8 de agosto de 2015

Terror

Leonardo Tonus


            Imagem: Rudolf Kalvach
Segundo artigo de Elise Vincent publicado no jornal Le monde de 22 de dezembro de 2014, mais de 160 mil migrantes atingiram, ao longo deste ano, a costa italiana. Em 8 de maio de 2001, segundo o mesmo artigo, três corpos de moças foram recuperados em pleno mar. Para algumas a autopsia a autorizou a menção “provavelmente de origem subsariana”. No final do ano passado, 360 migrantes morreram afogados após uma trágica travessia em direção do eldorado europeu. 
Curiosa a facilidade (e a incapacidade) de nossa civilização ocidental a forjar termos, conceitos e noções perante o inenarrável: o terror do fenômeno migratório atual, contrário aos ímpetos eufóricos culturalistas que ainda hoje condicionam nosso olhar acerca desta questão.
Dentro do quadro das representações tradicionais da exogenia, o clandestino forma uma subclasse própria e distinta das outras figuras dos deslocamentos (exilados, refugiados, trânsfugas, viajantes), cuja permeabilidade aos procedimentos de estetização aponta para sua inserção no campo literário. Ao contrário destas categorias mais nobres, ele permanece relativamente ausente no cenário mundial das letras, apesar de constituir um dos principais atores dos processos de deslocamento populacional.
Segundo dados fornecidos pelas Nações Unidas, o estoque de migrantes no planeta elevava-se, em 2010, a mais 214 milhões de pessoas (3% da população mundial), das quais uma grande parte vive em situação irregular. O Brasil não escapa a esta situação, uma vez que nos últimos anos registra um número significativo de estrangeiros legais e ilegais no país. Dados do Ministério da Justiça apontam para um acréscimo de 57% da mão-de-obra estrangeira que, em 2011, compreendia mais de um milhão de pessoas. O governo estima que existam hoje no país entre 60 mil a 300 mil imigrantes ilegais, dados contestados pelas instituições não-governamentais que preferem evocar a presença de  quase meio milhão de clandestinos oriundos de países africanos, latino-americanos, asiáticos e, mais recentemente, de certas regiões do Caribe.
Desde os meados do século XIX, o imigrante constitui uma das figuras centrais do imaginário nacional e da literatura brasileira. Sua capacidade a se adaptar às transformações socioeconômicas, culturais e estéticas são uma prova flagrante de sua importância na elaboração de um discurso oficial sobre a identidade nacional. Em sua qualidade de estrangeiro, o imigrante contribuiu (e continua a contribuir) para salvaguardar a ilusão de uma identidade forte que, ao se apropriar da voz do outro-estrangeiro, integrou-a em projetos avalizadores dos sistemas vigentes. Enquanto “encenação projetiva”, temporária e distanciada do “mesmo”, o imigrante-estrangeiro assegurou (e continua a assegurar) a neutralização dos antagonismos, dos contrapontos diferenciadores e das posturas conflitantes da comunidade que o acolheu e a qual ele supostamente representa. Em vez do conhecimento e do reconhecimento pleno de sua diversidade, tais dispositivos apontam para uma “interpelação” diferenciada de uma “outridade” consensual que a presença de dispositivos de alegorização, de loci enunciativos distanciados e de representação miméticos, acabam por acentuar. Tais procedimentos sublinham os limites e as ambivalências do discurso atual sobre a representação da “alteridade” no contexto brasileiro: por um lado, a hipervalorização de um ideal de diversidade e de coexistência pacíficas entre culturas fundadoras da identidade brasileira; por outro lado, a instrumentalização de uma diversidade em prol de um projeto cultural unanimista.
Ora,  como explicar a relativa ausência do imigrante clandestino na literatura brasileira? Como entender o pouco interesse que esta figura literária tem despertado junto a escritores cada vez mais motivados a expatriarem suas vozes e personagens para além das fronteiras nacionais? Constituiria esta ausência mais uma prova dos limites do discurso sobre alteridade no país? Viria ela expor a violência  dos procedimentos de silenciamento direcionados a vozes subalternas pouco “aptas” a representações consensuais da identidade nacional? 
O vasto campo de aplicação jurídico, político, sociológico e filosófico vinculado ao conceito de clandestinidade tende a associar frequentemente esta prática a atividades ilícitas que posicionam seus atores para além da esfera da legalidade. Quer se trate de oponentes a regimes políticos, de imigrantes ilegais, contrabandistas, traficantes ou terroristas, todas estas figuras compartilham uma territorialidade extraviada que, resultante de uma  ruptura com o espaço centralizador, priva o sujeito de um lugar habitável fixo. A clandestinidade é uma prática do minoritário que inscreve o sujeito no universo da fração.
Todo estado de clandestinidade implica um deslocamento pontual ou definitivo, voluntário ou involuntário do sujeito em relação a um espaço que o abriga ou do qual é oriundo. Tal deslocamento articula-se em direção a um espaço distinto que, apesar de identificável e inqualificável, segundo os parâmetros legais, conserva suas relações com o universo excludente: inclusão/exclusão, vizinhança, proximidade, lateralidade. A contradição do estado de clandestinidade repousa justamente nesta relação metonímica que o  sujeito clandestino mantém com o espaço de que é oriundo e no qual passa a residir. Ela implica uma conexão de contiguidade entre dois significantes que ele substitui. Em outras palavras, toda clandestinidade induz a uma dupla territorialidade em função da qual elaboram-se as condições de sobrevivência e de existência do sujeito clandestino. A partir desta dupla espacialidade o sujeito não-autorizado elabora e administra um espaço de liberdade cuja independência lhe possibilita resistir.
Tornar-se clandestino não significa necessariamente inscrever-se na marginalidade. A clandestinidade constitui menos a evasão do sujeito do que a modificação de sua subjetividade em relação aos espaços que parasita, sejam eles centrais, estáveis, periféricos ou marcados pela precariedade (aeroportos, squats, campos de refugiados, artefatos literários censurados). Contrariamente aos excluídos, cuja “extração territorial” pressupõe uma visibilidade pela exposição dos procedimentos de estigmatização, o clandestino encarna uma forma radical de invisibilidade. Toda a sua existência organiza-se em função de um anonimato que, reivindicado e praticado cotidianamente, visa a não-revelação em praça pública de sua diversidade. No universo da clandestinidade, a experiência da alteridade é nula, uma vez que o não-reconhecimento legal por parte das autoridades nega ao sujeito a possibilidade de se tornar “outro”. Ao apagar seus rastros deixados pelos espaços que transita, o clandestino prenuncia a figura do estrangeiro. Ele se apresenta, assim, como uma não-figura cuja ausência legal certifica sua permanência temporária ou prolongada no espaço, desarticulando a dialética entre lugar e não-lugar. “Não-figura” do “sem-lugar”, ele habita os  interstícios  dos  espaços antropológicos fomentores de identidades (os oponentes políticos, os terroristas, os anarquistas) e dos não-lugares onde se manifestam as perdas dos marcos identitários  (os imigrantes clandestinos, os refugiados e os desertores).

Ontem eu vi o terror
Nos olhos de um imigrante clandestino
Simplesmente
O terror

De um barco à deriva
De uma vida de silêncios
De uma existência usurpada

Ontem eu vi o terror dos meus olhos
Nos olhos de um imigrante clandestino
Meus olhos menos clandestinos
Também desembarcados aqui há 26 anos

O terror não se descreve
O terror não se narra
O terror não se esquece


***
 Este texto é um fragmento do capítulo Espaços na e da clandestinidade, publicado originalmente no livro Espaços possíveis na literatura brasileira contemporânea, organizado por Regina Dalcastagnè e Luciene Azevedo. Porto Alegre: Zouk, 2015.



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