionado chamar de literatura negra ou afro-brasileira, para o primeiro grupo, e literatura marginal ou periférica, para o segundo.
Embora ambos os grupos possuam suas próprias características definidoras, bem como suas peculiaridades estéticas – afirmando-se, portanto, como "categorias" autossuficientes –, contribuem, em conjunto, para com a configuração da atual produção literária brasileira, unindo forças não apenas no sentido de se afirmarem como "tendências" literárias prevalentes no contexto socioliterário nacional, mas também no propósito de assinalarem um movimento de resistência e de reação diante do campo hegemônico da literatura canônica produzida/estudada nas e editada/veiculada pelas instâncias legitimadoras de nossa produção cultural. Permutando princípios estéticos e fundamentos socioculturais semelhantes e afins – numa aliança que confronta a "alta cultura" sustentada pelos intelectuais que constituem o establishment cultural brasileiro –, ambos os grupos concebem suas criações direta ou indiretamente norteados pelo universo simbólico-discursivo do racismo e da violência radicados em nossa sociedade, compartilhando experiências e motivações, expectativas e memórias as mais diversas.
Desse modo, tanto o racismo quanto a violência atuariam, na reflexão de nossa produção literária contemporânea, como espécies de matrizes conceituais por meio das quais se poderia pensar mais sistematicamente projetos literários individuais e coletivos, conferindo a esta mesma produção, se não uma marca recorrente a lhe definir o perfil, ao menos um tonos geral, capaz de lhe outorgar certa identidade estética. Assim sendo, consciente ou inconsciente presentes como princípio norteador de nossas relações sociais – o que, consequentemente, resulta em relações injustas e assimétricas –, o racismo e a violência não devem ser tomados apenas como "marcas estéticas" latentes ou patentes de nossa atual produção literária, mas como constituintes discursivos que, ora difusos, ora concentrados, ora explícitos, ora sub-reptícios, ora centrais, ora periféricos, insinuam-se, deliberadamente ou não, nos interstícios do tecido ficcional dessa literatura. Daí, inclusive, a necessidade, no contexto circunscrito, de se instituir novos protocolos analíticos e metodológicos de leitura e análise literárias.
A literatura, pelo menos após o advento da modernidade, quase sempre esteve vinculada a métodos e procedimentos hegemônicos, que se traduziam como fórmulas padronizadas, estruturas pré-determinadas e relações distintas, estas últimas no sentido bourdieusiano do termo. Grosso modo, a literatura se apresentava – e, principalmente, se representava – a partir de um duplo locus de enunciação, fundamental para sua constituição enquanto expressão artística: o mundo acadêmico, que pode ser associado à escola e universidades, às academias e instituições culturais, às bibliotecas, editoras e livrarias em geral, onde era vista como resultado de uma atitude laborativa (pesquisa, produção científica, leitura individualizada, congressos e eventos similares etc.); e o espaço social, representado pelos salões literários, pelos periódicos mundanos (lembremos do papel desempenhado pelos folhetins para a constituição de uma legibilidade burguesa), pelos meios de comunicação de massa e ocasionalmente por algumas academias, entre outros, onde, de modo geral, se cultivava, mais do que a literatura propriamente dita, a vida literária, num sentido lato – nesses espaços, finalmente, a literatura era vista, antes, como produto de uma atitude colaborativa (encontros sociais, reuniões literárias, leitura comunitária, adaptações populares etc.).
De qualquer maneira, seja no âmbito do academicismo, seja no âmbito da sociabilidade, a literatura tem sido, historicamente, representação imaginária (no sentido de pode ser definida como um constructo ficcional) de instâncias sociais, políticas e culturais hegemônicas, cujos limites e fronteiras sempre estiveram mais ou menos bem definidos, em razão do estabelecimento de normas e regras tanto intrínsecas (estrutura ficcional, gramática normativa, estilos formais, grafocentrismo etc.) quanto extrínsecas (suportes de veiculação, formas de divulgação, modelos de representação etc.) à própria literatura.
Contemporaneamente, tais limites e fronteiras – vale dizer, normas e regras pré-determinada, métodos e procedimentos canônicos, fórmulas e estruturas padronizadas, relações distintas e instâncias legitimadoras – têm sido sistematicamente questionados, num agenciamento que, na prática, se exprime como um contumaz processo de ruptura, inversão, apagamento, rasura, desconstrução e quebra de uma ordem discursiva estabelecida – a ordem da literatura, num sentido similar àquele que Foucault confere ao que chama de "ordem do discurso".
Em suma, está-se a se referir a uma outra atitude perante o que apenas por conveniência ainda pode ser denominado literatura, no sentido estrito do termo (que não deixa também de ser restrito): trata-se, portanto, de uma outra literatura. E essa outra literatura – que é, aliás, o que de melhor se verifica hoje em dia, em termos de produção estética – apresenta, em sua constituição geral, três níveis distintos: o nível linguístico, em que se privilegia a oralidade e os gestos discursivos, a gramática não padrão e a livre expressividade estilística, o "empoderamento" da palavra e os códigos desviantes, tudo resumido no que podemos chamar de uma semântica do dissenso; o nível ideológico, que se expressa como assunção do conflito declarado, como adoção do ato combativo, como perspectiva crítica, como opção pelas minorias etc., tudo agora resumido numa espécie singular de estética do enfrentamento; o nível social, representado por outras formas de divulgação (edições artesanais, antologias pluriautorais etc.), modos de produção (trabalho coletivo, dando origem a uma nova categoria de associativismo cultural, os "coletivos de"), espaços de criação (espaços alternativos e não formais, como bares, praças e ruas, constituindo uma nova cartografia literária, cuja gênese é, via de regra, periférica), formas de expressão (saraus, slams etc.), tudo isso resumido, por fim, num conjunto de microssistemas divergentes.
Esses três níveis – associados aqui ao que chamamos de semântica do dissenso, estética do enfrentamento e microssistemas divergentes – exprimem, de modo cabal e definitivo, não apenas um produto, mas também uma prática que nascem de uma concepção absolutamente contra-hegemônica de literatura, construída a partir de uma ruptura do locus de enunciação oficializado por uma visão concêntrica da literatura, incondicionalmente substituída, neste novo contexto, por uma perspectiva excêntrica dela. Além disso, tais níveis de constituição dessa nova literatura assinalam um vasto e profundo tensionamento do universo literário, marcado por uma dialética que, definitivamente, não se resolve como synthesis (conjunção), mas, ao contrário, como analysis (dispersão).
*Este texto é o esboço de um artigo que está sendo escrito sobre a literatura marginal/periférica no Brasil contemporâneo.
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