Paulo César Thomaz
Foto de Don Bartletti
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Nas últimas décadas constatamos a intensificação da
circulação – material e imaterial – de bens e pessoas, primeiramente no âmbito
de fronteiras circunscritas a determinada nacionalidade, para logo observá-la
em geografias estrangeiras. Ainda que atinja as regiões do mundo de forma desigual,
uma das preocupações mais relevantes dos estudiosos tem sido justamente dar
conta da complexidade e da especificidade desse fenômeno na contemporaneidade.
Nesse sentido, por exemplo, a ampla e interdisciplinar pesquisa do geógrafo
brasileiro Rogério Haesbaert, reunida no livro O mito da desterritorialização, contribui com o debate ao colocar
em cheque o discurso da desterritorialização por meio do aprofundamento da
discussão sobre o conceito de multiterritorialidade.
Constituído como um “mito” para o autor, o conceito de
desterritorialização estaria impossibilitado de distinguir o aspecto imanente
da multiterritorialização na vida dos indivíduos e dos diferentes grupos
sociais na contemporaneidade. Mais do que a desterritorialização
desenraizadora, e os pressupostos ideológicos e políticos de cunho eurocêntrico
que em muitos casos a sustentam, teríamos, em seu lugar, um permanente processo
de reterritorialização, espacialmente descontínuo, sumamente complexo e
frequentemente desigual.
Para Haesbaert, um dos aspectos regressivos de pensar
em procedimentos de desterritorialização seria a demasiada simplicidade do
conceito e a perspectiva política imobilizante que poderia esconder. Segundo o
autor, em um mundo globalmente móvel, inestável, caracterizado pela
imprevisibilidade e fluidez das redes e pela virtualidade do ciberespaço,
estaríamos sujeitos aos caprichos dos grupos que verdadeiramente dominam estes
fluxos, redes e imagens. Outro componente negativo consistiria em que, ao
nutrir conceitualmente aqueles que defendem o fim de todo tipo de obstáculo
espacial, o discurso da desterritorialização legitimaria de algum modo a cessão
do poder às forças do mercado, ao permitir a fluidez global dos circuitos do
capital, sobretudo do capital financeiro, num mundo em que o propósito a ser
alcançado passa a ser o desaparecimento do Estado.
Diante desse cenário, seria fácil demonstrar como a
literatura latino-americana, e mais especificadamente a brasileira e a
argentina, não está alheia ao debate sobre esses intercâmbios. Um dos elementos
medulares das narrativas desses países, de expressivo valor simbólico no
imaginário cultural presente, trata-se precisamente da figuração desses
trânsitos físicos e culturais por territórios continentais e intercontinentais,
sobretudo americanos e europeus. Alguns escritores, inclusive, vivenciaram ou
vivenciam essa experiência multiterritorial e a incorporam, de diferentes
modos, a seus projetos estéticos.
Concomitantemente, outro aspecto que sobressai no que
podemos chamar de “tarefa literária” de parte da produção narrativa
latino-americana mais recente tem consistido na configuração de universos
ficcionais em que uma série de formulações, declaradamente de ordem política e
econômica, ganha relevo. Ao incorporar às suas narrativas – implícita e
explicitamente – enunciados teórico-conceituais derivados de diferentes áreas
do conhecimento (sociologia, filosofia e economia), que denunciam sobretudo o
caráter dissociativo e desintegrador da sociedade atual, diferentes escritores
tensionam a interpretação do presente e fazem que suas poéticas, em nosso
entender, atuem também como um saber aproximativo sobre a contemporaneidade,
entendido, nos termos do escritor argentino Sergio Chejfec, “não como um
discurso que arbitre ou faça uma espécie de mediação entre a realidade e sua
suposta importância, mas entre as versões culturais que se disputam o
significado do presente”.
Não foram poucos os danos políticos, econômicos,
éticos e culturais causados pelo exercício do poder autoritário na vida cotidiana
da América Latina entre as décadas de 1960 e 1980. Renovadas pelas lógicas
neoliberais das últimas décadas, estas implicações nefastas parecem ainda de
algum modo orientar o eixo narrativo de textos ficcionais recentes. Assim, não
podemos esquecer que a hegemonia das correntes
neoliberais na América Latina das últimas décadas, em suas mais diversas
materializações e matizações, forçou os Estados nacionais do continente a
implantar um programa de desmanche e aniquilamento das estruturas coletivas que,
quem sabe, teriam permitido uma maior democratização e republicanização dessas
sociedades.
O predomínio de um mercado comandado pela
racionalidade técnica, que opera zeloso dos interesses do capital financeiro e
com o propósito de alcançar proveitos e lucros em um curto espaço de tempo, tem
negado, sem dúvida, o fortalecimento dos espaços públicos e a transparência nas
disposições econômicas e políticas fundamentais. Esta ordenação dificulta que
se formem experiências e comunidades políticas capazes de fundar sua alteridade
como conflito e diferenciação crítica. Para as sociólogas Cibele Saliba Rizek e
Maria Célia Paoli, os anos 1990 significaram, por exemplo, a destruição de
quase todas as formas e caminhos, institucionais e não institucionais, pelos
quais se conduzia o debate sobre as potencialidades da democracia e da
democratização brasileiras. As autoras apontam a perda da potência da política
como destruição das possibilidades do campo político como solo e meio pelo qual
se poderia aprofundar e realizar a disputa democrática. Sendo assim, podemos
dizer que os escritores latino-americanos não estão alheios a essa imprevista
configuração do social no contemporâneo, maquinada pela dissolução das esferas
pública e privada e sobre a base da predominância da economia.
É de se presumir, portanto, que resíduos desse
capitalismo liberal tardio, com feitios democráticos precários, exercido sobre
a vida e o trabalho de milhões de latino-americanos, disparem narrativas
literárias que, muitas vezes, figuram por meio de suas propostas estéticas
precisamente o encolhimento das redes sociais, a desproletarização, a
informalização da população, a despacificação da vida cotidiana, a
desertificação organizativa e a indiferença da sociedade a determinados sujeitos
sociais e territórios urbanos – sem desconsiderar, igualmente, os contornos
abstratos e metafísicos que essas questões podem conter. Não podemos
esquecer que Michael Foucault já identificava, nas primeiras formas do
liberalismo do século XVIII, o paradoxo de que esta corrente de pensamento
devia construir os mecanismos coercitivos para a fluidez controlada da
liberdade em uma direção não prejudicial para o conjunto da sociedade, mas que
com isto corria o risco de destruir aquilo que desejava criar.
Além disso, e para encerrar parcialmente esta
discussão, cabe assinalar que estas práxis ficcionais conformam-se,
particularmente, em um contexto em que a emancipação pelas letras observa certo
esgotamento de suas forças como prática cultural e como resolução imaginária e
simbólica do subdesenvolvimento latino-americano, embora esta desidratação
simbólica pela qual passa a literatura não seja exclusiva desta expressão
cultural, pois atinge as demais práticas discursivas da contemporaneidade.
***
Este texto é um fragmento do artigo “Formulações do
político e do econômico na contemporaneidade: os imigrantes de Luiz Ruffato e
Sergio Chejfec” publicado originalmente na revista Horizontes Sociológicos, AAS, ano 2, número 3, pp. 59-66.
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