Leonardo Tonus
Imagem: Rudolf Kalvach
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Segundo
artigo de Elise Vincent publicado no jornal Le
monde de 22 de dezembro de 2014, mais de 160 mil migrantes
atingiram, ao longo deste ano, a costa italiana. Em 8 de maio de 2001, segundo
o mesmo artigo, três corpos de moças foram recuperados em pleno mar. Para
algumas a autopsia a autorizou a menção “provavelmente de origem subsariana”.
No final do ano passado, 360 migrantes morreram afogados após uma trágica
travessia em direção do eldorado europeu.
Curiosa
a facilidade (e a incapacidade) de nossa civilização ocidental a forjar termos,
conceitos e noções perante o inenarrável: o terror do fenômeno migratório
atual, contrário aos ímpetos eufóricos culturalistas que ainda hoje condicionam
nosso olhar acerca desta questão.
Dentro
do quadro das representações tradicionais da exogenia, o clandestino forma uma
subclasse própria e distinta das outras figuras dos deslocamentos
(exilados, refugiados, trânsfugas, viajantes), cuja permeabilidade aos
procedimentos de estetização aponta para sua inserção no campo literário. Ao
contrário destas categorias mais nobres, ele permanece relativamente ausente no
cenário mundial das letras, apesar de constituir um dos principais atores dos
processos de deslocamento populacional.
Segundo
dados fornecidos pelas Nações Unidas, o estoque de migrantes no planeta
elevava-se, em 2010, a mais 214 milhões de pessoas (3% da população mundial),
das quais uma grande parte vive em situação irregular. O Brasil não escapa a
esta situação, uma vez que nos últimos anos registra um número significativo de
estrangeiros legais e ilegais no país. Dados do Ministério da Justiça apontam
para um acréscimo de 57% da mão-de-obra estrangeira que, em 2011, compreendia
mais de um milhão de pessoas. O governo estima que existam hoje no país entre
60 mil a 300 mil imigrantes ilegais, dados contestados pelas instituições
não-governamentais que preferem evocar a presença de quase meio milhão de
clandestinos oriundos de países africanos, latino-americanos, asiáticos
e, mais recentemente, de certas regiões do Caribe.
Desde
os meados do século XIX, o imigrante constitui uma das figuras centrais do
imaginário nacional e da literatura brasileira. Sua capacidade a se adaptar às
transformações socioeconômicas, culturais e estéticas são uma prova flagrante
de sua importância na elaboração de um discurso oficial sobre a identidade
nacional. Em sua qualidade de estrangeiro, o imigrante contribuiu (e continua a
contribuir) para salvaguardar a ilusão de uma identidade forte que, ao se
apropriar da voz do outro-estrangeiro, integrou-a em projetos avalizadores dos
sistemas vigentes. Enquanto “encenação projetiva”, temporária e distanciada do
“mesmo”, o imigrante-estrangeiro assegurou (e continua a assegurar) a
neutralização dos antagonismos, dos contrapontos diferenciadores e das posturas
conflitantes da comunidade que o acolheu e a qual ele supostamente representa. Em
vez do conhecimento e do reconhecimento pleno de sua diversidade, tais
dispositivos apontam para uma “interpelação” diferenciada de uma “outridade”
consensual que a presença de dispositivos de alegorização, de loci enunciativos distanciados e de
representação miméticos, acabam por acentuar. Tais procedimentos sublinham os
limites e as ambivalências do discurso atual sobre a representação da “alteridade”
no contexto brasileiro: por um lado, a hipervalorização de um ideal de
diversidade e de coexistência pacíficas entre culturas fundadoras da
identidade brasileira; por outro lado, a instrumentalização de uma diversidade
em prol de um projeto cultural unanimista.
Ora,
como explicar a relativa ausência do imigrante clandestino na literatura
brasileira? Como entender o pouco interesse que esta figura literária tem
despertado junto a escritores cada vez mais motivados a expatriarem suas vozes
e personagens para além das fronteiras nacionais? Constituiria esta ausência
mais uma prova dos limites do discurso sobre alteridade no país? Viria ela
expor a violência dos procedimentos de silenciamento direcionados a
vozes subalternas pouco “aptas” a representações consensuais da identidade
nacional?
O
vasto campo de aplicação jurídico, político, sociológico e filosófico vinculado
ao conceito de clandestinidade tende a associar frequentemente esta prática a
atividades ilícitas que posicionam seus atores para além da esfera da
legalidade. Quer se trate de oponentes a regimes políticos, de imigrantes
ilegais, contrabandistas, traficantes ou terroristas, todas estas figuras
compartilham uma territorialidade extraviada que, resultante de uma
ruptura com o espaço centralizador, priva o sujeito de um lugar habitável fixo.
A clandestinidade é uma prática do minoritário que inscreve o sujeito no
universo da fração.
Todo
estado de clandestinidade implica um deslocamento pontual ou definitivo,
voluntário ou involuntário do sujeito em relação a um espaço que o abriga ou do
qual é oriundo. Tal deslocamento articula-se em direção a um espaço distinto
que, apesar de identificável e inqualificável, segundo os parâmetros legais,
conserva suas relações com o universo excludente: inclusão/exclusão,
vizinhança, proximidade, lateralidade. A contradição do estado de
clandestinidade repousa justamente nesta relação metonímica que o sujeito
clandestino mantém com o espaço de que é oriundo e no qual passa a residir. Ela
implica uma conexão de contiguidade entre dois significantes que ele
substitui. Em outras palavras, toda clandestinidade induz a uma dupla
territorialidade em função da qual elaboram-se as condições de sobrevivência e
de existência do sujeito clandestino. A partir desta dupla espacialidade o
sujeito não-autorizado elabora e administra um espaço de liberdade cuja
independência lhe possibilita resistir.
Tornar-se
clandestino não significa necessariamente inscrever-se na marginalidade. A
clandestinidade constitui menos a evasão do sujeito do que a modificação de sua
subjetividade em relação aos espaços que parasita, sejam eles centrais,
estáveis, periféricos ou marcados pela precariedade (aeroportos, squats, campos de refugiados, artefatos
literários censurados). Contrariamente aos excluídos, cuja “extração
territorial” pressupõe uma visibilidade pela exposição dos procedimentos de
estigmatização, o clandestino encarna uma forma radical de invisibilidade. Toda
a sua existência organiza-se em função de um anonimato que, reivindicado e
praticado cotidianamente, visa a não-revelação em praça pública de sua
diversidade. No universo da clandestinidade, a experiência da alteridade é
nula, uma vez que o não-reconhecimento legal por parte das autoridades nega ao
sujeito a possibilidade de se tornar “outro”. Ao apagar seus rastros deixados
pelos espaços que transita, o clandestino prenuncia a figura do estrangeiro.
Ele se apresenta, assim, como uma não-figura cuja ausência legal certifica sua
permanência temporária ou prolongada no espaço, desarticulando a dialética
entre lugar e não-lugar. “Não-figura” do “sem-lugar”, ele habita os
interstícios dos espaços antropológicos fomentores de identidades
(os oponentes políticos, os terroristas, os anarquistas) e dos não-lugares onde
se manifestam as perdas dos marcos identitários (os imigrantes
clandestinos, os refugiados e os desertores).
Ontem
eu vi o terror
Nos
olhos de um imigrante clandestino
Simplesmente
O
terror
De
um barco à deriva
De
uma vida de silêncios
De
uma existência usurpada
Ontem
eu vi o terror dos meus olhos
Nos
olhos de um imigrante clandestino
Meus
olhos menos clandestinos
Também
desembarcados aqui há 26 anos
O
terror não se descreve
O
terror não se narra
O
terror não se esquece
***
Este texto é um fragmento do capítulo “Espaços na e da
clandestinidade”, publicado originalmente no livro Espaços
possíveis na literatura brasileira contemporânea, organizado por Regina
Dalcastagnè e Luciene Azevedo. Porto Alegre: Zouk, 2015.
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