19 de setembro de 2015

Ser uma escritora brasileira contemporânea

Virgínia Maria Vasconcelos Leal

Foto: Regina Dalcastagnè
Em meio a tanta variedade de títulos e nomes que surgiram no mercado editorial brasileiro nos últimos vinte anos, uma reflexão a respeito da inserção das mulheres se impõe. Afinal, é fato que a presença feminina cresceu em muitos setores sociais, políticos e culturais. Mas o que significa ser uma escritora contemporânea no estado atual do campo literário? Nesse sentido, o conceito de campo literário de Pierre Bourdieu mostra-se bastante produtivo, devido a seu diálogo com o campo social. Em sua teoria, as mudanças externas ao campo literário provocam alterações nas posições de seus agentes, ao permitir a chegada de novo/as produtores/as e de consumidores/as no espaço social. E com as conquistas feministas não foi diferente. Ser uma escritora contemporânea, então, é dialogar com a história da inserção das mulheres no campo literário, considerando-se a atuação dos movimentos feministas como força social. Recém-ingressas, em uma perspectiva histórica, até mesmo ao sistema escolar, nomes de mulheres quase não são encontrados em capas de romances, mesmo nos tempos atuais, quando muitos consideram a discussão já ultrapassada.
No escopo das escritoras brasileiras, se feministas ou não, se trabalham questionando ou ratificando os papéis tradicionais de gênero, em diálogo ou não com a categoria de raça e/ou orientação sexual, se querem fazer parte ou negam a existência de uma literatura feminina, isso cada trajetória, cada obra e cada perspectiva crítica poderá responder. Contudo, ao aparecer uma escritora e sua obra, o conceito de gênero, necessariamente, movimenta-se, pois está vinculado ao sistema de significações presentes em uma sociedade. No entanto, pensar uma construção comum de uma representação de gênero para essas autoras seria classificá-las como um grupo com objetivos também comuns? Mas todas têm trajetórias como indivíduos, que geraram obras também individualizadas. Iris Young propõe, então, categorizar o gênero como “serialidade”.  Ela defende que as estruturas de gênero não definem qualidades específicas para as mulheres, mas os fatos sociais e materiais com os quais cada indivíduo deve lidar. Para ela, cada pessoa, subjetiva e empiricamente, relaciona-se com as estruturas de gênero de forma variável. Não há como negar que elas existem, como a divisão sexual do trabalho, a heterossexualidade compulsória, as relações com o corpo, as estruturas linguísticas, entre outras. Para algumas mulheres, em contextos sociais e individuais específicos, outras relações de identidade, como a nacionalidade, a classe, a etnia, podem ser mais definidoras de si mesmas. Por outro lado, mesmo que elas nunca se identifiquem com outras mulheres, o gênero “serializa” a todas, mas de modo particular.
De certa forma, mesmo que não aprovem a categoria de uma “literatura feminina” toda própria, as autoras terminam dialogando com o gênero. As escritoras são sempre perguntadas, por exemplo, se fazem literatura feminina – um termo que emoldura resenhas sobre suas obras e seus posicionamentos a respeito. Ou seja, as escritoras têm que lidar com o seu gênero, seja pela negação ou apropriação. Um exemplo relevante de final do século XX para o XXI foi o fenômeno das antologias de contos. Se, em duas antologias – Geração 90: manuscritos de computador (2001) e Geração 90: os transgressores (2003), organizadas por Nelson de Oliveira e publicadas pela Editora Boitempo – , de 33 escritores reunidos, havia apenas quatro mulheres (Cíntia Moscovich, Simone Campos, Luci Collin e Ivana Arruda Leite), em duas outras, organizadas por Luiz Ruffato e publicadas pela editora Record, o gênero das escritoras foi um dos critérios de escolha: 25 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2004) e Mais 30 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2005).
O próprio fato de existirem antologias como essas já reflete suas contradições. Até que ponto um recorte tão específico (“Mulheres”) não termina por contribuir para a sua própria limitação a um “gueto” editorial, como se não fizessem parte da “literatura geral”? As antologias de contos suscitam questões fundamentais, de difícil resolução. Existem temas exclusivos para as mulheres escritoras tratarem? Será que é o gênero da escritora que a faz dominar (bem) as técnicas narrativas na transformação de uma vivência comum a muitas mulheres em matéria literária? Bem, mulheres foram escolhidas para comporem o volume por serem mulheres.   Estilos e temáticas não foram o critério, mas sim seu gênero. Aí mora toda a complexidade para se pensar uma significação única para uma literatura feita por nós, haja vista tantas possibilidades.
Posto isso, outra resposta problemática, já no campo do romance, relaciona-se à coleção Amores extremos, iniciada em 2001, e também proposta pela Editora Record. Romancistas já conhecidas foram convidadas a escrever sobre aspectos das relações amorosas. Assim, Lívia Garcia-Roza, Marilene Felinto, Heloísa Seixas, Maria Adelaide Amaral, Letícia Wierzchowski, Helena Jobim e Ana Maria Machado foram chamadas a escrever sobre amor em diversas facetas – desacerto, perda, desejo, romantismo, sedução, pecado e tempo (conforme seus subtítulos). Também o gênero “serializou” as escritoras que, por serem mulheres, entenderiam dos ciclos amorosos, segundo a concepção essencialista anunciada pelas orelhas das capas.
Entre os livros da referida coleção, está Solo feminino, de Lívia Garcia-Roza, uma das mais profícuas autoras da virada do milênio. Em muitos de seus romances, como Cine Odeon, Meus queridos estranhos, Meu marido e Milamor, ela representa o enlouquecimento “linguístico” de suas personagens encerradas na unidade familiar tradicional. Ao mesmo tempo que traz novas configurações, suas mães e filhas, em especial, ainda estão em uma impossibilidade de comunicação plena. As suas narradoras são, na maioria das vezes, nada confiáveis, pois vivem a família como uma instituição que as adoece.
Outra escritora, que tem uma produção grande também em contos, Cíntia Moscovich, busca a palavra e a expressão para as experiências-limite de suas personagens, marcadas por uma corporalidade e uma sexualidade não-hegemônica. Mesclando a tradição judaica da narrativa e da memória, mas em uma perspectiva das mulheres em uma estrutura patriarcal em desestabilização (pela morte do pai), seus romances Duas iguais e Por que sou gorda, mamãe? trazem narradoras que buscam uma melhor expressão para seus impasses. Em suas narrativas, estão presentes o corpo e a sexualidade (em especial a diversidade, uma vez que as relações lésbicas também aparecem) bem como a questão da identidade na esfera familiar.
Adriana Lisboa, por sua vez, tem sua prosa classificada por Luciene Azevedo, como representante, em seus termos, da “literatura da delicadeza”, ou seja, seu estilo teria como traços principais a recuperação da memória afetiva, uma escrita apurada e minuciosa, que deteria o tempo narrativo e exporia o olhar sobre os detalhes menores do cotidiano, sem perder a dimensão do relato de uma história. E, assim, longe do imediatismo referencial de uma prosa de vertente realista e brutal, atinge efeitos tão ou mais eficientes como algo tão terrível como o abuso sexual cometido pelo pai a uma de suas filhas, enquanto a outra é a testemunha calada e raivosa, como o faz em Sinfonia em Branco. Nas obras posteriores, Rakushisha, Azul-corvo e Hanói, o sentimento da viagem, da busca pelo pertencimento possível de personagens em deslocamentos, com a família nuclear destroçada, voltam a ser trabalhados, na busca por novas configurações afetivas.
Já a obra de Elvira Vigna tem se destacado com suas personagens em constantes movimentos entre máscaras, identidades e corpos. Ela está concatenada com paradigmas contemporâneos como o da diferença sexual, além dos papéis de gênero, mostrando o lado arbitrário das normas, buscando subverter e questionar tal representação também no nível narrativo e na instabilidade das descrições corporais. Se os corpos são constituídos por distintos discursos e formas de conhecimento, são também um produto cultural que pode (e deve ser) indeterminado – como estratégia para se tentar minar os pares binários que se perpetuam, em sua continuidade normativa. E a narrativa literária pode ser também esse local de indeterminação. Aí se destaca sua obra. Seus romances trabalham em um gênero literário “falsamente” policial. Apesar de suas narrativas poderem ser assim “vendidas”, pois sempre aparecem cadáveres, policiais e crimes, não é a “resolução” de um assassinato o principal mote do enredo.
O foco narrativo de seus romances é, predominantemente, em primeira pessoa e suas protagonistas são (ou poderiam ser, em alguns casos) as perpetradoras dos assassinatos ou acidentes causadores de morte. Essas narradoras são habilidosas, na medida em que estruturam seus relatos conforme seus interesses em (re)velar o que é possível ou desejável. Romances como O assassinato de Bebê Martê, Às seis em ponto, Coisas que os homens não entendem, O que deu pra fazer em matéria de história de amor e Por escrito trazem ambiguidades, impossibilidades e instabilidades na caracterização das personagens-narradoras. Características ainda mais acentuadas em Deixei lá e vim, romance também narrado em primeira pessoa, sob a perspectiva de Shirley Marlone. Suas falas e histórias, cheias de eventos “deixei lá e vim” podem se referir à identidade masculina anterior de Shirley, uma mulher transexual. 
Elvira Vigna tem arriscado uma forma de representação alternativa para suas personagens sempre em processo, buscando uma “cara” possível em um mundo que lhes pede estabilidade e lógica de sexo e de gênero, lembrando da matriz de inteligibilidade de gênero, teorizada por Judith Butler. As personagens da escritora ora buscam se tornar “inteligíveis” ora transgridem a matriz. Outras personagens, narradoras ou não, que apareceram para “incomodar”, dada à sua raridade no escopo da literatura brasileira contemporânea, foram as negras Kehinde, Rísia e Ponciá, protagonistas, respectivamente, de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, de As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, como analisou Regina Dalcastagnè, no artigo “Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea”. 
 Outra problematização das identidades femininas é trazida pelo projeto de autorrepresentação de escritoras lésbicas reunidas em torno da Editora Malagueta, que iniciou suas atividades em 2008, publicando livros “de lésbicas para lésbicas”. A simples existência de uma editora assim no Brasil denota a chegada de novos produtores/as, consumidores/as e agentes no campo literário dialogando com as mudanças e demandas do campo social em relação à visibilidade de sexualidades não-hegemônicas, a vincular essa entrada também à militância dos movimentos de direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros. Seu catálogo é, majoritariamente, composto de romances de diferentes recortes temáticos, mas sempre protagonizados por personagens lésbicas, com histórias de amor com “final feliz”. Aparecem descrições de relações sexuais que não fogem dos padrões estabelecidos das narrativas eróticas mais habituais, mescladas com declarações de amor, em alguns momentos.
Os “finais felizes”, que fazem parte da ideia de representação positiva da homossexualidade feminina por parte da editora, também têm sido continuamente celebrados, inclusive com rituais de casamento, como uma reafirmação de um modelo hegemônico de relacionamentos. Há exceções, como os novos arranjos familiares do romance As guardiãs da magia, de Lúcia Facco, que busca resgatar um tempo pré-patriarcal, e também o de Fátima Mesquita, Amores cruzados, que traz um final mais aberto, sem a preocupação de definir caminhos para uma relação recém-iniciada. Vale lembrar que os traços das personagens enfatizam características socialmente valorizadas, como a beleza (em sua definição mais padronizada) e juventude. Dada à pouca visibilidade e muito preconceito em relação às mulheres homossexuais, o catálogo ainda é restrito a poucas escritoras que, corajosamente, se expõem às mais variadas críticas. Por outro lado, diante de alguns posicionamentos feministas, em especial os mais contemporâneos, como analisar o catálogo da Editora Malagueta sem pensar na rigidez identitária envolvida? Mas como não o fazer, já que existe um projeto político-militante de uma identidade estigmatizada, que busca estabelecer uma política da diferença pela auto-organização e afirmação de uma identidade de grupo?
As poucas autoras citadas neste texto constroem, com seus diferentes estilos, possibilidades de representações de gênero. E não só pelas suas personagens, mas pela sua própria presença como escritoras no campo literário brasileiro. São, inevitavelmente, “serializadas” como mulheres, e não escapam (algumas até querem) das incontornáveis marcas de uma sociedade baseada nas diferenças de gênero. Sempre perguntadas se há algo específico na “autoria feminina”, se se atrelam ou não à alguma causa política, se são feministas, se entrariam em um texto como este. Enfim, uma escritora sempre movimentará o campo literário na perspectiva de gênero, pois está inserida, como já foi dito, na própria história dessa inserção negociada das mulheres. Uma inserção ainda minoritária, em termos numéricos, seja em número de publicações, seja em indicações para os principais prêmios literários. Muitas outras obras e escritoras poderiam ter sido citadas, dada a ampliação de canais de produção e distribuição. Longe de esgotar o assunto, o que se pretendeu aqui foi mostrar que, se não há uma essência para a categoria “mulher”, tampouco há para “escritora brasileira contemporânea”. Elas possuem trajetórias e projetos próprios, mas são, inevitavelmente, “serializadas” como mulheres e não escapam a essa moldura. Caso exista, um atributo compartilhado pelas escritoras é o permanente conflito com os estereótipos e os preconceitos ainda presentes na sociedade brasileira na avaliação de qualquer obra na qual apareça um nome de autora em sua capa. 

A versão integral desse texto está publicada na revista Cuadernos Hispanoamericanos, número 752, de fevereiro de 2013, editada pela Agencia Española de Cooperación Internacional para el Desarollo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.