11 de julho de 2015

O que pode a criança?: nostalgia, criatividade e o mal na representação literária da infância

Anderson Luís Nunes da Mata


Foto: Harry Gruyaert

A infância é a alteridade mais íntima que podemos experimentar. A criança, quando vista no panorama da própria biografia do adulto, é o outro que fomos e que, ao mesmo tempo, nos compõe. “O menino é o pai do homem”, diz o narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas, logo, é preciso atentar para o que a memória é capaz de revelar acerca dessa meninice, a fim de se construir uma biografia coerente, em que a nostalgia seja a moldura para a exaltação de valores, ainda que decorrentes de traumas. Porém, quando a criança é, de fato, um outro, a nostalgia dá lugar ao estranhamento – e a infância do outro torna-se algo mais próximo de uma ameaça que de um tempo imaginado (e, frequentemente, conformista), em que se atam, pela narrativa, as pontas do presente e do passado.
                Desse modo, cercada pelos discursos da filosofia, das ciências, do direito, das artes, entre outras práticas e campos do conhecimento, a infância atrai atenção, porém nem sempre a voz da criança é ouvida. Etimologicamente, o termo “infância”, de origem latina, remete à incapacidade de falar. O que surpreende é que essa ideia de que a criança não tenha o que dizer persista no imaginário contemporâneo. No Brasil, uma das raras exceções é o trabalho de Walter Omar Kohan, professor da UERJ, que, acompanhando os questionamentos do filósofo norte-americano Gareth Matthews, tem investigado o pensamento infantil a partir de suas pesquisas sobre educação filosófica.
                No campo literário, não existe uma pauta de discussão sobre a possibilidade de as crianças serem autoras, embora se reconheça a potencialidade da imaginação infantil para o fazer poético, desde que seja como uma recriação de sua perspectiva, geralmente idealizada. Não é por acaso que Manoel de Barros, um dos poetas brasileiros mais populares das últimas décadas, tenha forçado os limites da linguagem poética e também da língua portuguesa por meio da recriação de uma voz lírica infantil, emoldurada pela nostalgia da inocência e da criatividade.
Na narrativa, no entanto, a representação da infância não é extensa. É possível supor que na lírica sua presença também seja escassa, embora não tenhamos os dados concretos para afirmá-lo. Os resultados preliminares de pesquisa sobre o romance contemporâneo, coordenada por Regina Dalcastagnè no Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, da Universidade de Brasília, constata que não são muitos os personagens infantis nesse universo. A partir de recenseamento das personagens dos romances brasileiros publicados pelas editoras Companhia das Letras, Alfaguara/Objetiva e Record, entre 2005 e 2014, verificou-se que as crianças, nesses romances, somam 8,1% do total de personagens; já as crianças narradoras são apenas 0,2% do total (19 personagens em um universo de 1557 listadas). O número é ainda mais reduzido se levarmos em consideração que grande parte desses narradores, 15 para ser mais preciso, se tornam adolescentes ou adultos ao longo da narrativa, tendo a infância apenas como ponto de partida para uma personagem cuja subjetividade está ancorada em outro espaço identitário. Apenas dois narradores, em O verão de Chibo (2008), de Vanessa Bárbara e Emílio Fraia, e em Vista parcial da noite (2006), de Luiz Ruffato, são crianças ao longo da maior parte da narrativa. No livro de Ruffato, no entanto, a personagem infantil não é a única narradora do romance.
Diante da constatação de que há poucas personagens infantis nos romances brasileiros contemporâneos, costuma-se questionar por que essa escassez constitui um problema no cenário da representação da infância na literatura atual. As respostas dependem do modo como se olha para o problema. Uma leitura que analise essas obras isoladamente, pode não levar em consideração o problema da representatividade da infância no conjunto dos textos, ainda que reflitam sobre a perspectiva social da infância e sobre a poética que essa perspectiva é capaz de elaborar. No entanto, ao olhar essas obras de longe, pensando no modo como elas se articulam entre si e com o campo literário, a escassez de representações significa um conjunto pouco diverso de perspectivas sociais. Se levarmos em consideração que essas obras talvez não tenham fôlego para repercutir entre crítica e público, pode-se supor que pouquíssimas dessas personagens ajudarão a compor o repertório de representações da infância do nosso tempo. A depender do modo de se ler essas poucas obras, elas terão, ainda, a reponsabilidade de dizer algo sobre a criança e a infância não só para o interior das suas páginas, mas para o campo literário como um todo.
Nos romances em que a biografia de uma personagem começa a ser narrada a partir da infância, há um modo de representá-la que não se esforça por elaborar uma zona de aproximação entre o autor adulto e o narrador infantil. O verão de Chibo, em que o narrador é um menino à espera do retorno do irmão, bem como Micróbios na cruz (2005), de Márcia Camargos, com uma narradora que atravessa a infância e a adolescência, são duas exceções a esse modo de representar a infância como uma etapa a ser cumprida, pois reelaboram a linguagem de modo a propor uma perspectiva do ser criança a partir do presente, descrevendo e narrando o mundo a partir dessa experiência. O “pasmo essencial” da criança, de que fala Alberto Caeiro, é recuperado por Camargos e Bárbara & Fraia nessas narrativas, que tentam propor uma dicção infantil marcada sobretudo pela perspectiva de um olhar imaginativo, que ressignifica as experiências, as pessoas e até mesmo os objetos do cotidiano da criança, de acordo com suas expectativas e vivências. É assim que Formiga, a narradora de Micróbios na cruz, repensa a cena da crucificação de Cristo, a partir da preocupação com a contaminação que as feridas expostas poderiam sofrer. É também desse modo que o narrador de O verão de Chibo fala do espaço em que se encontra a partir de uma perspectiva afetada pelo seu corpo, em que, por exemplo, milharais se agigantam devido à estatura do menino que os observa.
Em outro modo de registrar a infância, com assombro e, até mesmo, medo, a literatura brasileira não investe em narrativas sobrenaturais em que a alteridade infantil seja também sombria, como na literatura e no cinema de terror norte-americanos. Porém, a narrativização da violência urbana é o meio encontrado para a representação da criança monstruosa e do horror à brasileira. É daí que surge uma das personagens mais marcantes da ficção brasileira recente, tanto na literatura quanto no cinema: Zé Pequeno, de Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins. O romance, adaptado para o cinema por Fernando Meireles em 2002, traz essa criança, cuja monstruosidade está situada na satisfação que a violência lhe provoca. Mesmo que haja uma tentativa de expor a biografia conturbada da personagem, abandonada pelos pais, pelo Estado e pela própria comunidade, a escolha por introduzi-la na narrativa por meio de uma carnificina que ele comanda em um assalto a um motel é um modo de apresentar a criança como essa alteridade, cuja diferença, por ser incompreensível, deve ser temida e não acolhida. Existe ainda o contraponto com Buscapé, mas há algo de mais atraente no modo como Zé Pequeno pratica suas maldades. Embora o sadismo da personagem esteja próxima do absurdo, como a recepção do romance pautou-se pela valorização do seu realismo, a personagem é lida sob a clave, por vezes simplista, de que sua existência está ancorada não só na possibilidade de ele ser real, isto é sua verossimilhança, mas, o que é mais perigoso, na sugestão de que ele representa um tipo das periferias dos centros urbanos brasileiros. Na cena do assalto, fica evidente a opção da personagem pela violência excessiva, tendo em vista que o objetivo do crime – o roubo – já fora alcançado antes do início da matança. O sadismo, como o propulsor sombrio da perversidade infantil, acaba se tornando o elemento que, na narrativa, mantém grande parte da tensão na relação de Zé Pequeno, mesmo quando adulto, com os demais personagens: ele é, afinal, capaz de tudo.
“Ser capaz de tudo”, um dos atributos mais valorizados na representação da infância, ganha, então, um caráter ambivalente, pois, se anuncia a potencialidade do ser infantil na sua acepção romântica idealizada, como indiquei no livro O silêncio das crianças (2010), também assume o papel de anunciar que a infância, irresponsável e imprevisível, pode guardar sob si o mal. No caso do exemplo de Cidade de Deus, porém, esse sinal negativo sobre a potencialidade da criança não pesa sobre outro menino senão o pobre e negro, cuja meninice é posta em xeque porque sua agência violenta e cruel o desloca do lugar de silenciamento que costuma ser reservado às crianças. Longe de acusar Paulo Lins de preconceito, é interessante notar que em um universo de representações tão limitadas, um dos tropos que acompanham a representação da infância, o de guardião do mal, esteja, em nossa literatura contemporânea, traduzido na violência urbana e no medo do “menor delinquente”. Se são poucas as crianças nos textos, e menos ainda as negras e pobres, uma personagem como Zé Pequeno, pela dimensão que atinge na narrativa, carrega consigo aquilo que Ella Shohat e Robert Stam chamam de “fardo da representação”. Isso significa que em um universo limitado de representações de determinados grupos sociais, as personagens que forem identificadas com esses grupos terminarão por ocupar sozinhas o repertório de imagens disponíveis sobre aqueles grupos, representando, assim, um universo muito mais amplo do que a sua singularidade poderia pressupor, caso houvesse uma maior diversidade de imagens disponíveis.
Portanto, a representação da infância na literatura brasileira contemporânea encontra-se entre (i) uma poética que recupera o lirismo nostálgico do adulto que relembra a infância, (ii) uma recriação da perspectiva infantil que investe na potência da criatividade do seu olhar e (iii) uma figuração do horror como a possibilidade de exercício do mal contida na potência que caracteriza a infância. Esse pode parecer um conjunto diversificado de possibilidades de representações, mas a escassez de personagens infantis faz com que apenas alguns imprimam sua marca na história da literatura brasileira recente. Desse modo, autores como Manoel de Barros, Márcia Camargos e Vanessa Bárbara e Emílio Fraia, além de outros, como Conceição Evaristo, em Becos da memória (2006), Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor (2006) e João Anzanello Carascoza, em Aos 7 e aos 40 (2013), investem em representações da infância que traduzem uma diversidade de espaços – mais ou menos violentos, mais ou menos confortáveis, mais ou menos idealizados – em que personagens infantis circulam, assumem o turno de fala e recriam os mundos que habitam. Por outro lado, um texto como Cidade de Deus, de modo quase isolado, ocupa um espaço nos meios de comunicação de massa e na crítica especializada muito maior do que os demais, talvez, justamente, por destacar uma personagem como Zé Pequeno, que pode justificar, na literatura e fora dela, a dificuldade de acolhimento das crianças pobres, negras, sem acesso à educação formal, moradoras da periferia, enfim, aquelas que preenchem perfil do temido “menor infrator”, situado em um lugar a quem é negado do direito de ser apenas um menino. É uma equação que coloca a infância em um lugar impossível, pois, por outro lado, ser apenas um menino poderia significar ser desempoderado no silêncio ao qual a criança está circunscrita na sua condição de infante.
Afinal, o que pode a criança? Esse é um questionamento que atinge o cerne da balança de poder entre as diferentes imagens das crianças na literatura, bem como entre os sujeitos ficcionais infantis e adultos. É, afinal, uma das questões-chave para se pensar a representação da criança e da infância na literatura, de modo que se possa afirmar o que a criança pode, e, ao mesmo tempo, compreender o que tememos quando determinamos o que a criança não pode.

 A revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea acaba de publicar um dossiê sobre “literatura e infância”. Confira aqui.

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