25 de julho de 2015

Deslocamentos: modos da economia, modos da ficção

Paulo César Thomaz

Foto de Don Bartletti


Nas últimas décadas constatamos a intensificação da circulação – material e imaterial – de bens e pessoas, primeiramente no âmbito de fronteiras circunscritas a determinada nacionalidade, para logo observá-la em geografias estrangeiras. Ainda que atinja as regiões do mundo de forma desigual, uma das preocupações mais relevantes dos estudiosos tem sido justamente dar conta da complexidade e da especificidade desse fenômeno na contemporaneidade. Nesse sentido, por exemplo, a ampla e interdisciplinar pesquisa do geógrafo brasileiro Rogério Haesbaert, reunida no livro O mito da desterritorialização, contribui com o debate ao colocar em cheque o discurso da desterritorialização por meio do aprofundamento da discussão sobre o conceito de multiterritorialidade.
Constituído como um “mito” para o autor, o conceito de desterritorialização estaria impossibilitado de distinguir o aspecto imanente da multiterritorialização na vida dos indivíduos e dos diferentes grupos sociais na contemporaneidade. Mais do que a desterritorialização desenraizadora, e os pressupostos ideológicos e políticos de cunho eurocêntrico que em muitos casos a sustentam, teríamos, em seu lugar, um permanente processo de reterritorialização, espacialmente descontínuo, sumamente complexo e frequentemente desigual.
Para Haesbaert, um dos aspectos regressivos de pensar em procedimentos de desterritorialização seria a demasiada simplicidade do conceito e a perspectiva política imobilizante que poderia esconder. Segundo o autor, em um mundo globalmente móvel, inestável, caracterizado pela imprevisibilidade e fluidez das redes e pela virtualidade do ciberespaço, estaríamos sujeitos aos caprichos dos grupos que verdadeiramente dominam estes fluxos, redes e imagens. Outro componente negativo consistiria em que, ao nutrir conceitualmente aqueles que defendem o fim de todo tipo de obstáculo espacial, o discurso da desterritorialização legitimaria de algum modo a cessão do poder às forças do mercado, ao permitir a fluidez global dos circuitos do capital, sobretudo do capital financeiro, num mundo em que o propósito a ser alcançado passa a ser o desaparecimento do Estado.
Diante desse cenário, seria fácil demonstrar como a literatura latino-americana, e mais especificadamente a brasileira e a argentina, não está alheia ao debate sobre esses intercâmbios. Um dos elementos medulares das narrativas desses países, de expressivo valor simbólico no imaginário cultural presente, trata-se precisamente da figuração desses trânsitos físicos e culturais por territórios continentais e intercontinentais, sobretudo americanos e europeus. Alguns escritores, inclusive, vivenciaram ou vivenciam essa experiência multiterritorial e a incorporam, de diferentes modos, a seus projetos estéticos.
Concomitantemente, outro aspecto que sobressai no que podemos chamar de “tarefa literária” de parte da produção narrativa latino-americana mais recente tem consistido na configuração de universos ficcionais em que uma série de formulações, declaradamente de ordem política e econômica, ganha relevo. Ao incorporar às suas narrativas – implícita e explicitamente – enunciados teórico-conceituais derivados de diferentes áreas do conhecimento (sociologia, filosofia e economia), que denunciam sobretudo o caráter dissociativo e desintegrador da sociedade atual, diferentes escritores tensionam a interpretação do presente e fazem que suas poéticas, em nosso entender, atuem também como um saber aproximativo sobre a contemporaneidade, entendido, nos termos do escritor argentino Sergio Chejfec, “não como um discurso que arbitre ou faça uma espécie de mediação entre a realidade e sua suposta importância, mas entre as versões culturais que se disputam o significado do presente”.
Não foram poucos os danos políticos, econômicos, éticos e culturais causados pelo exercício do poder autoritário na vida cotidiana da América Latina entre as décadas de 1960 e 1980. Renovadas pelas lógicas neoliberais das últimas décadas, estas implicações nefastas parecem ainda de algum modo orientar o eixo narrativo de textos ficcionais recentes. Assim, não podemos esquecer que a hegemonia das correntes neoliberais na América Latina das últimas décadas, em suas mais diversas materializações e matizações, forçou os Estados nacionais do continente a implantar um programa de desmanche e aniquilamento das estruturas coletivas que, quem sabe, teriam permitido uma maior democratização e republicanização dessas sociedades.
O predomínio de um mercado comandado pela racionalidade técnica, que opera zeloso dos interesses do capital financeiro e com o propósito de alcançar proveitos e lucros em um curto espaço de tempo, tem negado, sem dúvida, o fortalecimento dos espaços públicos e a transparência nas disposições econômicas e políticas fundamentais. Esta ordenação dificulta que se formem experiências e comunidades políticas capazes de fundar sua alteridade como conflito e diferenciação crítica. Para as sociólogas Cibele Saliba Rizek e Maria Célia Paoli, os anos 1990 significaram, por exemplo, a destruição de quase todas as formas e caminhos, institucionais e não institucionais, pelos quais se conduzia o debate sobre as potencialidades da democracia e da democratização brasileiras. As autoras apontam a perda da potência da política como destruição das possibilidades do campo político como solo e meio pelo qual se poderia aprofundar e realizar a disputa democrática. Sendo assim, podemos dizer que os escritores latino-americanos não estão alheios a essa imprevista configuração do social no contemporâneo, maquinada pela dissolução das esferas pública e privada e sobre a base da predominância da economia.
É de se presumir, portanto, que resíduos desse capitalismo liberal tardio, com feitios democráticos precários, exercido sobre a vida e o trabalho de milhões de latino-americanos, disparem narrativas literárias que, muitas vezes, figuram por meio de suas propostas estéticas precisamente o encolhimento das redes sociais, a desproletarização, a informalização da população, a despacificação da vida cotidiana, a desertificação organizativa e a indiferença da sociedade a determinados sujeitos sociais e territórios urbanos – sem desconsiderar, igualmente, os contornos abstratos e metafísicos que essas questões podem conter. Não podemos esquecer que Michael Foucault já identificava, nas primeiras formas do liberalismo do século XVIII, o paradoxo de que esta corrente de pensamento devia construir os mecanismos coercitivos para a fluidez controlada da liberdade em uma direção não prejudicial para o conjunto da sociedade, mas que com isto corria o risco de destruir aquilo que desejava criar.
Além disso, e para encerrar parcialmente esta discussão, cabe assinalar que estas práxis ficcionais conformam-se, particularmente, em um contexto em que a emancipação pelas letras observa certo esgotamento de suas forças como prática cultural e como resolução imaginária e simbólica do subdesenvolvimento latino-americano, embora esta desidratação simbólica pela qual passa a literatura não seja exclusiva desta expressão cultural, pois atinge as demais práticas discursivas da contemporaneidade.

                                                       ***

Este texto é um fragmento do artigo “Formulações do político e do econômico na contemporaneidade: os imigrantes de Luiz Ruffato e Sergio Chejfec” publicado originalmente na revista Horizontes Sociológicos, AAS, ano 2, número 3, pp. 59-66.

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