Regina Dalcastagnè
Imagem: Renato
Guttuso
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Em 30 de dezembro de 1904, Euclides da Cunha escrevia ao seu pai desde Manaus: “a mais consoladora surpresa do sulista está no perceber que este nosso Brasil é verdadeiramente grande porque ainda chega até cá. Realmente, cada vez mais me convenço de que esta deplorável Rua do Ouvidor é o pior prisma por onde toda a gente vê a nossa terra”. A partir do momento em que o artista abandona o conforto da Rua do Ouvidor, ou da sua “perspectiva do alpendre”, para usar os termos de Roberto Ventura, um imenso campo de possibilidades se abre ao seu redor. São outras pessoas, outras experiências, outros significados sobre os quais é preciso aprender, seja para falar sobre eles, seja para calar. Como não cabe a um criador o silêncio sobre o mundo, ele pode expressar sua impossibilidade de dizer, a ansiedade diante da própria obra, o desconforto imposto por um objeto que teima em ser sujeito de sua história. Basta lembrar de Clarice Lispector em A hora da estrela, por exemplo.
No entanto, o mais comum é que a vida dos grupos marginalizados seja representada à distância, de forma “monocromática” – como diria Löic Wacquant – e estática. Normalmente seus integrantes nos são apresentados ou como vítimas do sistema ou como aberrações violentas. É claro que sob uma perspectiva menos autocentrada seria possível vislumbrar entre eles uma infinidade de matizes e diferentes estratégias de resistência e de deslocamentos, ou tentativas de deslocamento, no espaço social. As implicações dessas estratégias na existência das personagens, e na economia da narrativa, tornam-se uma questão crucial para o entendimento de suas possibilidades. Já o modo como elas são vistas e descritas não deixa de refletir o julgamento que é feito, por vezes de forma inconsciente, dos integrantes destes grupos.
De um modo geral, a personagem do romance brasileiro contemporâneo “sabe o seu devido lugar”. Ali – como, aliás, nas telenovelas, no cinema, na publicidade, no jornalismo, em suma, nas diferentes representações da realidade brasileira (ainda que não necessariamente nela própria) – a divisão de classe, raça e gênero é muito bem marcada: pobres e negros nas favelas e nos presídios, homens brancos de classe média e intelectuais nos espaços públicos, mulheres dentro de casa, sendo as negras na cozinha... Nas narrativas, os contatos entre os diferentes estratos são, em geral, episódicos. Quando representados, quase sempre estão marcados pela violência – mas, neste caso, costuma-se privilegiar a violência aberta com que por vezes se expressam integrantes das classes subalternas, em detrimento da violência silenciosa, estrutural, que é exercida sobre os dominados.
Não são poucos os exemplos das representações nas quais a experiência dos pobres na sociedade brasileira passa pela exposição dessa violência aberta, seja na forma da criminalidade, seja da brutalidade policial. Basta citar um romance como Cidade de Deus, de Paulo Lins, os contos de Rubem Fonseca, ou mesmo filmes como Carandiru e Tropa de elite, por exemplo. Esse tipo de violência não é estranha aos grupos privilegiados. Eles sofrem, talvez, modalidades diferentes dela, possuem outras formas de proteção e mantêm outro tipo de relação com os poderes públicos; ainda assim, há uma identificação possível. Sobretudo, a violência aberta encontra uma condenação moral quase unânime – há uma resposta comum e sem maiores ambiguidades a ela.
Mas outras formas de violência convivem no mesmo espaço. O filósofo esloveno Slavoj Žižek distingue três tipos de violência. O que chamei de violência aberta e ele chama de “violência subjetiva” é a mais evidente, aceita como tal, possui um perpetrador individual identificável, um “culpado” que podemos condenar. Mas há também uma violência simbólica (encarnada na linguagem) e uma violência sistêmica, que é fruto das estruturas sociais. Essas duas últimas determinam a vivência cotidiana, criando entraves e limitando possibilidades, impedindo as pessoas de decidir suas próprias vidas, constrangendo-as a privações e humilhações. Justamente por construírem o cotidiano, passam despercebidas, como algo próprio da natureza das coisas – e não são vistas como manifestações de violência. A condenação a elas não é automática, nem categórica; ao contrário, tem de ser disputada politicamente.
A violência simbólica e a violência sistêmica atingem de maneira muito mais específica os diferentes grupos sociais. O leitor de classe média bem estabelecida se encontra em situação de completa exterioridade em relação à experiência daquele que vai ao supermercado contando os trocados, que tem que devolver produtos no caixa ou que sabe que o segurança desconfia de sua presença ali. A literatura pode ser um espaço onde essa perspectiva tenha lugar, permitindo uma aproximação a realidades que são, reiteradamente, silenciadas. Pode ser um espaço de acolhimento, o que implicaria na construção de novas estruturas narrativas, mas pode ser também um lugar de reflexão, impulsionando os leitores a repensarem o modo como ocupam o mundo.
O problema é que a adesão a determinados enquadramentos – e a determinados estereótipos – é fácil para o leitor, que os encontra replicados nos mais diferentes tipos de discurso. Portanto, é fácil também para o escritor, que não precisa se arriscar a lidar com o estranhamento na construção do outro. O que não quer dizer que não existam aqueles que o façam, e com competência. De qualquer forma, é cada vez mais difícil ignorar a existência de uma crise na representação literária – que implica no questionamento sobre quem fala e em nome de quem. Instalada a dúvida, abrem-se brechas em um sistema em geral bastante uníssono, porque refratário à presença de grupos sociais diferenciados – sejam autores(as), sejam suas personagens. Daí os ruídos e o desconforto causados pela “intrusão” dessas vozes não autorizadas no campo literário brasileiro; daí a tensão e os deslocamentos gerados, inclusive, entre os autores já legitimados, que se veem diante da necessidade de explicitarem sua posição, abandonando a perspectiva de classe distanciada não para assumir o ponto de vista do outro, mas para declarar justamente a impossibilidade dessa apropriação.
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