Maurício Silva
Imagem:
Egon Schiele
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Ao procurarmos explicitar
alguns modos de constituição/atuação de um conjunto de práticas e saberes
literários originalmente vinculados ao locus
periférico e a uma episteme marginal
– a que podemos designar literatura periférica-marginal –, uma das primeiras
questões a serem discutidas, de modo geral, é o lugar de onde possíveis sujeitos dessas práticas e saberes
literários falam.
O mote do sujeito como instância complexa da modernidade ocidental é próprio
da filosofia foucaultiana, mas também foi apropriado pela Análise do Discurso,
desenvolvida pelos estudos de Michel Pêcheux. Contudo, quando associamos essa
categoria ao universo da produção literária periférico-marginal, ela certamente
adquire outra dinâmica: passa a se referir às (im)possibilidades de o sujeito periférico assumir sua condição
plena de sujeito de seu próprio discurso e, por meio dele, manifestar-se. Dadas
as condições "especiais" em que esse sujeito se encontra e como ele
se apresenta, é preciso que atentemos para uma série de elementos que, de modo
deliberadamente pejorativo, não só condicionam esse discurso, mas sobretudo o
delimitam, de tal forma que, por um lado, ele se manifeste como mistificação – um discurso, por assim
dizer, inserido na dinâmica do atual capitalismo neoliberal e, assim, tornado parte
de uma lógica consumista – e, por outro lado, ele se apresente como simulação: um discurso que, embora
aparentemente autônomo, guarda em si mesmo traços de uma perspectiva forânea,
sendo, antes, a expressão de uma ideologia de classe alheia à realidade de onde
ele pretensamente partiu.
Disso resulta a condição de subalternidade que, em geral, a palavra
do sujeito periférico adquire
involuntariamente. É nesse sentido que Gayatri Spivak propôs seu célebre
questionamento, acerca da forma como o "sujeito do Terceiro Mundo é
representado no discurso ocidental", perguntando-se: pode o subalterno falar? A resposta que oferece a esse
questionamento é, a um só tempo, "clássica" e inovadora: na verdade,
o subalterno, além de não ter direito à sua própria fala, estaria sendo falado
por outro; estaria, em resumo, sendo construído como sujeito colonial, cuja palavra é – no nosso ponto de vista – ora
mistificada, ora (dis)simulada.
A condição do sujeito subalternizado
foi melhor estudada, no contexto brasileiro, por Paulo Freire, ao instituir a
categoria de oprimido. Em sua célebre
obra Pedagogia do oprimido o ilustre
educador pernambucano defende a ideia de que somente o próprio oprimido poderá
entender o significado mais profundo e amplo da opressão e da sociedade
opressora, buscando uma libertação que só se alcança pela práxis da busca, constituindo, assim,
mais do que uma "pedagogia", uma verdadeira "teoria" do
oprimido. Fugir a essa condição de oprimido, completa o autor, pressupõe uma
prática libertária que passa, antes, pelo reconhecimento de sua condição de
oprimido e, na sequência, de uma intenção de libertação tanto do próprio
oprimido (de sua condição de
oprimido) quanto de seu opressor (de sua condição
de opressor). Assim, por meio desse "parto doloroso", que é o
processo de libertação, supera-se a contradição opressor-oprimido, num processo
histórico e dialético de “reflexão e ação dos homens sobre o mundo para
transformá-lo”. Uma das questões mais relevantes no que aqui chamamos de teoria do oprimido freiriana é a
proposição que faz em relação ao próprio processo de libertação do oprimido,
chamando a atenção para os riscos de se assumir uma atitude fatalista no percurso do processo, de se equivocar com uma atração pelo opressor, de se deixar
imbuir por uma autodesvalia, atitudes
que, no âmbito da produção literária periférica-marginal – a única, a nosso
ver, que assumiu para si o papel "libertário" de que nos fala o
educador brasileiro – tem sido sistematicamente combatida. Isso se deve, em
grande parte, ao fato de se tratar de uma "revolução" (social,
comportamental, ideológica etc.) promovida de dentro, isto é, pelos próprios oprimidos, com os próprios oprimidos, para os próprios oprimidos, resultado,
evidentemente, de um crescente processo de conscientização,
o qual, ainda nas palavras de Paulo Freire, implica que "ultrapassemos a
esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera
crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem
assume uma posição epistemológica”.
Ao assumir o seu próprio discurso,
ao se assumir como sujeito de seu discurso, o autor de literatura
periférica-marginal não assume apenas uma palavra antes sequestrada e
silenciada, uma fala subalternizada,
mas toda uma atitude que está mais para a noção de arquivo foucaultiana – conceito que, para além da palavra e do corpus linguístico, constitui "o
sistema geral da formação e da transformação dos enunciados" – do que de
expressão literária propriamente dita. Incorpora-se, assim, um dizer cuja carga ideológica não dispensa
– ao contrário, incorpora como resultado de uma "tradição" – um
conjunto de experiências forjado no cotidiano das periferias dos grandes centros
urbanos, construído nos interstícios das sociedades "organizadas" e
adquirido por meio de uma vivência-no-limite, própria daquelas populações que
parecem viver continuamente nas franjas das classes sociais. Por isso, ao
lançar mão de sua voz e de sua palavra, o escritor periférico-marginal
não deixa de, ainda numa acepção foucaultiana do termo – para quem "o
discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta” –, se apoderar de seu próprio
discurso. Essa é uma atitude que,
grosso modo, insere-se num conjunto de ações que, para além da literatura,
penetra a fundo o universo da educação, instituindo uma ruptura em fórmulas e
estruturas padronizadas de práticas e discursos. Trata-se, em suma, de abordar
esse assunto na sua correlação com estratégias em empoderamento da
cultura periférica, tendo a literatura como elemento central e mediador das
relações sociais e interpessoais.
As relações entre literatura e
sociedade nunca foram simples, adquirindo, com o passar do tempo, complexidade
cada vez maior. O escritor periférico-marginal se insere nesse contexto de
forma, por assim dizer, oblíqua: não tendo sido convidado para o banquete das
civilizações, introduz-se de modo imperativo, sem se imiscuir de suas
"funções", sem renegar o seu papel, mas também sem abrir mão de seus
princípios estéticos, base em que sua prática "socioliterária" se
sustenta; o escritor periférico-marginal, assim, entra sem pedir licença e,
pela sua própria voz, toma a palavra que lhe é de direito, tornando-se sujeito
de seu discurso, numa atitude que não prescinde das ideias de afirmação
identitária, militância político-social e prática comunitária. Nas palavras de
Paulo Patrocínio, em seu livro Escritos à
margem: a presença de autores de periferia na cena literária brasileira, "sujeitos
periféricos que romperam a silenciosa posição de objeto para entrarem na cena
literária utilizando a literatura enquanto veículo de um discurso político
formado no desejo de autoafirmação [...] para tanto, cobram para si a égide de
marginal enquanto forma identitária, compondo um grupo heterogêneo no tocante
ao exercício literário e homogêneo quanto a sua origem social. São agora os
próprios marginais que buscam representar o cotidiano de territórios
periféricos, resultando em uma escrita fortemente marcada por um teor
testemunhal".
De fato, não estamos mais falando,
ao nos reportarmos a esse conjunto de autores e obras literárias, de uma
literatura desvinculada de um contexto no qual ela foi produzida, que ela, de
alguma maneira, representa e com o qual estabelece uma relação íntima de
cumplicidade comunitária, uma vez que se traduz não somente de
"produtos" estéticos, mas em "performances" éticas que, a
nosso ver, voltam-se especialmente para uma compreensão mais estendida e
dinâmica do sentido de educação – algo mais próximo do que, como dissemos
acima, ao nos referirmos aos conceitos de Paulo Freire, pode ser entendido como
um amplo processo de conscientização.
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