Ricardo Barberena
Imagem: The World Flag Ant Farm, de Yukinori
Yanagi
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A 23ª Bienal Internacional de São
Paulo, em sua sessão asiática, denominada Universalis,
apresentou uma instalação artística que despertou curiosidade e desconforto
entre os visitantes do Pavilhão do Ibirapuera. Tratava-se de uma obra, que já
havia sido exposta durante a Bienal de Veneza de 1993, intitulada The World Flag Ant Farm (Bandeira
Mundial da Fazenda das Formigas). Concebida pelo japonês Yukinori Yanagi, esta
instalação reuniu dezenas de caixas de acrílico transparente com grãos pintados
de acordo com as bandeiras nacionais. Através de pequenos tubos plásticos, cada
caixa se intercomunicava e estabelecia um intenso trânsito de formigas que
perambulavam entre os diversos “países”. Numa contínua e gradual progressão,
com o passar dos dias, os grãos coloridos começavam a se misturar numa híbrida
e policromática textura. Por intermédio dessa metáfora sobre o entre-lugar de
uma identidade nacional em migração constante, Yanagi busca refletir sobre a
permeabilidade das fronteiras que, como enormes formigueiros, encontram-se
habitadas por seres-travessia que gradualmente reorientam as areias coloridas
de lugares difusos e plurais.
Ali, no interior daqueles tubos
que unem cada caixa de acrílico, dá-se o contato e a mistura de um entre-lugar
identitário desdobrado pela porosidade vertiginosa da heterogeneidade espacial
e simbólica. É importante ressaltar que os meios de expressão de Yukinori
Yanagi se estendem também ao uso de máquinas, néons, brinquedos plásticos,
argila e formigas vivas. Recorrendo a estes elementos inusitados, o artista
problematiza a suposta fixidez dos limites contenciosos de uma determinada
nacionalidade. Em suas incansáveis perambulações, as formigas atestam a
derradeira dissolução do imobilismo identitário hegemônico. Os tubos de
plástico, enquanto entre-lugares de passagem e aproximação, representam os
fluxos multidirecionais de uma diferença cultural em processo de mescla e
fragmentação.
Cabe, portanto, a pergunta:
estaria o cânone literário estagnado e compartimentado em suas caixas de
acrílico? Ou: será que está envolto por múltiplos processos de deslocamento? Ao
discutirmos uma determinada literatura, estamos, conjuntamente, focalizando um
capital cultural que se encontra nacionalizado por intermédio de uma marca
estrutural e conceitual: a língua nacional. Enquanto elemento de identidade
nacional, a língua acaba se constituindo como símbolo de identidade que
perpassa as esferas políticas e culturais. Como evidente consequência dessa
inter-relação entre literatura e língua nacional, o estatuto literário passa a
ser utilizado como instrumento de manutenção de certa razão política e de uma
identidade nacional, supostamente comum a todos os falantes nativos. Na sua
condição de difusora do idioma nacional, a literatura, ao longo dos séculos,
foi entendida como um espaço simbólico capacitado a conjugar os limites e os
fundamentos de uma estética e de uma identidade nacional, afinal, numa primeira
instância, torna-se bastante convincente uma associação entre Estado e
literatura.
Na contramão da artificial
unidade da identidade nacional, articula-se a micropolítica do cotidiano na
qual os referenciais identitários se recriam – a cada instante – por intermédio
de símbolos que denunciam o modo de ser/agir de determinado segmento social: o
conjunto de índices culturais que revelam o que estes indivíduos vestem, ouvem,
leem, fumam. Em outras palavras, poderíamos advogar que o cânone literário não
se encontra resumido a uma essência determinista que oferece as diretrizes para
uma “verdadeira” brasilidade, mas, sim, ao conjunto de posições-de-sujeito que
interagem nas redes de poder da constituição de uma identidade simbólica e
social. Entretanto, apesar de discordarmos de uma perspectiva essencialista,
não há como negar que estes discursos totalizadores podem ser historicizados
num passado de muitas lutas em prol de uma determinada hegemonia, que, em
muitos casos, serve de alicerce para a construção de novas identidades e novos
(velhos?) discursos unificadores e reacionários investidos pela equação
coercitiva do “todos em um”. Desse modo,
tal legado canônico também é mote de sustentação de muitas identidades
nacionalistas e fundamentalistas, que, em diversos lugares do globo terrestre,
acarretam em sérios conflitos políticos e religiosos.
Como desacreditamos na fixidez e
na imutabilidade das identidades nacionais, entendemos que estes revivals essencialistas fazem parte do
campo de forças políticas que se encontra tencionado entre uma
transnacionalização em marcha e uma notoriedade midiática de certos guetos de
resistência fundamentalista e totalizadora. Tão débil quanto programático, o cânone
essencialista, que associa a identidade nacional à pureza étnica e às relações
de parentesco imanente, cai por terra, cada vez mais, no andamento dos
processos de reterritorialização e (re)definição de fronteiras identitárias e
culturais, conforme as (trans)nações atravessadas por constantes representações
diaspóricas de valores cambiantes e parciais.
Enquanto construto simbólico, a
identidade nacional se comporta – prosseguimos distantes daquela perspectiva
essencialista – como um elemento relacional que pode vir a estabelecer contatos
de aproximação e diferença diante outros significados estrangeiros. Mas isso,
em absolutamente nada, impede o trânsito de múltiplos agentes sociais no
interior de um espaço nacional fragmentado e intersecionado por diferentes
grupos de pertencimentos de classe, raça, gênero, nacionalidade. Como se sabe
de longa data, muitos postulados totalizadores, que reivindicavam uma
identidade nacional homogênea, acabam por desencadear a supressão das
diferenças de gênero e classe. Para que não se avalize o silenciamento de certo
segmento social, uma assertiva, então, deve ser tomada como ponto de partida: os
cânones Literários não são unificados.
Quanto aos argumentos pautados na
defesa de uma identidade nacional unificada, repetem-se, usualmente, os
discursos alinhados à existência de um passado histórico [teoricamente]
compartilhado por todos os membros da nação. No entanto, quando observamos essa
herança “em comum”, notamos a presença de uma determinada perspectiva de classe
dominante que orquestra uma série de significados e símbolos nacionais de
acordo com os interesses políticos e sociais, formando-se, na tessitura desse
passado representado [inventado], uma malha de posições-de-sujeito que
pode/deve ser excluída ou legitimada em nome da unidade de uma dada
brasilidade. Propagar e exigir uma cultura e um passado em comum, acaba por
evidenciar uma estratégia discursiva na tentativa da difusão de um cânone
homogêneo, pois, ao se reduzir os membros de um cenário social e cultural,
pode-se manipular uma única verdade nacional capacitada a responder e traduzir
uma identidade parcial em constante (re)construção. O que está por trás dessa
suposta unificação simbólica é a tentativa de ofuscar a inquietante
problemática da fluidez e da mutabilidade identitária: há como encontrar uma
identidade canônica fixa?
Ao se pensar a sistematicidade da
articulação de identidades nacionais, torna-se eminente a necessidade de que
também discutamos como se dá o processo de representação enquanto prática de
significação que produz significados sobre a nossa cultura, nossa posição de
sujeito, nossa condição social – em última instância, nossa identidade. Assim
sendo, estes sistemas simbólicos, derivados do meio de representar uma dada
realidade nacional, apresentam-se vinculados às formas discursivas que
possibilitam a aplicação de um sentido à nossa identidade coletiva e individual.
E é essa engrenagem da representação, entendida como processo cultural, que
viabilizará uma infinita – e sempre inacabada – instância de manifestações
sociais e culturais de uma identidade nacional difusa.
Continuando nessa bricolagem
entre identidade e representação, deveríamos, ainda, dizer que são justamente
os sistemas de representação que deflagram um lugar discursivo e simbólico de
onde os membros [de uma nação, comunidade, grupo] podem fixar o seu locus enunciativo, o seu terreno de
lutas, as suas causas e pertencimentos. A análise sobre a formação das
identidades nacionais, portanto, deve ultrapassar aqueles discursos evocativos
de um passado formado por mitologias e origens nacionais em consonância com
valores homogeneizados da terra natal. Frente à fragmentação política e social
do presente, torna-se evidente a fragilidade do desejo pela reafirmação de uma
unidade canônica que ofereça um mecanismo de exclusão de certos grupos
minoritários e marginais.
Assim, parece bastante plausível
que analisemos o cânone pós-colonial como produto da imaginação/representação
de um presente/passado vivenciado por uma gama de experiências particulares
que, muitas vezes, são tomadas como herança coletiva. Esta identidade parcial
revela o seu caráter de imaginação quando vêm à tona diferentes versões sobre
aquele passado nacional tido como autêntico e unificado, conforme pode ser
percebido nos inúmeros relatos resgatados à sombra da história oficial – nos
mais variados campos de representação (literatura, oralidade, fotografia,
cinema, antropologia etc.). Dentre a escuridão desse legado excluído e
demonizado, surge um feixe de identidades que aponta para uma diversidade
étnica e cultural incompatível com as tentativas de unificação de uma história
comum para todos e escrita por poucos.
Deve-se trilhar, portanto, uma
discussão crítica atenta à constante revisão de um passado nacional conjugado
por uma identidade declinada no “nós” – leia-se: nós brasileiros, das classes
dominantes, brancos. Em vez de acreditarmos num cânone literário centrado em um
único núcleo de identidade fixa, investimos na hipótese teórica que avalia as
sociedades modernas enquanto comunidades atravessadas por uma pluralidade de
centros em constantes “deslocamentos ”. E é esta multiplicidade de centros de
poder que possibilita a emergência de diferentes lugares de representação de
variados sujeitos, inseridos numa identidade nacional intercambiante nas
diversas arenas de conflito social.
Não há como negar que a
postulação sobre uma brasilidade – ou uma argentinidade, por exemplo – está
associada pelas formas de interação que perpassam uma representação
enunciada/produzida a partir de um lugar nômade em travessia pelos diferentes
pertencimentos de raça, sexualidade, classe, região, religião, idade etc. Como
as identidades também são formadas por práticas sociais, torna-se viável uma
circulação entre muitas manifestações simbólicas, marcadas socialmente, que
possibilitam um sentido para uma experiência entre as plurais
posições-de-sujeito desviantes dos discursos dominantes.
Ao colocar na berlinda o cânone soberano,
propomos, como consequência inadiável, uma releitura das identidades renegadas
às margens do ser/estar periférico e exótico, condição alijada de uma política
da diferença que possa desconstruir as supostas estabilidades das oposições
binárias entre o nós/eles, a civilização/barbárie, o cidadão
patriótico/estrangeiro. Face à derrocada das certezas absolutas de um passado
nacional unificado, percebe-se, em alguns segmentos do status quo vigente, um
certo sentimento de temor perante o colapso daquelas antigas verdades
fundamentais que buscavam a normatização de uma política de apego às raízes
étnicas e territoriais.
A partir do momento que se
analisa a marcação da diferença enquanto elemento-chave no mecanismo de
construção da identidade, a fixidez dos sistemas simbólicos acaba caindo em
descrédito devido à exposição da contingência de uma identidade nacional minada
pelos múltiplos fóruns de debates de pertencimentos locais, globais, pessoais,
sexuais. Nesse sentido, esta fragmentação identitária passa a ser refletida por
sistemas simbólicos de representação que se encontram atravessados por
marcações da diferença social e cultural: quanto mais se procurar elementos
inerentes de uma nacionalidade mais se fortalecerá o retorno dos significados
obscurecidos pela pecha da não-autenticidade e da não-essencialidade. Quanto ao
questionamento de uma rede de significados “compartilhados” e unificados por
uma dada identidade nacional, cabe, aqui, salvaguardar que esta antitotalização
simbólica não elimina, em absoluto, um certo grau de consenso entre os
indivíduos participantes de determinada comunidade.
Essa frágil unidade identitária,
superficialmente partilhada, acaba se tornando, muitas vezes, um nicho
simbólico muito adequado para a criação de afirmações essencialistas e
totalizadoras: no afã classificatório, os estereótipos encontram um fértil
terreno de absolutizações (“os brasileiros são cordiais, exóticos, sexuais,
comunicativos”). Ponderar a ocorrência de certos traços identitários comuns não
significa que se admita uma lógica celebratória da não-heterogeneidade. Se
pensarmos, para efeito de exemplificação, numa brasilidade declinada por um
profundo sentimento de “cordialidade”, teremos, obrigatoriamente, que indagar e
desconstruir tal construto psíquico-identitário: de que lugar social e político
é representada a condição ser/estar cordial e domesticado? A quem interessa
esse discurso da cordialidade e da docibilidade? Todos os grupos sociais (e seus
respectivos espaços de poder) compartilham esse estigma de querido
bom-selvagem, acomodado frente aos espetáculos de massacre social do
maravilhoso mundo novo? Cordiais, bons anfitriões, seguimos, todos, digerindo
as nossas porções de ração afetiva?
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