Imagem: Vladimir Velickovic |
Há
exatamente um ano, policiais militares assassinavam 12 jovens negros (a
campanha “Reaja ou será morta, Reaja ou será morto” diz que foram 13) no bairro do Cabula, na periferia
de Salvador. Nenhum dos nove policiais envolvidos no crime foi punido.
Foram
mortos Evson Pereira dos Santos, 27 anos, Ricardo
Vilas Boas Silvia, 27, Jeferson Pereira dos Santos, 22, João Luis Pereira
Rodrigues, 21, Adriano de Souza Guimarães, 21, Vitor Amorim de Araujo, 19,
Agenor Vitalino dos Santos Neto, 19, Bruno Pires do Nascimento, 19, Tiago Gomes
das Virgens, 18, Natanael de Jesus Costa, 17, Rodrigo Martins de Oliveira, 17,
e Caique Bastos dos Santos, 16 anos.
Ricardo
Aleixo escreveu o poema abaixo na época, para que eles não sejam esquecidos.
Na
noite calunga do bairro Cabula
Ricardo Aleixo
Morri quantas vezes
na noite mais longa?
na noite mais longa?
Na noite imóvel, a
mais longa e espessa,
morri quantas vezes
na noite calunga?
na noite calunga?
A noite não passa
e eu dentro dela
e eu dentro dela
morrendo de novo
sem nome e de novo
sem nome e de novo
morrendo a cada
outro rombo aberto
outro rombo aberto
na musculatura
do que um dia eu fui.
do que um dia eu fui.
Morri quantas vezes
na noite mais rubra?
Na noite calunga,
tão espessa e longa,
morri quantas vezes
na noite terrível?
A noite mais morte
e eu dentro dela
morrendo de novo
sem voz e outra vez
morria a cada
outra bala alojada
no fundo mais fundo
do que eu ainda sou
(a cada silêncio
de pedra e de cal
que despeja o branco
de sua indiferença
por cima da sombra
do que eu já não sou
do que eu já não sou
nem serei nunca mais).
Morri quantas vezes
na noite calunga?
Na noite trevosa,
Na noite trevosa,
noite que não finda,
a noite oceano, pleno
vão de sangue,
morri quantas vezes
na noite terrível,
na noite calunga
do bairro Cabula?
Morri tantas vezes
mas nunca me matam
de uma vez por todas.
Meu sangue é semente
que o vento enraíza
no ventre da terra
e eu nasço de novo
e de novo e meu nome
é aquele que não morre
sem fazer da noite
não mais a silente
não mais a silente
parceira da morte
mas a mãe que pare
filhos cor da noite
e zela por eles,
tal qual uma pantera
que mostra, na chispa
que mostra, na chispa
do olhar e no gume
das presas, o quanto
das presas, o quanto
será capaz de fazer
se a mão da maldade
se a mão da maldade
ao menos pensar
em perturbar o sono
em perturbar o sono
da sua ninhada.
Morri tantas vezes
mas sempre renasço
ainda mais forte
corajoso e belo
– só o que sei é ser.
– só o que sei é ser.
Sou muitos, me espalho
pelo mundo afora
pelo mundo afora
e pelo tempo adentro
de mim e sou tantos
de mim e sou tantos
que um dia eu faço
a vida viver.
a vida viver.
(Este
poema faz parte do livro Impossível como
nunca ter tido um rosto, de Ricardo Aleixo. Belo Horizonte: Edição do
autor, 2015).
NOTA DO AUTOR
O poema “Na noite calunga do bairro Cabula” foi escrito especialmente para a revista O Menelick 2° Ato, e versa sob o impacto do massacre, por integrantes da Polícia Militar, de 13 jovens negros da periferia de Salvador, na Bahia, na noite do dia 6 de fevereiro de 2015. O trágico episódio foi batizado por integrantes da campanha “Reaja ou será morta, Reaja ou será morto” de Chacina do Cabula, nome do bairro onde residiam os rapazes assassinados.
Jogando com a dupla acepção da palavra calunga – mar e morte –, o poema, que li, pela primeira vez, em público, durante debate de que participei em 23 de março de 2015 no Salão do Livro de Paris, organiza-se, a um só tempo, como um protesto contra a naturalização das práticas de extermínio da juventude negra no Brasil e em diversos outros países e como um elogio da Resistência Ativa, em nome da Vida.
Dedico-o às minhas filhas Iná e Flora e ao meu filho Ravi.
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