18 de julho de 2015

A construção do feminino no romance brasileiro contemporâneo

Regina Dalcastagnè

Imagem: Barbara Kruger

O corpo feminino é um território em permanente disputa. Sobre ele se inscrevem múltiplos discursos – vindos dos universos médico, legal, psicológico, biológico, artístico etc. – que não apenas dizem desse corpo, mas que também o constituem, uma vez que normatizam padrões, sexualidade, reprodução, higiene. A questão é que esses lugares legítimos de enunciação ainda são ocupados predominantemente por homens, instalados, é claro, em sua própria perspectiva social. A dificuldade surge porque, mesmo que sejam sensíveis aos problemas femininos e solidários (e nem sempre o são), os homens nunca viverão as mesmas experiências de vida e, portanto, verão o mundo social a partir de uma perspectiva diferente. E, como “o olhar não dobra a esquina”, alguma coisa sempre se perde.

Isso não é diferente na literatura. Entre todos os 555 romances publicados pelas principais editoras brasileiras (Companhia das Letras, Record, Rocco e Objetiva/Alfaguara) no período de 1990 a 2014, as autoras não chegam a 30% do total de escritores publicados. O que se reflete também na sub-representação das mulheres como personagens em nossa ficção – as mesmas pesquisas mostram que menos de 40% das personagens são do sexo feminino. Além de serem minoritárias nos romances, as mulheres também têm menos acesso à “voz”, isto é, à posição de narradoras, e estão menos presentes como protagonistas das histórias.

É possível especular que a maior familiaridade com uma perspectiva social determinada leva as mulheres a criarem mais personagens femininas e os homens, mais personagens masculinas – e o mesmo valeria para protagonistas e narradores. Resta explicar por que a discrepância é tão maior no caso dos escritores homens, que contam com menos de um terço de personagens femininas, enquanto as mulheres criam quase a metade de suas personagens no sexo masculino. A resposta talvez esteja na própria predominância masculina na literatura (e em outras formas de expressão), que proporciona às mulheres um contato maior com as perspectivas sociais masculinas. Outra hipótese é que, diante dos avanços promovidos pelo feminismo, os homens se sintam cada vez mais deslegitimados para construir a perspectiva feminina. Por fim, como lembrou a escritora Maria José Silveira, as escritoras também podem ser levadas a incluir mais personagens masculinas em suas obras para fugir da depreciativa qualificação de “romance feminino”, risco que os homens não correm.

Quando nos aprofundamos no modo como as personagens femininas são representadas, notamos disparidades ainda mais significativas, especialmente nas questões relacionadas ao corpo. Mas a principal diferença é que as autoras constroem uma representação feminina mais plural e mais detalhada, incluem temáticas da agenda feminista que passam despercebidas pelos autores homens e problematizam questões que costumam estar mais marcadas por estereótipos de gênero. Levantamentos pormenorizados mostram que as personagens femininas são mais saudáveis, mais escolarizadas, exercem profissões mais variadas, dependem menos dos homens quando são escritas por mulheres. Também são apresentadas em diferentes estágios da vida – são meninas, jovens, maduras e velhas, enquanto os homens se detêm mais na representação de mulheres jovens. Além disso, seus próprios corpos são construídos com mais detalhes e maior variedade quando feitos por mulheres.

Da mesma forma, as autoras descrevem mais cenas sexuais e com maior detalhamento – talvez a necessidade de marcar um espaço de liberdade de expressão, talvez uma tentativa de, finalmente, mostrar o sexo pela perspectiva feminina. Suas protagonistas não só fazem sexo com mais frequência como possuem um número maior de parceiros do que aquelas escritas pelos homens (embora a homossexualidade praticamente não apareça como opção). Também fazem mais sexo com amantes, traem mais e são mais traídas. O dado curioso é que, apesar da frequência e da variedade, as personagens das mulheres se sentem bem menos satisfeitas, em relação ao sexo e à própria sexualidade, do que as dos homens.

Também há muita discrepância na representação construída por homens e mulheres quando o assunto é maternidade. Elas têm mais filhos, se sentem mais felizes e realizadas em seu papel quando são escritas pelos homens. Quando escritas por mulheres, a gama de sentimentos em relação aos filhos é muito mais ampla, incluindo responsabilidade, cansaço, fracasso e culpa. E os pais, nessas narrativas, costumam ser uma grande ausência. Mas é outro tipo de ausência que chama atenção nos romances contemporâneos: aborto, problemas com fertilidade e violência doméstica são temas em grande medida silenciados, inclusive pelas autoras. Parece ser mais fácil atacar os tabus relacionados à sexualidade feminina, o que já é feito, de algum modo, na mídia em geral, do que representar, por exemplo, o sentimento de perda causado por um aborto involuntário ou mesmo voluntário, bem como os riscos e o estigma que pesa sobre aquelas que passaram pela experiência, comum entre tantas mulheres.

Por fim, é preciso dizer que esses dados se referem às personagens femininas brancas, cor que corresponde a quase 80% do total das personagens (masculinas e femininas) dos romances analisados e a mais de 90% dos/as escritores/as publicados/as pelas grandes editoras nacionais. Quando as personagens são negras, ou mestiças, as marcas de distinção são bastante reforçadas, mesmo entre as escritoras. Suas mulheres, nesse caso, perdem variedade e complexidade, tornando-se muito parecidas com aquelas construídas pelos homens – ou seja, são mais jovens, mais sexualizadas, mais dependentes e mais satisfeitas com os filhos, com os homens e com a situação em geral.

Se é legítimo entender que as mulheres formam um grupo social específico, na medida em que a diferença de gênero estrutura experiências, expectativas, constrangimentos e trajetórias sociais, por outro lado a vivência feminina não é una. Variáveis como raça, classe ou orientação sexual, entre outras, contribuem para gerar diferenciações importantes nas posições sociais das próprias mulheres – e elas, ao buscarem fazer suas próprias escolhas, ao aderirem a conjuntos de crenças e valores diversos, vão também perceber-se no mundo de maneiras diferenciadas. Os problemas e desafios que enfrentam são em parte comuns ao “ser mulher”, em parte específicos, em parte, até mesmo, opostos entre si. A riqueza desta condição feminina plural se estabelece exatamente na tensão entre unidade e diferença – o que pode gerar as contradições na representação feminina das personagens não-brancas, por exemplo. A questão que se coloca aqui diz respeito a quanto desta riqueza está presente na narrativa brasileira contemporânea.
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Para uma análise mais completa dos dados, ver o artigo “Representações restritas: a mulher no romance brasileiro contemporâneo”, no livro Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea, organizado por Regina Dalcastagnè e Virgínia Maria Vasconcelos Leal. Vinhedo: Horizonte, 2010.

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