29 de agosto de 2015

Pode ligar o chuveiro?

Allan da Rosa

Imagem: Basquiat
O padrão de poste exigido pela prefeitura agora tem que ter 1 metro e 60. Caixa de frente pra rua, com 15 centímetros de teto. Se tiver 10, não lê tua luz. Multa e corta.
Antes era até relógio grudado com fita isolante, chiclete emendando vidro, palito de fósforo escorando. Tudo de madeira, chamuscada tinha uma porção com as gravuras do curto-circuito esparramadas na taubinha. Mas sem roubalheira. Honestidade e boa vontade pro serviço do rapaz que, cortando chuva ou comendo sol, todo mês marcava o consumo do quintal. Agora, qualquer frescura o patrício não confere sua luz. 
A caixa de energia ali, no banheiro de tomar banho, que o de urinar é na outra banda do quintal. Assim, quando cai a luz é só esticar bem o braço que dá pra levantar a chave de novo na pontinha do dedo. Mete uma sandália de borracha e volta pra tirar o sabão. É, respinga. Choque? Não, ainda não. Eu não.
Aqui antes de tomar banho tem que gritar se alguém noutra casa lá embaixo tá no chuveiro. Senão é queda. Sem novela, sem jogo, sem lâmpada. Banho gelado de cano. Penumbra, silêncio e vulto. Comprou vela?

TEM ALGUÉM TOMANDO BANHO AÊ!?
Limpar o doce, tirar essa pegalança no couro.
É Valdeci entrar no metrô e todo povo empina o nariz, fareja de onde vem esse aroma pesado, vapor enjoativo que impregna o vagão. Nhaca de açúcar.
Valdeci comanda o bolero de uma banca de churros. Tem de doce de leite, de chocolate e tem de catupiry pra passar no queijo ralado. Esse estraga fácil, um tubo por dia. Também vende favos e crepes. Guloseimas na saída dos colégios pagos em euro, herdeiros lotando a barraca exigem capricho no recheio. Brasão restrito no uniforme e gula vigiada pelo motorista particular.
E ele em casa é o burguês, trabalha em horário de galeria e não madruga pra sair. Atravessa o bairro do Almeirão, embarca no metrô Jabaquara e meio-dia levanta a porta. Minhoqueiro vai pelos debaixos do metrô, vocação toupeira, depois formiga na lida com o açúcar. Doce a vida. Mas bem antes de entrar em vagão, mesmo antes de pisar no tapetinho da cama, já se levanta com as dobras do braço se grudando. No pescoço parece ter cola.
Põe mais doce de leite aí! Enche pra mim, quero escorrendo, deixa de ser miserável!
Ontem uma guriazinha tirando em francês, as colegas mangando do servente. Nem atinou se era churro ou era favo, se era pernil ou era jiló o que ela queria. Mas ordenava, postura natural. Clientela poliglota de 12 anos de idade. Churro, cherrí? Vou botar mais sim, mademoizéli. Virar de costas e no desbaratino soltar uma bolota de catarro, antes do ápice de doce de leite. Tuf! Como se baleasse uma vira-lata. Toma. Sem troco, o sorriso é de graça, maior sapiência é a humildade. Vai com Deus. Obrigado. Como vovó Esperança ensinou.
Na lida o que não falta é gente e situação. Pra Valdeci o dia inteiro de pé, joia é deixar água cair pelando no tornozelo, escaldar na bacia com capim limão e flor de laranjeira.
Esfrega, quase se lixa, mas dá sábado, dá domingo e esse açúcar não larga nas dobrinhas do braço. Humilhação grudada, raiva peguenta, até atrás do joelho fica melando, entra por baixo do avental e da calça. Como chega ali esse açúcar?
Regula torneirinha, deixa morno... cachoeira... relaxo... um travesseiro dessa espuma, uma sereia conversando em mineirês benguela, aquele que a bisa às vezes solta falando sozinha. Sereia fitando seu churro, a ponta doce em Mongaguá... madrugada e mistério, mergulhar.
Cochila, acorda engasgado. Pelo vitrô sai a nuvem de capim limão e o grito pro quintal: – Já fechei! Pode ligar aí em cima!

TÔ LIGANDO O CHUVEIRO!
Nefertiti se dedilha. Violê, violá. Ai o galãzinho gostoso... ofertou pra ele um botão de melzinho, o que a professora dá na entrada da biblioteca pra degustar com livro. Nefertiti leitora viajante, imagina luas e tochas, toras e estripulias. Sonha a garupa ansiosa, os dois afastando cipó e pisando fino pra não chutar a escuridão, não trupicar na queda enquanto adentram o terreno baldio no fim da rua da padaria. Ali a madrugada chupando a febre, mordendo o peito do pássaro.
Se afaga, afoga, se afofa. Chuááá, sabonete de canela, safadelícia.
O mel que deu é o mel que sorve. Lábio desbravando os pelos do peito do galãzinho, os braços por dentro, o bafo emplumando por trás, Nefertiti arrebitada se oferece à encoxação, virilha trepida, nervo contrai. Seu gemido é canto de ave sobre o mar. A bunda rodando na viga. Rigidez do caule. A estocada, o acolhimento. A textura da vara gravada no beiço. Corredeiras. Lambuz. Sussurra e segura seu uivo no banho, tem discrição seu vulcão. A toalha pendurada na chave defende a fechadura dos espiões. Dá um tremelique, é o céu na ponta do dedo. Sino badala as seis horas da Ave Maria! Tem uma amiga com a bundinha sentada à sua frente na escola. A penugem da nuca... Como atenção na aula? Sabe que a colega posiciona a chana na beira da cadeira e rala a fricção, flutua elétrica. No fundão da sala finta a aula de biologia... e vem o gemidin. Assanha o tecido muscular, o sistema nervoso... Pôs o brinco na colega. Tó, pra você... posso colocar? A mesma mão que agora se explora. Segurou seu inflame pra não lamber aquela pontinha de orelha. Mamilo eriçado, duro, pedrinha de lagoa. O jato descendo nas coxas, mangueira diverte. Vestido suado é pano que desembaça o espelho e o corpo atiçado volta pra água pra se ver, mirar gozoso o vale entre os peitinhos, ali enxurrada. Hummm, tua língua em meu suvaco, os bicos nas costas, coladinha, circula na minha barriga o sabonete de canela, o encontro será atrás da quadra e já é no desenho da espuma, na sanha do dedo do anel, nu anel. 
Água quente invadindo o lábio, caldosa, borbulhosa.
Espuma dissolve. Primeiro o rodo triscando nas bordas, depois o chuveirinho encaixado no rego. Galopa. Um pé pisa no outro, o dedão aperta o mindiiiiiii.. aiiii  aiaiaiai   que saboroso  ai, me pega gata hummmmm  me língua, amigo.  Umbigo ensopado   tchec tchec  Desliza nas virilhas o sabonete barulhin Hummmm  A  barrig   BLAM BLAM BLAM!  Quer sair daí, ô Nefertiti da Glória da Silva! Só você que tem pra tomar banho, madame?
Porta balança mas trinco não cede. Enxugar rápido, tá atrasando pra escola. Bisavô tem que entrar também. Quem dá banho nele hoje? Ele teimando em se limpar sozinho mas e se escorregar? Molecada toda desse quintal ainda pra banhar, dormir cheiroso os erês. Bisavô Tebas imagina os meus caldos? A correnteza quentinha? Desconfia a demora? Ali tem experiência...
Que azulejo gelado. Sair de cabelo molhado nesse sereno. Na escola há de sapecar um chameguin na musa, narina no jardim da nuca. A amiga namorando um pagodeiro nem se imagina no dedo alheio, quer é vareta grossa, aquidavi ligeiro.
Cadê toalha? Pelada pingar até o varal. Resvala na mãe, é Dona Ceci possessa berrando com o cachorro que explode latição. Balbúrdia cega. Banhando também, a mascote morde mangueira, chacoalha seus pelos espumados e encharca Dona Ceci.

ALGUÉM ME ABRE O CHUVEIRO AQUI, POR FAVOR?
Pedreiro considerado foi o bisavô, Seu Tebas de Jenê. Nenhuma casa que fez há 30 anos precisou reforma. Furava cada tijolinho dos muros e chapiscava dentro. Não tem degrau de escada feito por sua colher que tenha rachado, procure quem quiser. Dizem as noras que construção hoje, com dois meses de feitura, o cimento já lascou tudo na ponta, fiação umedeceu, é um tal de porta empenada e empoçamento, fácil. Pra voltar e cobrar conserto. Muro dura nem três anos e bambeia, trinca ou arreia. Três temporais de validade.
Ele sabia manejar o clima nos cômodos, deixar aquecido na invernia e fresquinho quando brasava o verão. Dominava lápis, alicate e peneira, até arquiteto pedia sua opinião. Alguns ainda vem e convencem a sair, empurram sua cadeira de rodas pelas praças antigas do bairro do Catalônia, ninguém mexe não... tá com o bisa, tá com o ganga. E também rodam lá pela nobreza do Parque Granola. Quarteirões inteiros onde qualquer parede caiada teve estudo e toque do bisavô. Tantos bangalôs, tantas mansões assinadas por escritório de arquitetura...
A tia Ceci era menininha ainda e ruminava o nojo de beijar sua mão na porta da escola, de pedir bença encardida. Um dia confessou, pura, tadinha. Pediu pra não acarinhar a cabeça também, sua unha de encher laje era a comédia das amiguinhas. Peão. Porqueira. Vergonha do esmalte de cimento.
Don Tebas de Jenê pesquisou sabão, campeou xampu que dissolvesse o vexame escombroso da sua filha... uma semana sem ler sobre construção. E chegou mesmo foi no sabão de coco. Mais a ponta de canivete futricando unha debaixo da água quente.
Restou esse descabelo de esfregar os dedos até sangrar. Se tivesse força... mas nem alho hoje pica mais, nem casinha de baralho sua tremura güenta montar. E esse sestro não perdeu.
Desligar pras crianças tomar banho. Única infiltração em sua viga é a querença de trabalhar, corrosão no tédio que espeta a costela.
Bonito a erezada brincando. Don Tebas escuta a inocência e filtra ali o verdadeiro da passagem. Tem hora que pouco importa quem vai lhe dar o comprimido e limpar seu fraldão.
...
Mas limpar minha bunda e minha ferida na perna eu faço sozinho!

TEM ALGUÉM SE LAVANDO AÊ?
Que esperar esse povo todo o quê! Ivair esquenta na panela e enche bacia, uma dá conta. Precisa mais? Nesse frio ficar morgando? Ensaboou, esfregou, virou cada caneca e pronto. Acostumou.
Tem vez que ninguém tá banhando mas Vó Esperança não deixa entrar, vigia pro Bira bajulado.
Sabonete puro corante, escorre o azul. A promessa da pele do cartaz. Ivair contou moedas e levou a promoção, comprou cinco sabonetes e ganhou a escova dos dentes dos craques. No ralo, na embalagem manchada, esfarela-se o peito da atriz chamariz. Não é o mesmo que devotava à mãe de tardinha quando a reconhecia no portão da creche e largava a clausura. Aquela alegria traçada na cara, no reencontro, nostalgia que perdeu brilho na borracha da adolescência. Berros de Dona Ceci foram caneta e sua borracha não deu conta.
Caneca no balde e sabonete de luxo na beira da janela, a embalagem puída fica na poça com seu sorriso desmanchado, cariado.
Ô diacho, não tem uma camisa limpa nessa joça!
Vai pra rua tomar um quente, no boteco um remédio, caçar assunto. Ivair sai sem camisa, os pelos enroscando no vento. Pode. Fosse a atriz da embalagem ou a mãe da creche, expostas as mamas de mamar nenê, seria até escalpelado.

TEM ALGUÉM COM CHUVEIRO LIGADO AÍ EM CIMA?
Esfrego água sanitária no pescoço. Clarear.
Girei no torcicolo pra ver o gibi na carteira da desgramenta. Fica escondendo, regulando, deixa só um téquinho pra aguar eu. Diz que o pai lê revistinha pra ela no almoço e antes de deitar. Mentirosa. Diz que ele contou estória da bailarina que dança de ponta cabeça. Branquinha. E que eu era igual o dragão do mato.
Com cândida esfrego, arranho, esfolo cotovelo e joelho. Se funcionar vou usar no cabelo também. A bucha com sementes é daqui do quintal mesmo, áspera, minha bisa plantou e colheu. Meu Deus, me ajuda! Ficar a princesa do gibi, a rainha do prézinho.
Rolaram no chão de tanto me aloprar. As três fantasmas gargalhando no pátio que se encostarem em mim vão ficar imundiça. Professora viu. Na reunião falou pra minha mãe que não tem nada com isso, negócio dela é dar aula, vão na secretaria vocês. Lá mandaram falar com a inspetora.
O menino firmou que comigo não faz par na quadrilha. Nem adianta chorar.
Ai... já tô em carne viva.
Vou chutar o nariz daquela viada! Igual minha vó Ceci me chama. Viada! Vou quebrar os dentes. Mas e se depois nenhuma ali quiser mais ser minha amiga?


AQUI TÁ GOTA A GOTA!
Bisavó, Dona Esperança reza pra comer, sem ódio, apenas saudando a natureza e os trabalhadores que encaminharam comida pra sua mesa. A bisa carrega seus 77 anos e é Aquário, mas podem ser 79 e Capricórnio. Desde Bálsamo, seu arraial de nascença, até o cartório de Água de Ferro era tanto chão que registrar ficava pro talvez. E quando seu pai arriou da sela pra tirar o documento, lá não permitiram o nome escolhido pra certidão: Vingança. O nome desejado por todos meses de barriga de mãe: Vingança. Não pode ter nome assim no documento.
O pai, seu Avelino Lubango, já tinha visto um malungo derrubar uma barona em poça de sangue só com arrepio de palavra benguela, só no golpe de saliva. Força de oração. Ele arrenegou a censura do escrevente mas teve que bailar o pensamento e calar, nem lhe deram chance pra retruco. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Com o tempo achou melhor o veto, assim não escancarava o desencape do fio, ficava feito cobra em tôco véio. E dentro de casa sempre chamou a menina de Vingança, carinhoso.
No banho às sextas-feiras, Dona Esperança recordava do pai. No fim da lavação, ela deixava só pingando o nome na cabeça, uma a uma cada bolinha d´agua, cada gota era uma voz chamando Vingança no detalhe na orelha, uma lembrança pingando no nariz, um cristal da voz do seu Avelino emaranhando no cabelo, outro fio d´agua na nuca. Dona Vingança guardava sua caminhada e limpava o cultivo. Numa gota cabe o mar.
Por fim, escorrendo no vale, um pingo entre os seios. No peito mas não no coração.
Vó Esperançá! A senhora já fechou a água? A Tia Ceci tá lá embaixo querendo lavar as crianças...
Pode banhar sim, menina. Usa o sabão que eu fiz.
Sabão caseiro. Tem soda cáustica, óleo, pinho e cinzas da criação que morreu, cadela cremada em segredo. Ofertou a cuia com moedas e uma vela na beira do rio. Não vai mais ter bicho, é muita agonia quando se fina um.

AMACI
Ubirajara escovou com juá os dentes das palavras pesadas. Banha com as folhas de seu pai Mutalambô debaixo da mangueira. Abelhas não lhe picam.
Em casa, é tempo de passos mudos. Canseira das brigas, dos estilhaços vazando dos lábios. Fala menos agora, quase nada, as palavras arrematam os gestos e não mais o inverso. Foi muita confusão e é tempo de calar, sem navalhar com a sua opinião pouco pedida. Tanta crise já veio da sua lâmina sincera. Gongo, o Bira. Buzina, o Bira. Calma, Ubirajara... vá pra casa, tome um banho. Mas era também na moradia a nervosia. E a reverência do silêncio agora rege, broca a febre de conseguir se calar, evitar brotar treta. Conceber o som, calado. De presente a ausência quando seu metro e noventa paira no centro da sala. Ser invisível. Sem rumores e sem os berros da mãe, sem cadeado na goela, apenas a nobreza que um dia irá prevalecer. As gentilezas e os desacordos agora só nas pálpebras ou encafuados quietinhos no bolso da alma.
Mutalambô lhe regia proceder e gesto. Prosperidade. Catendê oferecia oriente.
Deixa vidrarem na novela, ajoelharem pra dízimo, que continuem se estapeando pelos bilhões do futebol, esgoelando fofocas conjugais e se deslumbrando com cirurgias plásticas dos astros... Quer esquecer, concentrar no aroma d´agua verde que desliza em cada centímetro da sua pele. O filete brilhando na pele preta, cristal recordando que ele é descendente de reis.
Chega de tormentas, chega da vó Esperança apaziguando guerras. Quanta saudade do Canjica, seu cachorro que endoidou no tumulto, quebrou corrente e babou mordida na coxa das crianças. Canjica baleado por Valdeci. Toda vizinhança no outro dia cochichando chacota. 
Parar de ser o montado na verdade. Bira passou a ser um adjetivo, gênero de unha encravada: “você tá um bira hoje”, “levar o vô no hospital é o maior bira”. Eis sua pecha, o chato. Birra, o Bira. Estorvo, o Bira. Não sabe caçar? Quer ser pastor? Mas ninguém tá vendo as meninas com essa testa puxada, caramba? Cabeça alisada obrigatória, séculos de chapinha, humilhação diária no couro. Desde a placenta o destino ditado é a pequenez espremida? Carcaça? Brincar dentro da saraivada de vergonha cotidiana? Como aceitamos ser essa caricatura quebradiça da humanidade alheia? Treta que Bira traz ou desvenda? Sincero estrangula. Calma, Bira. Vá pra casa, tome um banho.
Mapa do seu rumo a lápis nas montanhas do silêncio. Música a água tocando no chão, jóia mineral, bença de ouvir. Mental a trama. Acaricia cicatrizes: brigas da rua com os piadistas da colônia. Bira, o favorito das portas giratórias. No braço as marcas das canetas que os vigias lhe enfiaram na saída. Bira espancado num quartinho de fundo de loja, o sangue repicado na sua nota de compra que não provou nada. No lombo ainda a tatuagem coagulada dos cacetes num estacionamento, no chão estirado o suspreto de furto, com as chaves da sua própria Brasília véia no bolso. E no gogó ainda o travo, a ironia das professoras que humilhavam com sua ignorância. Nessa vida toda não dá tempo de cuspir tanto nojo da piedade desnecessária e pontiaguda. Brio, o Bira.
Desfruta o cheiro do seu suor mesclado ao sumo da pitangueira. Curva o quengo pra lavar a nuca e assim recorda o porque de aquietar: foi numa contenda de quebra-quebra com Valdeci, irmão socando irmão em papo de cor, que viu sua vó Esperança lhe baixando a cabeça. A matriarca da casa. Aí o ai. Inclinada a testa, curvada como se anunciasse uma continência. Bira compreendeu.
Esvazia balde, água se seca na quentura do corpo. Veste azul claro. Pra esteira vá seu sono limpo.
Dona Esperança ficou sentida, arrancou lenço da cabeça e penteou no espelho a clemência dos segredos do Rosário. Banho aquele dia foram as lágrimas, o ácido desgosto corroendo nas rugas. Excreção. Parando vagarosa de fungar, enlutado o peito muxibento. Tarde foi passando e úmida veio a paz possível depois da sua enchente. Banho de pranto miúdo.
E Bira ser pacato? Findou a era da deselegância, mas Dona Esperança sabia que toda aquela hombridade de convicto flecheiro não tinha a coragem de reconhecer Lavanda, sua filha que veio da concha de Pérola, moça lá da Vila Inhame. Lavanda germinada no motel Fechecler. Bira dizia que a nenê já tinha família e tio digno pra ajudar, que não se acertava com a mãe, que era do mundo, que lutava pra ter condição, que um dia daria tudo que preciso. Pagaria com juros a Pérola também.
Dona Esperança sabia de toda essa balela, acendia vela. Como aquilo minguava de revolta o coração de seu neto... Ela advogava e mandava calar o tribunal, defendia Bira do mesmo desacato que não admitia em outras casas da vila. O que era covardia, cebola estragada em outra freguesia, na sua casa era só um enrosquinho pra ternura, uma sopa gengibrina.
A sala de Dona Esperança, um útero. Ali o tempo dormia. Licença, vó, posso entrar? Ali o ninho de aprender o licença, o por favor, o obrigado, o desculpe.
Bira abre a panela que lhe sorri o cheiro. Fez quiabo, vó?
– Tá caro demais, Bira. Quiabo virou carne, sô! Mas cê falou que vinha. Pica uma saladinha pra nóis.
Lavar, fatiar, guardar os discos e álbuns de foto. Ela ensina letra de canção, pontos de trabalho. Dita o seguramento de faca, como é que se passa uma cortante pra outra pessoa pegar pelo cabo. Ensina tempos do coentro, sapiência dos fornos da vida. Ao lado da bíblia o licor de pitanga que ela faz, que Bira não toma em sua frente sem permissão, como não fuma diante do vô. Até uma cervejinha perante os seus primeiros já lhe pinica o peito. Na estante um apoio de nuca, madeira barroquinha talhada por Vô Tebas. Nessa peroba, Esperança se trançou penteados. No cafofo há talheres de cedro, cadeiras de jatobá, fivelas de umburana, máscara gravada no pilão, trinco de imbuia envernizado em flor. Estilosa mão firme de Tebas na estatuêra.
– A gente tem outras minas e campinas também, meu filho, gerais. Mina cristalina, fonte ... E mina de pisar, dinamite de depenar o pé até o joelho.
Vó Esperança aperta forte o queixo barbado. Firma carinho. – Vou fazer um doce prucê.
Cascando laranja, quem criança em Campinas mexia tacho maior que ela? Horas no melaço do fervo, borbulhava vontade mas não podia passar nem um mindinho na colher de pau. Pegou íngua de doce, mas Bira nasceu e ela retomou a mão boa.
Lava a mão, Bira.

MIJADA, VÓ!
Manhã. O primeiro bisneto da casa comanda os arrumadores de cama, conferentes de milímetros nas dobras dos lençóis. Havia ainda o batalhão dos fiscais de gosmas também, cadetes adequados à nóia meticulosa da arrumação. Cada mula realiza seus sonhos à sua maneira: peito batendo na sanha por brindes da caguetagem e alguns se sentem no cume do pódio, pelo gozo de delatar.
Vóóó! Araci já tomou banho hoje, a coberta tá toda molhada!
A menina sonhou que se arremessava e caía feito bomba em poças coloridas, jorravam rampas de água pro vento e assim encharcava o pijama e o mundo. Havia em volta um deserto amarelo onde fincava um pilar. Agora, no tanque, a caçulinha esfrega a mancha de urina no lençol.
Fique colada no colchão até os dois secarem, viu, nojentinha! – É a ordem do berro que estoura os caminhos. Vó Ceci ensinando a compreensão, educando em casa pra ninguém sofrer na rua.
A pequenita ardida vai voltar pra roda no quintal e pedir pra brincar, mas ali o maiorzinho que caguetou a xixilina vai bradar: – Se você foi capturada pelo inimigo e voltou, será isolada! E ela ganha esparadrapo na boca, metem-lhe uma máscara de caixa de sapato com formigas dentro. O que cê contou da gente, Araci? Cê fraquejou na tortura, ô mijona?! De rendição em rendição...
E irão pro chuveiro, no ralo aquele caldo lameiro. Fechar registro pra esfregar as canelas foscas, os braços ruços de tanta cabra-cega, depois abrir de novo. Venceram cerca, rolaram no chão, rasgaram joelho. Menos o Gu, fissurado no videogame. Compete com colegas de escola que moram nos predinhos do Jardim Granola, se chegar ao recorde tem que congelar a tela pra provar maestria. 
 No fundo do quintal, Vó Ceci bate a bagana e confere seu território: arame sobrado do galinheiro, uma motoquinha sem guidão, bonecas louras sem braço e tijolos da obra que o pai nunca recomeçou. Opa! Quem teve a ousadia de plantar arruda ali? Eita que ela proibiu essa planta... sabe a potência, usou há tempos na precisão, carência antiga de dissolver uma semente no seu bucho antes de firmar placenta.
Ceci pela buraqueira do muro vê três antigos patrões colocando seu Tebas numa carruagem, como se fosse um saco de cimento. Lá vão passear e o véio dar mais uma aula de graça, dessa vez trouxeram até estudante de faculdade pra palestra. Papai tá uma cova desfilando de chapéu. Vou mentir?
Fumada, Ceci irá de barraco em barraco perguntando baixinho, sem gritaria, se alguém tá se lavando. Seu banho é matinal, a criançada na leveza da traquinagem, as brigas poucas e ainda não há a manta de choro e pirraça que irá cobrir o quintal. Mas inda aproveita mais uns minutos rente à cerca pra pitar mais unzinho. Hora do seu banho de sol na penitência cotidiana. Detida com nove netos pra cuidar. Rouca.


Este conto faz parte do livro inédito de Allan da Rosa, intitulado Reza de mãe.

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