12 de setembro de 2015

Memória e cidade na narrativa brasileira contemporânea de autoria feminina

Adelaide Calhman de Miranda


Desenho: Andy Towler


Entre os temas mais frequentes nos romances brasileiros contemporâneos de autoria feminina, destaco o esquecimento das protagonistas. Essa falha da memória nas obras aponta para a necessidade de reformulação da história das mulheres e seus espaços, assim como da historiografia literária. Nesse sentido, o questionamento da representação de mulheres em obras canonizadas leva à desconstrução dos valores sexistas e falocêntricos que fundamentam o cânone.
É possível encontrar essa temática em alguns romances contemporâneos brasileiros como Rakushisha, de Adriana Lisboa, Coisas que os homens não entendem, de Elvira Vigna, A matemática da formiga, de Daniela Versiani, e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, entre outros. Nessas narrativas, a cidade não é somente cenário, mas também elemento problematizador das subjetividades femininas. O esquecimento das personagens é seguido de uma preocupação com os atos de resgatar e recontar suas histórias. No processo de relembrar, o espaço urbano tem uma participação especial, pois constitui elemento fundamental na elaboração da memória e da identidade. O deslocamento pela cidade, o compartilhamento dos espaços e a convivência com outras pessoas resulta em subjetividades configuradas por meio de suas relações. Além disso, ao introduzirem novas conexões pessoais e espaciais, os romances sugerem uma nova forma de perceber o espaço, que aponta para um novo conceito, como aquele formulado por Doreen Massey em For Space.
Para a geógrafa contemporânea, um novo modo de perceber o espaço colocaria em relevo suas três características principais. Primeiro, ele é sempre produto de suas inter-relações, isto é, anti-essencialista por definição. Segundo, resulta da multiplicidade, da heterogeneidade que o constitui. For fim, é um processo sempre aberto, passível de novas configurações e sentidos. Tal reconceitualização contribui para o processo político, admitindo a espacialidade como parte integrante da identidade.
No mesmo sentido, a inserção das mulheres na trama urbana é um dos fatores constituintes da reelaboração de suas histórias. Nesses romances contemporâneos, é significativo a saída dos espaços privados, que ainda hoje marcam a subjetividade feminina, para a conquista dos espaços públicos. Ademais, o deslocamento no tempo passado da memória ocorre paralelamente à circulação pelos espaços da cidade nos romances. Ambos os movimentos, pelo tempo e pelo espaço, têm a função de reconfigurar a subjetividade das protagonistas em suas inter-relações.
Além de reestabelecer a subjetividade a partir da sua relação com o espaço, a temática da memória insere-se no processo de crítica ao cânone literário. Aparentemente, essa reconstrução relaciona-se a um movimento transgressor de revisão do cânone e de desconstrução de seus valores considerados universais. Ainda hoje, a entrada de escritoras mulheres no cânone é dificultada pela relativa ausência de uma tradição literária de obras de autoria feminina. Outro obstáculo diz respeito a um campo literário que desvaloriza a literatura escrita por mulheres, designado por Annette Kolodny, em “Dancing through the minefield”, como o “campo minado”. Nesse sentido, as relações de poder da herança literária reproduzem as mesmas relações de poder encontradas na cultura patriarcal.
Rita Terezinha Schmidt, em “Refutações ao feminismo” , acrescenta que, no caso do Brasil, a tendência de desvalorizar o mérito do trabalho das mulheres é ainda mais marcante, pois a subordinação das mulheres só pode ser compreendida à luz de um projeto de nação que contou com o apagamento dos registros de todos os tipos de opressão. De acordo com pesquisa de Regina Dalcastagnè sobre literatura brasileira contemporânea, a maioria das obras publicadas nas grandes editoras é de escritores homens e as imagens de mulheres nessas obras ainda são estereotipadas. As obras das escritoras aqui analisadas se apropriam dessas ausências históricas para subverter as noções de história e de sujeito encontradas nas narrativas oficiais. Assim, o esquecimento sintomático dessas protagonistas ultrapassa as dimensões individuais e possibilita uma reconfiguração das relações de poder e de suas representações.
Ao percorrerem as cidades, as protagonistas recorrem às lembranças para reelaborarem suas histórias em seus próprios termos. Ao esquecer e relembrar, recordar e registrar, as mulheres reescrevem sua participação na história patriarcal na qual foram silenciadas. De formas diferentes, os papéis tradicionais de gênero são desestabilizados, e suas identidades são reconfiguradas de acordo com a experiência revisitada e ressignificada pela lembrança.
Em algumas obras, a memória assume uma voz coletiva para resgatar a história apagada e para resistir a um local de fala silenciado, inclusive no cânone literário. Em outras, a lembrança de pequenos detalhes observados na caminhada cotidiana, ou na flânerie pelas ruas estrangeiras, terá a importância de reconstruir a memória individual. Nos dois casos, a memória, articulada a outros aspectos da identidade, atribui um novo sentido à experiência e à história das mulheres.


O texto completo pode ser lido no livro Espaço e gênero na literatura brasileira contemporânea, organizado por Regina Dalcastagnè e Virgínia Maria Vasconcelos Leal (Zouk, 2015).

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