Paula Q. Dutra
Imagem: Cindy Sherman
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Our silence will not protect us.
Audre Lorde
Em
2006, a escritora norte-americana Alice Walker trabalhou para a organização Women for Women International e teve a
chance de visitar Ruanda e o Congo depois do genocídio ocorrido na região. Mais
tarde, convidada pelo grupo antiguerra CODEPINK, Walker viajou para a
Palestina/Israel três anos após a devastação ocorrida na faixa de Gaza. Overcoming speechlessness (2010, Rompendo o silêncio, tradução minha)
resulta dessa experiência. O livro é um relato de caráter mais pessoal sobre o
que a autora presenciou e sentiu durante (e também após) essa visita a um
cenário devastado pela violência. Diante de tanto sofrimento, Walker afirma ter
retornado ao seu país carregando o peso das histórias contadas pelas
sobreviventes. Após o período de choque inicial pelas histórias que falavam de
uma dor para a qual parecia não haver palavras, a autora busca nesses relatos a
força para recontá-las, ciente de que é necessário romper o silêncio para lutar
contra a violência.
Compreender
o mundo moderno e sua relação com a violência é, para muitos, um dos desafios
da chamada modernidade. Susan Sontag, no livro Diante da dor dos outros (2003), afirma que ser um espectador de
calamidades é uma experiência moderna essencial, o que nos leva a pensar sobre
o fenômeno da violência como um todo e sobre o que essa exposição tão
excessiva, que por vezes vulgariza e torna banal o sofrimento do outro, provoca
em nós e na sociedade em que vivemos. Para Jean Franco, em Cruel modernity (2013), nem a crueldade nem a exploração da
crueldade seriam algo novo, mas a aceitação e a justificação de atos de
crueldade é o que se tornou uma característica da modernidade.
O
relato de Alice Walker sobre esse encontro com as mulheres que sobreviveram a
violências físicas, sexuais e psicológicas brutais nos contextos de guerra
coloca em pauta a importância de se discutir a violência contra a mulher nos
dias de hoje. Se diariamente somos soterrados por notícias sobre crimes, conflitos
armados, tragédias no simples ato de folhear um jornal ou ligar a televisão, a
violência cotidiana vivenciada pelas mulheres em todo o mundo ainda tem sido
banalizada e aceita como algo “normal”, ainda que as estatísticas mundiais
continuem alarmantes.
Um
dos problemas ao tratar da questão da violência são os seus muitos
significados, que por vezes impedem ou dificultam o reconhecimento, por parte
das próprias vítimas, da situação de violência a que estão submetidas. Esse não
reconhecimento de ações violentas como violência ocorre tanto por parte
das vítimas como por parte dos agressores, o que demonstra a gravidade do
problema da naturalização da violência como um sério empecilho à sua erradicação.
Só
recentemente, devido a alguns avanços na legislação brasileira, a violência
contra a mulher tem sido colocada em pauta no Brasil. Mas, se a violência
urbana que assombra as grandes cidades é um tema recorrente nos romances
brasileiros, a violência contra a mulher, em suas várias formas, ainda é pouco
problematizada, mesmo por escritoras, conforme apontam as pesquisas de Regina
Dalcastagnè em Deslocamentos de gênero na
narrativa brasileira Contemporânea (2010). O que esse silêncio pode nos
dizer?
Podemos
acreditar que a literatura é capaz de fazer algo contra a violência, uma vez
que é um discurso que produz conhecimento sobre o mundo, e pode tanto
reproduzir e disseminar estereótipos quanto contribuir com a criação de novas
imagens e novas ideias. Como afirma Jaime Ginzburg no livro Violência e melancolia (2012), a
convivência com a literatura nos permite entrar em contato com novas imagens,
ideias, relatos e exemplos que contribuem para construir uma nova orientação
ética, tanto individual quanto coletiva. Faz-se necessário ter em mente,
contudo, que as representações de violência na literatura, no cinema e nas
artes em geral também podem suscitar reações opostas, e o que inicialmente
pretendia ser uma denúncia pode terminar por ser interpretado como algo banal
ou, até mesmo, inevitável.
Considerando
a possibilidade e a legitimidade das representações, é importante pensarmos até
que ponto e de que maneira as várias formas de violência contra a mulher, em
todas as suas nuances e complexidade, podem ser representadas na literatura sem
reiterar os estereótipos tradicionais de submissão, silenciamento e dissociação
associado às mulheres. De que forma essas representações podem contribuir para
a criação de um novo discurso sobre a mulher vítima de violência, sem tornar
ambígua a sua dor, o seu sofrimento?
Do
ponto de vista da literatura, espaço onde circulam ideias e discursos, é
importante que novas perspectivas sejam retratadas abordando a situação das
violências vivenciadas pelas mulheres de forma a contestar algumas visões de
mundo que favorecem as exclusões e reforçam estereótipos negativos.
Para
isso, no entanto, é necessário que a literatura de fato dê voz a essas
mulheres, sem minimizar ou desconsiderar o seu sofrimento, oferecendo-lhes uma
oportunidade digna de resistir e sobreviver sem
violência.
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