15 de agosto de 2015

A violência contra a mulher e a literatura

Paula Q. Dutra


Imagem: Cindy Sherman
Our silence will not protect us.
Audre Lorde

Em 2006, a escritora norte-americana Alice Walker trabalhou para a organização Women for Women International e teve a chance de visitar Ruanda e o Congo depois do genocídio ocorrido na região. Mais tarde, convidada pelo grupo antiguerra CODEPINK, Walker viajou para a Palestina/Israel três anos após a devastação ocorrida na faixa de Gaza. Overcoming speechlessness (2010, Rompendo o silêncio, tradução minha) resulta dessa experiência. O livro é um relato de caráter mais pessoal sobre o que a autora presenciou e sentiu durante (e também após) essa visita a um cenário devastado pela violência. Diante de tanto sofrimento, Walker afirma ter retornado ao seu país carregando o peso das histórias contadas pelas sobreviventes. Após o período de choque inicial pelas histórias que falavam de uma dor para a qual parecia não haver palavras, a autora busca nesses relatos a força para recontá-las, ciente de que é necessário romper o silêncio para lutar contra a violência.
Compreender o mundo moderno e sua relação com a violência é, para muitos, um dos desafios da chamada modernidade. Susan Sontag, no livro Diante da dor dos outros (2003), afirma que ser um espectador de calamidades é uma experiência moderna essencial, o que nos leva a pensar sobre o fenômeno da violência como um todo e sobre o que essa exposição tão excessiva, que por vezes vulgariza e torna banal o sofrimento do outro, provoca em nós e na sociedade em que vivemos. Para Jean Franco, em Cruel modernity (2013), nem a crueldade nem a exploração da crueldade seriam algo novo, mas a aceitação e a justificação de atos de crueldade é o que se tornou uma característica da modernidade.
O relato de Alice Walker sobre esse encontro com as mulheres que sobreviveram a violências físicas, sexuais e psicológicas brutais nos contextos de guerra coloca em pauta a importância de se discutir a violência contra a mulher nos dias de hoje. Se diariamente somos soterrados por notícias sobre crimes, conflitos armados, tragédias no simples ato de folhear um jornal ou ligar a televisão, a violência cotidiana vivenciada pelas mulheres em todo o mundo ainda tem sido banalizada e aceita como algo “normal”, ainda que as estatísticas mundiais continuem alarmantes.
Um dos problemas ao tratar da questão da violência são os seus muitos significados, que por vezes impedem ou dificultam o reconhecimento, por parte das próprias vítimas, da situação de violência a que estão submetidas. Esse não reconhecimento de ações violentas como violência ocorre tanto por parte das vítimas como por parte dos agressores, o que demonstra a gravidade do problema da naturalização da violência como um sério empecilho à sua erradicação.
Só recentemente, devido a alguns avanços na legislação brasileira, a violência contra a mulher tem sido colocada em pauta no Brasil. Mas, se a violência urbana que assombra as grandes cidades é um tema recorrente nos romances brasileiros, a violência contra a mulher, em suas várias formas, ainda é pouco problematizada, mesmo por escritoras, conforme apontam as pesquisas de Regina Dalcastagnè em Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira Contemporânea (2010). O que esse silêncio pode nos dizer?
Podemos acreditar que a literatura é capaz de fazer algo contra a violência, uma vez que é um discurso que produz conhecimento sobre o mundo, e pode tanto reproduzir e disseminar estereótipos quanto contribuir com a criação de novas imagens e novas ideias. Como afirma Jaime Ginzburg no livro Violência e melancolia (2012), a convivência com a literatura nos permite entrar em contato com novas imagens, ideias, relatos e exemplos que contribuem para construir uma nova orientação ética, tanto individual quanto coletiva. Faz-se necessário ter em mente, contudo, que as representações de violência na literatura, no cinema e nas artes em geral também podem suscitar reações opostas, e o que inicialmente pretendia ser uma denúncia pode terminar por ser interpretado como algo banal ou, até mesmo, inevitável.  
Considerando a possibilidade e a legitimidade das representações, é importante pensarmos até que ponto e de que maneira as várias formas de violência contra a mulher, em todas as suas nuances e complexidade, podem ser representadas na literatura sem reiterar os estereótipos tradicionais de submissão, silenciamento e dissociação associado às mulheres. De que forma essas representações podem contribuir para a criação de um novo discurso sobre a mulher vítima de violência, sem tornar ambígua a sua dor, o seu sofrimento?
Do ponto de vista da literatura, espaço onde circulam ideias e discursos, é importante que novas perspectivas sejam retratadas abordando a situação das violências vivenciadas pelas mulheres de forma a contestar algumas visões de mundo que favorecem as exclusões e reforçam estereótipos negativos.
Para isso, no entanto, é necessário que a literatura de fato dê voz a essas mulheres, sem minimizar ou desconsiderar o seu sofrimento, oferecendo-lhes uma oportunidade digna de resistir e sobreviver sem violência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.