Virgínia Maria Vasconcelos Leal
Foto: Regina Dalcastagnè |
Em
meio a tanta variedade de títulos e nomes que surgiram no mercado editorial
brasileiro nos últimos vinte anos, uma reflexão a respeito da inserção das
mulheres se impõe. Afinal, é fato que a presença feminina cresceu em muitos
setores sociais, políticos e culturais. Mas o que significa ser uma escritora
contemporânea no estado atual do campo literário? Nesse sentido, o conceito de
campo literário de Pierre Bourdieu mostra-se bastante produtivo, devido a seu
diálogo com o campo social. Em sua teoria, as mudanças externas ao campo
literário provocam alterações nas posições de seus agentes, ao permitir a
chegada de novo/as produtores/as e de consumidores/as no espaço social. E com
as conquistas feministas não foi diferente. Ser uma escritora contemporânea, então,
é dialogar com a história da inserção das mulheres no campo literário,
considerando-se a atuação dos movimentos feministas como força social.
Recém-ingressas, em uma perspectiva histórica, até mesmo ao sistema escolar,
nomes de mulheres quase não são encontrados em capas de romances, mesmo nos
tempos atuais, quando muitos consideram a discussão já ultrapassada.
No
escopo das escritoras brasileiras, se feministas ou não, se trabalham
questionando ou ratificando os papéis tradicionais de gênero, em diálogo ou não
com a categoria de raça e/ou orientação sexual, se querem fazer parte ou negam
a existência de uma literatura feminina, isso cada trajetória, cada obra e cada
perspectiva crítica poderá responder. Contudo, ao aparecer uma escritora e sua
obra, o conceito de gênero, necessariamente, movimenta-se, pois está vinculado
ao sistema de significações presentes em uma sociedade. No entanto, pensar uma
construção comum de uma representação de gênero para essas autoras seria
classificá-las como um grupo com objetivos também comuns? Mas todas têm
trajetórias como indivíduos, que geraram obras também individualizadas. Iris
Young propõe, então, categorizar o gênero como “serialidade”. Ela defende que as estruturas de gênero não
definem qualidades específicas para as mulheres, mas os fatos sociais e
materiais com os quais cada indivíduo deve lidar. Para ela, cada pessoa, subjetiva
e empiricamente, relaciona-se com as estruturas de gênero de forma variável. Não
há como negar que elas existem, como a divisão sexual do trabalho, a
heterossexualidade compulsória, as relações com o corpo, as estruturas linguísticas,
entre outras. Para algumas mulheres, em contextos sociais e individuais
específicos, outras relações de identidade, como a nacionalidade, a classe, a
etnia, podem ser mais definidoras de si mesmas. Por outro lado, mesmo que elas
nunca se identifiquem com outras mulheres, o gênero “serializa” a todas, mas de
modo particular.
De
certa forma, mesmo que não aprovem a categoria de uma “literatura feminina”
toda própria, as autoras terminam dialogando com o gênero. As escritoras são
sempre perguntadas, por exemplo, se fazem literatura feminina – um termo que
emoldura resenhas sobre suas obras e seus posicionamentos a respeito. Ou seja,
as escritoras têm que lidar com o seu gênero, seja pela negação ou apropriação.
Um exemplo relevante de final do século XX para o XXI foi o fenômeno das
antologias de contos. Se, em duas antologias – Geração 90: manuscritos de computador (2001) e Geração 90: os transgressores (2003), organizadas por Nelson de
Oliveira e publicadas pela Editora Boitempo – , de 33 escritores reunidos,
havia apenas quatro mulheres (Cíntia Moscovich, Simone Campos, Luci Collin e
Ivana Arruda Leite), em duas outras, organizadas por Luiz Ruffato e publicadas
pela editora Record, o gênero das escritoras foi um dos critérios de escolha: 25 Mulheres que estão fazendo a nova
literatura brasileira (2004) e Mais
30 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2005).
O
próprio fato de existirem antologias como essas já reflete suas contradições.
Até que ponto um recorte tão específico (“Mulheres”) não termina por contribuir
para a sua própria limitação a um “gueto” editorial, como se não fizessem parte
da “literatura geral”? As antologias de contos suscitam questões fundamentais,
de difícil resolução. Existem temas exclusivos para as mulheres escritoras
tratarem? Será que é o gênero da escritora que a faz dominar (bem) as técnicas
narrativas na transformação de uma vivência comum a muitas mulheres em matéria
literária? Bem, mulheres foram escolhidas para comporem o volume por serem
mulheres. Estilos e temáticas não foram o critério, mas
sim seu gênero. Aí mora toda a complexidade para se pensar uma significação
única para uma literatura feita por nós, haja vista tantas possibilidades.
Posto
isso, outra resposta problemática, já no campo do romance, relaciona-se à
coleção Amores extremos, iniciada em
2001, e também proposta pela Editora Record. Romancistas já conhecidas foram
convidadas a escrever sobre aspectos das relações amorosas. Assim, Lívia
Garcia-Roza, Marilene Felinto, Heloísa Seixas, Maria Adelaide Amaral, Letícia
Wierzchowski, Helena Jobim e Ana Maria Machado foram chamadas a escrever sobre
amor em diversas facetas – desacerto, perda, desejo, romantismo, sedução,
pecado e tempo (conforme seus subtítulos). Também o gênero “serializou” as
escritoras que, por serem mulheres, entenderiam dos ciclos amorosos, segundo a
concepção essencialista anunciada pelas orelhas das capas.
Entre
os livros da referida coleção, está Solo
feminino, de Lívia Garcia-Roza, uma das mais profícuas autoras da virada do
milênio. Em muitos de seus romances, como Cine
Odeon, Meus queridos estranhos, Meu
marido e Milamor, ela representa
o enlouquecimento “linguístico” de suas personagens encerradas na unidade
familiar tradicional. Ao mesmo tempo que traz novas configurações, suas mães e
filhas, em especial, ainda estão em uma impossibilidade de comunicação plena.
As suas narradoras são, na maioria das vezes, nada confiáveis, pois vivem a
família como uma instituição que as adoece.
Outra
escritora, que tem uma produção grande também em contos, Cíntia Moscovich,
busca a palavra e a expressão para as experiências-limite de suas personagens,
marcadas por uma corporalidade e uma sexualidade não-hegemônica. Mesclando a
tradição judaica da narrativa e da memória, mas em uma perspectiva das mulheres
em uma estrutura patriarcal em desestabilização (pela morte do pai), seus
romances Duas iguais e Por que sou gorda, mamãe? trazem
narradoras que buscam uma melhor expressão para seus impasses. Em suas
narrativas, estão presentes o corpo e a sexualidade (em especial a diversidade,
uma vez que as relações lésbicas também aparecem) bem como a questão da
identidade na esfera familiar.
Adriana
Lisboa, por sua vez, tem sua prosa classificada por Luciene Azevedo, como representante, em seus termos, da “literatura da delicadeza”, ou seja, seu estilo teria como
traços principais a recuperação da memória afetiva, uma escrita apurada e
minuciosa, que deteria o tempo narrativo e exporia o olhar sobre os detalhes
menores do cotidiano, sem perder a dimensão do relato de uma história. E,
assim, longe do imediatismo referencial de uma prosa de vertente realista e
brutal, atinge efeitos tão ou mais eficientes como algo tão terrível como o
abuso sexual cometido pelo pai a uma de suas filhas, enquanto a outra é a
testemunha calada e raivosa, como o faz em Sinfonia
em Branco. Nas obras posteriores, Rakushisha,
Azul-corvo e Hanói, o sentimento da viagem, da busca pelo pertencimento possível
de personagens em deslocamentos, com a família nuclear destroçada, voltam a ser
trabalhados, na busca por novas configurações afetivas.
Já
a obra de Elvira Vigna tem se destacado com suas personagens em constantes
movimentos entre máscaras, identidades e corpos. Ela está concatenada com
paradigmas contemporâneos como o da diferença sexual, além dos papéis de
gênero, mostrando o lado arbitrário das normas, buscando subverter e questionar
tal representação também no nível narrativo e na instabilidade das descrições
corporais. Se os corpos são constituídos por distintos discursos e formas de
conhecimento, são também um produto cultural que pode (e deve ser)
indeterminado – como estratégia para se tentar minar os pares binários que se
perpetuam, em sua continuidade normativa. E a narrativa literária pode ser
também esse local de indeterminação. Aí se destaca sua obra. Seus romances
trabalham em um gênero literário “falsamente” policial. Apesar de suas
narrativas poderem ser assim “vendidas”, pois sempre aparecem cadáveres,
policiais e crimes, não é a “resolução” de um assassinato o principal mote do
enredo.
O
foco narrativo de seus romances é, predominantemente, em primeira pessoa e suas
protagonistas são (ou poderiam ser, em alguns casos) as perpetradoras dos
assassinatos ou acidentes causadores de morte. Essas narradoras são
habilidosas, na medida em que estruturam seus relatos conforme seus interesses
em (re)velar o que é possível ou desejável. Romances como O assassinato de Bebê Martê, Às
seis em ponto, Coisas que os homens
não entendem, O que deu pra fazer em
matéria de história de amor e Por
escrito trazem ambiguidades, impossibilidades e instabilidades na
caracterização das personagens-narradoras. Características ainda mais
acentuadas em Deixei lá e vim,
romance também narrado em primeira pessoa, sob a perspectiva de Shirley
Marlone. Suas falas e histórias, cheias de eventos “deixei lá e vim” podem se
referir à identidade masculina anterior de Shirley, uma mulher transexual.
Elvira
Vigna tem arriscado uma forma de representação alternativa para suas
personagens sempre em processo, buscando uma “cara” possível em um mundo que
lhes pede estabilidade e lógica de sexo e de gênero, lembrando da matriz de
inteligibilidade de gênero, teorizada por Judith Butler. As personagens da
escritora ora buscam se tornar “inteligíveis” ora transgridem a matriz. Outras
personagens, narradoras ou não, que apareceram para “incomodar”, dada à sua
raridade no escopo da literatura brasileira contemporânea, foram as negras
Kehinde, Rísia e Ponciá, protagonistas, respectivamente, de Um defeito de cor, de Ana Maria
Gonçalves, de As mulheres de Tijucopapo,
de Marilene Felinto, e Ponciá Vicêncio,
de Conceição Evaristo, como analisou Regina Dalcastagnè, no artigo “Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea”.
Outra problematização das identidades femininas é trazida pelo projeto de autorrepresentação de escritoras lésbicas reunidas em torno da Editora Malagueta, que iniciou
suas atividades em 2008, publicando livros “de lésbicas para lésbicas”. A
simples existência de uma editora assim no Brasil denota a chegada de novos
produtores/as, consumidores/as e agentes no campo literário dialogando com as
mudanças e demandas do campo social em relação à visibilidade de sexualidades
não-hegemônicas, a vincular essa entrada também à militância dos movimentos de
direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros. Seu catálogo é,
majoritariamente, composto de romances de diferentes recortes temáticos, mas
sempre protagonizados por personagens lésbicas, com histórias de amor com
“final feliz”. Aparecem descrições de relações sexuais que não fogem dos
padrões estabelecidos das narrativas eróticas mais habituais, mescladas com
declarações de amor, em alguns momentos.
Os
“finais felizes”, que fazem parte da ideia de representação positiva da
homossexualidade feminina por parte da editora, também têm sido continuamente
celebrados, inclusive com rituais de casamento, como uma reafirmação de um
modelo hegemônico de relacionamentos. Há exceções, como os novos arranjos
familiares do romance As guardiãs da
magia, de Lúcia Facco, que busca resgatar um tempo pré-patriarcal, e também
o de Fátima Mesquita, Amores cruzados,
que traz um final mais aberto, sem a preocupação de definir caminhos para uma
relação recém-iniciada. Vale lembrar que os traços das personagens enfatizam
características socialmente valorizadas, como a beleza (em sua definição mais
padronizada) e juventude. Dada à pouca visibilidade e muito preconceito em
relação às mulheres homossexuais, o catálogo ainda é restrito a poucas
escritoras que, corajosamente, se expõem às mais variadas críticas. Por outro
lado, diante de alguns posicionamentos feministas, em especial os mais
contemporâneos, como analisar o catálogo da Editora Malagueta sem pensar na
rigidez identitária envolvida? Mas como não o fazer, já que existe um projeto
político-militante de uma identidade estigmatizada, que busca estabelecer uma
política da diferença pela auto-organização e afirmação de uma identidade de
grupo?
As
poucas autoras citadas neste texto constroem, com seus diferentes estilos,
possibilidades de representações de gênero. E não só pelas suas personagens,
mas pela sua própria presença como escritoras no campo literário brasileiro.
São, inevitavelmente, “serializadas” como mulheres, e não escapam (algumas até
querem) das incontornáveis marcas de uma sociedade baseada nas diferenças de
gênero. Sempre perguntadas se há algo específico na “autoria feminina”, se se
atrelam ou não à alguma causa política, se são feministas, se entrariam em um texto
como este. Enfim, uma escritora sempre movimentará o campo literário na
perspectiva de gênero, pois está inserida, como já foi dito, na própria
história dessa inserção negociada das mulheres. Uma inserção ainda minoritária,
em termos numéricos, seja em número de publicações, seja em indicações para os
principais prêmios literários. Muitas outras obras e escritoras poderiam ter
sido citadas, dada a ampliação de canais de produção e distribuição. Longe de
esgotar o assunto, o que se pretendeu aqui foi mostrar que, se não há uma
essência para a categoria “mulher”, tampouco há para “escritora brasileira
contemporânea”. Elas possuem
trajetórias e projetos próprios, mas são, inevitavelmente, “serializadas” como
mulheres e não escapam a essa moldura. Caso exista, um atributo compartilhado pelas escritoras é o permanente
conflito com os estereótipos e os preconceitos ainda presentes na sociedade brasileira
na avaliação de qualquer obra na qual apareça um nome de autora em sua
capa.
A versão integral desse texto está publicada na revista Cuadernos Hispanoamericanos, número 752,
de fevereiro de 2013, editada pela Agencia
Española de Cooperación Internacional para el Desarollo.
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