13 de fevereiro de 2016

Literatura, sociedade, conscientização (ou quem é o escritor periférico-marginal?)

Maurício Silva


Imagem: Egon Schiele


Ao procurarmos explicitar alguns modos de constituição/atuação de um conjunto de práticas e saberes literários originalmente vinculados ao locus periférico e a uma episteme marginal – a que podemos designar literatura periférica-marginal –, uma das primeiras questões a serem discutidas, de modo geral, é o lugar de onde possíveis sujeitos dessas práticas e saberes literários falam. 
            
O mote do sujeito como instância complexa da modernidade ocidental é próprio da filosofia foucaultiana, mas também foi apropriado pela Análise do Discurso, desenvolvida pelos estudos de Michel Pêcheux. Contudo, quando associamos essa categoria ao universo da produção literária periférico-marginal, ela certamente adquire outra dinâmica: passa a se referir às (im)possibilidades de o sujeito periférico assumir sua condição plena de sujeito de seu próprio discurso e, por meio dele, manifestar-se. Dadas as condições "especiais" em que esse sujeito se encontra e como ele se apresenta, é preciso que atentemos para uma série de elementos que, de modo deliberadamente pejorativo, não só condicionam esse discurso, mas sobretudo o delimitam, de tal forma que, por um lado, ele se manifeste como mistificação – um discurso, por assim dizer, inserido na dinâmica do atual capitalismo neoliberal e, assim, tornado parte de uma lógica consumista – e, por outro lado, ele se apresente como simulação: um discurso que, embora aparentemente autônomo, guarda em si mesmo traços de uma perspectiva forânea, sendo, antes, a expressão de uma ideologia de classe alheia à realidade de onde ele pretensamente partiu.

Disso resulta a condição de subalternidade que, em geral, a palavra do sujeito periférico adquire involuntariamente. É nesse sentido que Gayatri Spivak propôs seu célebre questionamento, acerca da forma como o "sujeito do Terceiro Mundo é representado no discurso ocidental", perguntando-se: pode o subalterno falar? A resposta que oferece a esse questionamento é, a um só tempo, "clássica" e inovadora: na verdade, o subalterno, além de não ter direito à sua própria fala, estaria sendo falado por outro; estaria, em resumo, sendo construído como sujeito colonial, cuja palavra é – no nosso ponto de vista – ora mistificada, ora (dis)simulada.
            
A condição do sujeito subalternizado foi melhor estudada, no contexto brasileiro, por Paulo Freire, ao instituir a categoria de oprimido. Em sua célebre obra Pedagogia do oprimido o ilustre educador pernambucano defende a ideia de que somente o próprio oprimido poderá entender o significado mais profundo e amplo da opressão e da sociedade opressora, buscando uma libertação que só se alcança pela práxis da busca, constituindo, assim, mais do que uma "pedagogia", uma verdadeira "teoria" do oprimido. Fugir a essa condição de oprimido, completa o autor, pressupõe uma prática libertária que passa, antes, pelo reconhecimento de sua condição de oprimido e, na sequência, de uma intenção de libertação tanto do próprio oprimido (de sua condição de oprimido) quanto de seu opressor (de sua condição de opressor). Assim, por meio desse "parto doloroso", que é o processo de libertação, supera-se a contradição opressor-oprimido, num processo histórico e dialético de “reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo”. Uma das questões mais relevantes no que aqui chamamos de teoria do oprimido freiriana é a proposição que faz em relação ao próprio processo de libertação do oprimido, chamando a atenção para os riscos de se assumir uma atitude fatalista no percurso do processo, de se equivocar com uma atração pelo opressor, de se deixar imbuir por uma autodesvalia, atitudes que, no âmbito da produção literária periférica-marginal – a única, a nosso ver, que assumiu para si o papel "libertário" de que nos fala o educador brasileiro – tem sido sistematicamente combatida. Isso se deve, em grande parte, ao fato de se tratar de uma "revolução" (social, comportamental, ideológica etc.) promovida de dentro, isto é, pelos próprios oprimidos, com os próprios oprimidos, para os próprios oprimidos, resultado, evidentemente, de um crescente processo de conscientização, o qual, ainda nas palavras de Paulo Freire, implica que "ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica”.
            
Ao assumir o seu próprio discurso, ao se assumir como sujeito de seu discurso, o autor de literatura periférica-marginal não assume apenas uma palavra antes sequestrada e silenciada, uma fala subalternizada, mas toda uma atitude que está mais para a noção de arquivo foucaultiana – conceito que, para além da palavra e do corpus linguístico, constitui "o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados" – do que de expressão literária propriamente dita. Incorpora-se, assim, um dizer cuja carga ideológica não dispensa – ao contrário, incorpora como resultado de uma "tradição" – um conjunto de experiências forjado no cotidiano das periferias dos grandes centros urbanos, construído nos interstícios das sociedades "organizadas" e adquirido por meio de uma vivência-no-limite, própria daquelas populações que parecem viver continuamente nas franjas das classes sociais. Por isso, ao lançar mão de sua voz e de sua palavra, o escritor periférico-marginal não deixa de, ainda numa acepção foucaultiana do termo – para quem "o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta” –, se apoderar de seu próprio discurso. Essa é uma atitude que, grosso modo, insere-se num conjunto de ações que, para além da literatura, penetra a fundo o universo da educação, instituindo uma ruptura em fórmulas e estruturas padronizadas de práticas e discursos. Trata-se, em suma, de abordar esse assunto na sua correlação com estratégias em empoderamento da cultura periférica, tendo a literatura como elemento central e mediador das relações sociais e interpessoais.
           
As relações entre literatura e sociedade nunca foram simples, adquirindo, com o passar do tempo, complexidade cada vez maior. O escritor periférico-marginal se insere nesse contexto de forma, por assim dizer, oblíqua: não tendo sido convidado para o banquete das civilizações, introduz-se de modo imperativo, sem se imiscuir de suas "funções", sem renegar o seu papel, mas também sem abrir mão de seus princípios estéticos, base em que sua prática "socioliterária" se sustenta; o escritor periférico-marginal, assim, entra sem pedir licença e, pela sua própria voz, toma a palavra que lhe é de direito, tornando-se sujeito de seu discurso, numa atitude que não prescinde das ideias de afirmação identitária, militância político-social e prática comunitária. Nas palavras de Paulo Patrocínio, em seu livro Escritos à margem: a presença de autores de periferia na cena literária brasileira, "sujeitos periféricos que romperam a silenciosa posição de objeto para entrarem na cena literária utilizando a literatura enquanto veículo de um discurso político formado no desejo de autoafirmação [...] para tanto, cobram para si a égide de marginal enquanto forma identitária, compondo um grupo heterogêneo no tocante ao exercício literário e homogêneo quanto a sua origem social. São agora os próprios marginais que buscam representar o cotidiano de territórios periféricos, resultando em uma escrita fortemente marcada por um teor testemunhal".
           
De fato, não estamos mais falando, ao nos reportarmos a esse conjunto de autores e obras literárias, de uma literatura desvinculada de um contexto no qual ela foi produzida, que ela, de alguma maneira, representa e com o qual estabelece uma relação íntima de cumplicidade comunitária, uma vez que se traduz não somente de "produtos" estéticos, mas em "performances" éticas que, a nosso ver, voltam-se especialmente para uma compreensão mais estendida e dinâmica do sentido de educação – algo mais próximo do que, como dissemos acima, ao nos referirmos aos conceitos de Paulo Freire, pode ser entendido como um amplo processo de conscientização.

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