5 de setembro de 2015

Entre formigas e identidades migratórias

Ricardo Barberena

 

                                                                    Imagem: The World Flag Ant Farm, de Yukinori Yanagi

A 23ª Bienal Internacional de São Paulo, em sua sessão asiática, denominada Universalis, apresentou uma instalação artística que despertou curiosidade e desconforto entre os visitantes do Pavilhão do Ibirapuera. Tratava-se de uma obra, que já havia sido exposta durante a Bienal de Veneza de 1993, intitulada The World Flag Ant Farm (Bandeira Mundial da Fazenda das Formigas). Concebida pelo japonês Yukinori Yanagi, esta instalação reuniu dezenas de caixas de acrílico transparente com grãos pintados de acordo com as bandeiras nacionais. Através de pequenos tubos plásticos, cada caixa se intercomunicava e estabelecia um intenso trânsito de formigas que perambulavam entre os diversos “países”. Numa contínua e gradual progressão, com o passar dos dias, os grãos coloridos começavam a se misturar numa híbrida e policromática textura. Por intermédio dessa metáfora sobre o entre-lugar de uma identidade nacional em migração constante, Yanagi busca refletir sobre a permeabilidade das fronteiras que, como enormes formigueiros, encontram-se habitadas por seres-travessia que gradualmente reorientam as areias coloridas de lugares difusos e plurais.
Ali, no interior daqueles tubos que unem cada caixa de acrílico, dá-se o contato e a mistura de um entre-lugar identitário desdobrado pela porosidade vertiginosa da heterogeneidade espacial e simbólica. É importante ressaltar que os meios de expressão de Yukinori Yanagi se estendem também ao uso de máquinas, néons, brinquedos plásticos, argila e formigas vivas. Recorrendo a estes elementos inusitados, o artista problematiza a suposta fixidez dos limites contenciosos de uma determinada nacionalidade. Em suas incansáveis perambulações, as formigas atestam a derradeira dissolução do imobilismo identitário hegemônico. Os tubos de plástico, enquanto entre-lugares de passagem e aproximação, representam os fluxos multidirecionais de uma diferença cultural em processo de mescla e fragmentação.
Cabe, portanto, a pergunta: estaria o cânone literário estagnado e compartimentado em suas caixas de acrílico? Ou: será que está envolto por múltiplos processos de deslocamento? Ao discutirmos uma determinada literatura, estamos, conjuntamente, focalizando um capital cultural que se encontra nacionalizado por intermédio de uma marca estrutural e conceitual: a língua nacional. Enquanto elemento de identidade nacional, a língua acaba se constituindo como símbolo de identidade que perpassa as esferas políticas e culturais. Como evidente consequência dessa inter-relação entre literatura e língua nacional, o estatuto literário passa a ser utilizado como instrumento de manutenção de certa razão política e de uma identidade nacional, supostamente comum a todos os falantes nativos. Na sua condição de difusora do idioma nacional, a literatura, ao longo dos séculos, foi entendida como um espaço simbólico capacitado a conjugar os limites e os fundamentos de uma estética e de uma identidade nacional, afinal, numa primeira instância, torna-se bastante convincente uma associação entre Estado e literatura.
Na contramão da artificial unidade da identidade nacional, articula-se a micropolítica do cotidiano na qual os referenciais identitários se recriam – a cada instante – por intermédio de símbolos que denunciam o modo de ser/agir de determinado segmento social: o conjunto de índices culturais que revelam o que estes indivíduos vestem, ouvem, leem, fumam. Em outras palavras, poderíamos advogar que o cânone literário não se encontra resumido a uma essência determinista que oferece as diretrizes para uma “verdadeira” brasilidade, mas, sim, ao conjunto de posições-de-sujeito que interagem nas redes de poder da constituição de uma identidade simbólica e social. Entretanto, apesar de discordarmos de uma perspectiva essencialista, não há como negar que estes discursos totalizadores podem ser historicizados num passado de muitas lutas em prol de uma determinada hegemonia, que, em muitos casos, serve de alicerce para a construção de novas identidades e novos (velhos?) discursos unificadores e reacionários investidos pela equação coercitiva do “todos em um”.  Desse modo, tal legado canônico também é mote de sustentação de muitas identidades nacionalistas e fundamentalistas, que, em diversos lugares do globo terrestre, acarretam em sérios conflitos políticos e religiosos.
Como desacreditamos na fixidez e na imutabilidade das identidades nacionais, entendemos que estes revivals essencialistas fazem parte do campo de forças políticas que se encontra tencionado entre uma transnacionalização em marcha e uma notoriedade midiática de certos guetos de resistência fundamentalista e totalizadora. Tão débil quanto programático, o cânone essencialista, que associa a identidade nacional à pureza étnica e às relações de parentesco imanente, cai por terra, cada vez mais, no andamento dos processos de reterritorialização e (re)definição de fronteiras identitárias e culturais, conforme as (trans)nações atravessadas por constantes representações diaspóricas de valores cambiantes e parciais.
Enquanto construto simbólico, a identidade nacional se comporta – prosseguimos distantes daquela perspectiva essencialista – como um elemento relacional que pode vir a estabelecer contatos de aproximação e diferença diante outros significados estrangeiros. Mas isso, em absolutamente nada, impede o trânsito de múltiplos agentes sociais no interior de um espaço nacional fragmentado e intersecionado por diferentes grupos de pertencimentos de classe, raça, gênero, nacionalidade. Como se sabe de longa data, muitos postulados totalizadores, que reivindicavam uma identidade nacional homogênea, acabam por desencadear a supressão das diferenças de gênero e classe. Para que não se avalize o silenciamento de certo segmento social, uma assertiva, então, deve ser tomada como ponto de partida: os cânones Literários não são unificados.
Quanto aos argumentos pautados na defesa de uma identidade nacional unificada, repetem-se, usualmente, os discursos alinhados à existência de um passado histórico [teoricamente] compartilhado por todos os membros da nação. No entanto, quando observamos essa herança “em comum”, notamos a presença de uma determinada perspectiva de classe dominante que orquestra uma série de significados e símbolos nacionais de acordo com os interesses políticos e sociais, formando-se, na tessitura desse passado representado [inventado], uma malha de posições-de-sujeito que pode/deve ser excluída ou legitimada em nome da unidade de uma dada brasilidade. Propagar e exigir uma cultura e um passado em comum, acaba por evidenciar uma estratégia discursiva na tentativa da difusão de um cânone homogêneo, pois, ao se reduzir os membros de um cenário social e cultural, pode-se manipular uma única verdade nacional capacitada a responder e traduzir uma identidade parcial em constante (re)construção. O que está por trás dessa suposta unificação simbólica é a tentativa de ofuscar a inquietante problemática da fluidez e da mutabilidade identitária: há como encontrar uma identidade canônica fixa?
Ao se pensar a sistematicidade da articulação de identidades nacionais, torna-se eminente a necessidade de que também discutamos como se dá o processo de representação enquanto prática de significação que produz significados sobre a nossa cultura, nossa posição de sujeito, nossa condição social – em última instância, nossa identidade. Assim sendo, estes sistemas simbólicos, derivados do meio de representar uma dada realidade nacional, apresentam-se vinculados às formas discursivas que possibilitam a aplicação de um sentido à nossa identidade coletiva e individual. E é essa engrenagem da representação, entendida como processo cultural, que viabilizará uma infinita – e sempre inacabada – instância de manifestações sociais e culturais de uma identidade nacional difusa.
Continuando nessa bricolagem entre identidade e representação, deveríamos, ainda, dizer que são justamente os sistemas de representação que deflagram um lugar discursivo e simbólico de onde os membros [de uma nação, comunidade, grupo] podem fixar o seu locus enunciativo, o seu terreno de lutas, as suas causas e pertencimentos. A análise sobre a formação das identidades nacionais, portanto, deve ultrapassar aqueles discursos evocativos de um passado formado por mitologias e origens nacionais em consonância com valores homogeneizados da terra natal. Frente à fragmentação política e social do presente, torna-se evidente a fragilidade do desejo pela reafirmação de uma unidade canônica que ofereça um mecanismo de exclusão de certos grupos minoritários e marginais.
Assim, parece bastante plausível que analisemos o cânone pós-colonial como produto da imaginação/representação de um presente/passado vivenciado por uma gama de experiências particulares que, muitas vezes, são tomadas como herança coletiva. Esta identidade parcial revela o seu caráter de imaginação quando vêm à tona diferentes versões sobre aquele passado nacional tido como autêntico e unificado, conforme pode ser percebido nos inúmeros relatos resgatados à sombra da história oficial – nos mais variados campos de representação (literatura, oralidade, fotografia, cinema, antropologia etc.). Dentre a escuridão desse legado excluído e demonizado, surge um feixe de identidades que aponta para uma diversidade étnica e cultural incompatível com as tentativas de unificação de uma história comum para todos e escrita por poucos.
Deve-se trilhar, portanto, uma discussão crítica atenta à constante revisão de um passado nacional conjugado por uma identidade declinada no “nós” – leia-se: nós brasileiros, das classes dominantes, brancos. Em vez de acreditarmos num cânone literário centrado em um único núcleo de identidade fixa, investimos na hipótese teórica que avalia as sociedades modernas enquanto comunidades atravessadas por uma pluralidade de centros em constantes “deslocamentos ”. E é esta multiplicidade de centros de poder que possibilita a emergência de diferentes lugares de representação de variados sujeitos, inseridos numa identidade nacional intercambiante nas diversas arenas de conflito social.
Não há como negar que a postulação sobre uma brasilidade – ou uma argentinidade, por exemplo – está associada pelas formas de interação que perpassam uma representação enunciada/produzida a partir de um lugar nômade em travessia pelos diferentes pertencimentos de raça, sexualidade, classe, região, religião, idade etc. Como as identidades também são formadas por práticas sociais, torna-se viável uma circulação entre muitas manifestações simbólicas, marcadas socialmente, que possibilitam um sentido para uma experiência entre as plurais posições-de-sujeito desviantes dos discursos dominantes.
Ao colocar na berlinda o cânone soberano, propomos, como consequência inadiável, uma releitura das identidades renegadas às margens do ser/estar periférico e exótico, condição alijada de uma política da diferença que possa desconstruir as supostas estabilidades das oposições binárias entre o nós/eles, a civilização/barbárie, o cidadão patriótico/estrangeiro. Face à derrocada das certezas absolutas de um passado nacional unificado, percebe-se, em alguns segmentos do status quo vigente, um certo sentimento de temor perante o colapso daquelas antigas verdades fundamentais que buscavam a normatização de uma política de apego às raízes étnicas e territoriais.
A partir do momento que se analisa a marcação da diferença enquanto elemento-chave no mecanismo de construção da identidade, a fixidez dos sistemas simbólicos acaba caindo em descrédito devido à exposição da contingência de uma identidade nacional minada pelos múltiplos fóruns de debates de pertencimentos locais, globais, pessoais, sexuais. Nesse sentido, esta fragmentação identitária passa a ser refletida por sistemas simbólicos de representação que se encontram atravessados por marcações da diferença social e cultural: quanto mais se procurar elementos inerentes de uma nacionalidade mais se fortalecerá o retorno dos significados obscurecidos pela pecha da não-autenticidade e da não-essencialidade. Quanto ao questionamento de uma rede de significados “compartilhados” e unificados por uma dada identidade nacional, cabe, aqui, salvaguardar que esta antitotalização simbólica não elimina, em absoluto, um certo grau de consenso entre os indivíduos participantes de determinada comunidade.

Essa frágil unidade identitária, superficialmente partilhada, acaba se tornando, muitas vezes, um nicho simbólico muito adequado para a criação de afirmações essencialistas e totalizadoras: no afã classificatório, os estereótipos encontram um fértil terreno de absolutizações (“os brasileiros são cordiais, exóticos, sexuais, comunicativos”). Ponderar a ocorrência de certos traços identitários comuns não significa que se admita uma lógica celebratória da não-heterogeneidade. Se pensarmos, para efeito de exemplificação, numa brasilidade declinada por um profundo sentimento de “cordialidade”, teremos, obrigatoriamente, que indagar e desconstruir tal construto psíquico-identitário: de que lugar social e político é representada a condição ser/estar cordial e domesticado? A quem interessa esse discurso da cordialidade e da docibilidade? Todos os grupos sociais (e seus respectivos espaços de poder) compartilham esse estigma de querido bom-selvagem, acomodado frente aos espetáculos de massacre social do maravilhoso mundo novo? Cordiais, bons anfitriões, seguimos, todos, digerindo as nossas porções de ração afetiva?

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