Anderson Luís Nunes da Mata
Foto: Harry Gruyaert
|
A infância é a alteridade mais íntima que podemos
experimentar. A criança, quando vista no panorama da própria biografia do
adulto, é o outro que fomos e que, ao mesmo tempo, nos compõe. “O menino é o
pai do homem”, diz o narrador de Memórias
póstumas de Brás Cubas, logo, é preciso atentar para o que a memória é
capaz de revelar acerca dessa meninice, a fim de se construir uma biografia
coerente, em que a nostalgia seja a moldura para a exaltação de valores, ainda
que decorrentes de traumas. Porém, quando a criança é, de fato, um outro, a
nostalgia dá lugar ao estranhamento – e a infância do outro torna-se algo mais
próximo de uma ameaça que de um tempo imaginado (e, frequentemente,
conformista), em que se atam, pela narrativa, as pontas do presente e do
passado.
Desse modo, cercada pelos
discursos da filosofia, das ciências, do direito, das artes, entre outras
práticas e campos do conhecimento, a infância atrai atenção, porém nem sempre a
voz da criança é ouvida. Etimologicamente, o termo “infância”, de origem
latina, remete à incapacidade de falar. O que surpreende é que essa ideia de
que a criança não tenha o que dizer persista no imaginário contemporâneo. No
Brasil, uma das raras exceções é o trabalho de Walter Omar Kohan, professor da
UERJ, que, acompanhando os questionamentos do filósofo norte-americano Gareth
Matthews, tem investigado o pensamento infantil a partir de suas pesquisas
sobre educação filosófica.
No campo literário, não existe
uma pauta de discussão sobre a possibilidade de as crianças serem autoras,
embora se reconheça a potencialidade da imaginação infantil para o fazer
poético, desde que seja como uma recriação de sua perspectiva, geralmente
idealizada. Não é por acaso que Manoel de Barros, um dos poetas brasileiros
mais populares das últimas décadas, tenha forçado os limites da linguagem
poética e também da língua portuguesa por meio da recriação de uma voz lírica
infantil, emoldurada pela nostalgia da inocência e da criatividade.
Na narrativa, no entanto, a representação da infância não é
extensa. É possível supor que na lírica sua presença também seja escassa,
embora não tenhamos os dados concretos para afirmá-lo. Os resultados
preliminares de pesquisa sobre o romance contemporâneo, coordenada por Regina
Dalcastagnè no Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, da
Universidade de Brasília, constata que não são muitos os personagens infantis nesse
universo. A partir de recenseamento das personagens dos romances brasileiros
publicados pelas editoras Companhia das Letras, Alfaguara/Objetiva e Record,
entre 2005 e 2014, verificou-se que as crianças, nesses romances, somam 8,1% do
total de personagens; já as crianças narradoras são apenas 0,2% do total (19
personagens em um universo de 1557 listadas). O número é ainda mais reduzido se
levarmos em consideração que grande parte desses narradores, 15 para ser mais
preciso, se tornam adolescentes ou adultos ao longo da narrativa, tendo a
infância apenas como ponto de partida para uma personagem cuja subjetividade
está ancorada em outro espaço identitário. Apenas dois narradores, em O verão de Chibo (2008), de Vanessa
Bárbara e Emílio Fraia, e em Vista
parcial da noite (2006), de Luiz
Ruffato, são crianças ao longo da maior parte da narrativa. No livro de
Ruffato, no entanto, a personagem infantil não é a única narradora do romance.
Diante da constatação de que há poucas personagens infantis
nos romances brasileiros contemporâneos, costuma-se questionar por que essa
escassez constitui um problema no cenário da representação da infância na
literatura atual. As respostas dependem do modo como se olha para o problema. Uma
leitura que analise essas obras isoladamente, pode não levar em consideração o
problema da representatividade da infância no conjunto dos textos, ainda que
reflitam sobre a perspectiva social da infância e sobre a poética que essa
perspectiva é capaz de elaborar. No entanto, ao olhar essas obras de longe,
pensando no modo como elas se articulam entre si e com o campo literário, a
escassez de representações significa um conjunto pouco diverso de perspectivas
sociais. Se levarmos em consideração que essas obras talvez não tenham fôlego
para repercutir entre crítica e público, pode-se supor que pouquíssimas dessas
personagens ajudarão a compor o repertório de representações da infância do
nosso tempo. A depender do modo de se ler essas poucas obras, elas terão,
ainda, a reponsabilidade de dizer algo sobre a criança e a infância não só para
o interior das suas páginas, mas para o campo literário como um todo.
Nos romances em que a biografia de uma personagem começa a
ser narrada a partir da infância, há um modo de representá-la que não se
esforça por elaborar uma zona de aproximação entre o autor adulto e o narrador
infantil. O verão de Chibo, em que o
narrador é um menino à espera do retorno do irmão, bem como Micróbios na cruz (2005), de Márcia
Camargos, com uma narradora que atravessa a infância e a adolescência, são duas
exceções a esse modo de representar a infância como uma etapa a ser cumprida,
pois reelaboram a linguagem de modo a propor uma perspectiva do ser criança a partir do presente,
descrevendo e narrando o mundo a partir dessa experiência. O “pasmo essencial”
da criança, de que fala Alberto Caeiro, é recuperado por Camargos e Bárbara
& Fraia nessas narrativas, que tentam propor uma dicção infantil marcada
sobretudo pela perspectiva de um olhar imaginativo, que ressignifica as
experiências, as pessoas e até mesmo os objetos do cotidiano da criança, de
acordo com suas expectativas e vivências. É assim que Formiga, a narradora de Micróbios na cruz, repensa a cena da
crucificação de Cristo, a partir da preocupação com a contaminação que as
feridas expostas poderiam sofrer. É também desse modo que o narrador de O verão de Chibo fala do espaço em que
se encontra a partir de uma perspectiva afetada pelo seu corpo, em que, por
exemplo, milharais se agigantam devido à estatura do menino que os observa.
Em outro modo de registrar a infância, com assombro e, até
mesmo, medo, a literatura brasileira não investe em narrativas sobrenaturais em
que a alteridade infantil seja também sombria, como na literatura e no cinema
de terror norte-americanos. Porém, a narrativização da violência urbana é o
meio encontrado para a representação da criança monstruosa e do horror à
brasileira. É daí que surge uma das personagens mais
marcantes da ficção brasileira recente, tanto na literatura quanto no cinema:
Zé Pequeno, de Cidade de Deus (1997),
de Paulo Lins. O romance, adaptado para o cinema por Fernando Meireles em 2002,
traz essa criança, cuja monstruosidade está situada na satisfação que a
violência lhe provoca. Mesmo que haja uma tentativa de expor a biografia
conturbada da personagem, abandonada pelos pais, pelo Estado e pela própria
comunidade, a escolha por introduzi-la na narrativa por meio de uma carnificina
que ele comanda em um assalto a um motel é um modo de apresentar a criança como
essa alteridade, cuja diferença, por ser incompreensível, deve ser temida e não
acolhida. Existe ainda o contraponto com Buscapé, mas há algo de mais atraente
no modo como Zé Pequeno pratica suas maldades. Embora o sadismo da personagem
esteja próxima do absurdo, como a recepção do romance pautou-se pela
valorização do seu realismo, a personagem é lida sob a clave, por vezes
simplista, de que sua existência está ancorada não só na possibilidade de ele
ser real, isto é sua verossimilhança, mas, o que é mais perigoso, na sugestão
de que ele representa um tipo das periferias dos centros urbanos brasileiros.
Na cena do assalto, fica evidente a opção da personagem pela violência
excessiva, tendo em vista que o objetivo do crime – o roubo – já fora alcançado
antes do início da matança. O sadismo, como o propulsor sombrio da perversidade
infantil, acaba se tornando o elemento que, na narrativa, mantém grande parte
da tensão na relação de Zé Pequeno, mesmo quando adulto, com os demais
personagens: ele é, afinal, capaz de tudo.
“Ser capaz de tudo”, um dos atributos mais valorizados na
representação da infância, ganha, então, um caráter ambivalente, pois, se
anuncia a potencialidade do ser infantil na sua acepção romântica idealizada,
como indiquei no livro O silêncio das
crianças (2010), também assume o papel de anunciar que a infância,
irresponsável e imprevisível, pode guardar sob si o mal. No caso do exemplo de Cidade de Deus, porém, esse sinal
negativo sobre a potencialidade da criança não pesa sobre outro menino senão o
pobre e negro, cuja meninice é posta em xeque porque sua agência violenta e
cruel o desloca do lugar de silenciamento que costuma ser reservado às crianças.
Longe de acusar Paulo Lins de preconceito, é interessante notar que em um
universo de representações tão limitadas, um dos tropos que acompanham a
representação da infância, o de guardião do mal, esteja, em nossa literatura
contemporânea, traduzido na violência urbana e no medo do “menor delinquente”.
Se são poucas as crianças nos textos, e menos ainda as negras e pobres, uma personagem
como Zé Pequeno, pela dimensão que atinge na narrativa, carrega consigo aquilo
que Ella Shohat e Robert Stam chamam de “fardo da representação”. Isso
significa que em um universo limitado de representações de determinados grupos
sociais, as personagens que forem identificadas com esses grupos terminarão por
ocupar sozinhas o repertório de imagens disponíveis sobre aqueles grupos,
representando, assim, um universo muito mais amplo do que a sua singularidade
poderia pressupor, caso houvesse uma maior diversidade de imagens disponíveis.
Portanto, a representação da infância na literatura
brasileira contemporânea encontra-se entre (i) uma poética que recupera o
lirismo nostálgico do adulto que relembra a infância, (ii) uma recriação da
perspectiva infantil que investe na potência da criatividade do seu olhar e (iii)
uma figuração do horror como a possibilidade de exercício do mal contida na
potência que caracteriza a infância. Esse pode parecer um conjunto diversificado
de possibilidades de representações, mas a escassez de personagens infantis faz
com que apenas alguns imprimam sua marca na história da literatura brasileira
recente. Desse modo, autores como Manoel de Barros, Márcia Camargos e Vanessa
Bárbara e Emílio Fraia, além de outros, como Conceição Evaristo, em Becos da memória (2006), Ana Maria
Gonçalves, em Um defeito de cor (2006)
e João Anzanello Carascoza, em Aos 7 e
aos 40 (2013), investem em representações da infância que traduzem uma
diversidade de espaços – mais ou menos violentos, mais ou menos confortáveis,
mais ou menos idealizados – em que personagens infantis circulam, assumem o
turno de fala e recriam os mundos que habitam. Por outro lado, um texto como Cidade de Deus, de modo quase isolado,
ocupa um espaço nos meios de comunicação de massa e na crítica especializada
muito maior do que os demais, talvez, justamente, por destacar uma personagem
como Zé Pequeno, que pode justificar, na literatura e fora dela, a dificuldade
de acolhimento das crianças pobres, negras, sem acesso à educação formal,
moradoras da periferia, enfim, aquelas que preenchem perfil do temido “menor
infrator”, situado em um lugar a quem é negado do direito de ser apenas um
menino. É uma equação que coloca a infância em um lugar impossível, pois, por
outro lado, ser apenas um menino
poderia significar ser desempoderado no silêncio ao qual a criança está
circunscrita na sua condição de infante.
Afinal, o que pode a
criança? Esse é um questionamento que atinge o cerne da balança de poder
entre as diferentes imagens das crianças na literatura, bem como entre os
sujeitos ficcionais infantis e adultos. É, afinal, uma das questões-chave para
se pensar a representação da criança e da infância na literatura, de modo que
se possa afirmar o que a criança pode, e, ao mesmo tempo,
compreender o que tememos quando determinamos o que a criança não pode.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.