Adelaide Calhman de Miranda
Desenho: Andy Towler
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Entre os temas mais frequentes
nos romances brasileiros contemporâneos de autoria feminina, destaco o
esquecimento das protagonistas. Essa falha da memória nas obras aponta para a necessidade
de reformulação da história das mulheres e seus espaços, assim como da
historiografia literária. Nesse sentido, o questionamento da representação de
mulheres em obras canonizadas leva à desconstrução dos valores sexistas e
falocêntricos que fundamentam o cânone.
É
possível encontrar essa temática em alguns romances contemporâneos brasileiros como
Rakushisha, de Adriana Lisboa, Coisas que os homens não entendem, de
Elvira Vigna, A matemática da formiga,
de Daniela Versiani, e Ponciá Vicêncio,
de Conceição Evaristo, entre outros. Nessas narrativas, a cidade não é somente cenário,
mas também elemento problematizador das subjetividades femininas. O
esquecimento das personagens é seguido de uma preocupação com os atos de
resgatar e recontar suas histórias. No processo de relembrar, o espaço urbano tem
uma participação especial, pois constitui elemento fundamental na elaboração da
memória e da identidade. O deslocamento pela cidade, o compartilhamento dos
espaços e a convivência com outras pessoas resulta em subjetividades
configuradas por meio de suas relações. Além disso, ao introduzirem novas
conexões pessoais e espaciais, os romances sugerem uma nova forma de perceber o
espaço, que aponta para um novo conceito, como aquele formulado por Doreen
Massey em For Space.
Para
a geógrafa contemporânea, um novo modo de perceber o espaço colocaria em relevo
suas três características principais. Primeiro, ele é sempre produto de suas
inter-relações, isto é, anti-essencialista por definição. Segundo, resulta da
multiplicidade, da heterogeneidade que o constitui. For fim, é um processo
sempre aberto, passível de novas configurações e sentidos. Tal
reconceitualização contribui para o processo político, admitindo a
espacialidade como parte integrante da identidade.
No mesmo sentido, a inserção das
mulheres na trama urbana é um dos fatores constituintes da reelaboração de suas
histórias. Nesses romances contemporâneos, é significativo a saída dos espaços
privados, que ainda hoje marcam a subjetividade feminina, para a conquista dos espaços
públicos. Ademais, o deslocamento no tempo passado da memória ocorre
paralelamente à circulação pelos espaços da cidade nos romances. Ambos os
movimentos, pelo tempo e pelo espaço, têm a função de reconfigurar a
subjetividade das protagonistas em suas inter-relações.
Além de reestabelecer a subjetividade a partir da sua
relação com o espaço, a temática da memória insere-se no processo de crítica ao
cânone literário. Aparentemente, essa reconstrução relaciona-se a um movimento
transgressor de revisão do cânone e de desconstrução de seus valores
considerados universais. Ainda hoje, a entrada de escritoras mulheres no cânone
é dificultada pela relativa ausência de uma tradição literária de obras de
autoria feminina. Outro obstáculo diz respeito a um campo literário que
desvaloriza a literatura escrita por mulheres, designado por Annette Kolodny,
em “Dancing through the minefield”, como o “campo minado”. Nesse sentido, as relações
de poder da herança literária reproduzem as mesmas relações de poder
encontradas na cultura patriarcal.
Rita Terezinha Schmidt, em “Refutações ao feminismo” ,
acrescenta que, no caso do Brasil, a tendência de desvalorizar o mérito do
trabalho das mulheres é ainda mais marcante, pois a subordinação das mulheres
só pode ser compreendida à luz de um projeto de nação que contou com o apagamento
dos registros de todos os tipos de opressão. De acordo com pesquisa de Regina Dalcastagnè
sobre
literatura brasileira contemporânea, a maioria das obras publicadas nas grandes
editoras é de escritores homens e as imagens de mulheres nessas obras ainda são
estereotipadas. As obras das escritoras aqui analisadas se apropriam dessas
ausências históricas para subverter as noções de história e de sujeito
encontradas nas narrativas oficiais. Assim, o esquecimento sintomático dessas
protagonistas ultrapassa as dimensões individuais e possibilita uma
reconfiguração das relações de poder e de suas representações.
Ao percorrerem as cidades, as protagonistas recorrem às
lembranças para reelaborarem suas histórias em seus próprios termos. Ao
esquecer e relembrar, recordar e registrar, as mulheres reescrevem sua
participação na história patriarcal na qual foram silenciadas. De formas
diferentes, os papéis tradicionais de gênero são desestabilizados, e suas
identidades são reconfiguradas de acordo com a experiência revisitada e ressignificada
pela lembrança.
Em algumas obras, a memória assume uma voz coletiva para
resgatar a história apagada e para resistir a um local de fala silenciado,
inclusive no cânone literário. Em outras, a lembrança de pequenos detalhes
observados na caminhada cotidiana, ou na flânerie
pelas ruas estrangeiras, terá a importância de reconstruir a memória
individual. Nos dois casos, a memória, articulada a outros aspectos da
identidade, atribui um novo sentido à experiência e à história das mulheres.
O texto completo pode ser lido no livro Espaço e gênero na literatura brasileira contemporânea, organizado
por Regina Dalcastagnè e Virgínia Maria Vasconcelos Leal (Zouk, 2015).
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