Luis Felipe Miguel
Imagem:
Richard Peduzzi
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Na espiral do
retrocesso em que o Brasil mergulhou nos últimos tempos, o ataque à educação é
um elemento central. A Medida Provisória baixada no último dia 22, que
reestrutura o ensino médio de maneira a esvaziá-lo de conteúdo crítico, foi
talvez o maior ato de arbitrariedade do governo golpista até agora. Trata-se de uma mudança de enorme significado introduzida
por medida provisória, instrumento que seria reservado para ações de caráter
emergencial. A ausência de diálogo com educadores e com estudantes foi a marca
do processo.
Mas a educação está
sob cerco faz tempo. Um sinal de alerta já se acendeu quando, em abril de 2015,
o governador paranaense Beto Richa, do PSDB, colocou a polícia militar para
bater nos professores que participavam de manifestações. Alguns meses depois, o
governador paulista Geraldo Alckmin, do PSDB, começou a fechar escolas
públicas. Enfrentou a mobilização dos estudantes, que ocuparam seus colégios, e
reagiu também com repressão policial. Depois do golpe que colocou Temer no
poder, o secretário de Segurança que comandou a coação contra os estudantes
paulistas, Alexandre de Moraes, ganhou o Ministério da Justiça. Mas os jovens
estiveram mobilizados também em outros estados brasileiros, muitas vezes com
ocupações de escolas. A repressão se mostrou particularmente brutal em Goiás,
onde está em curso um inusitado processo de militarização da educação pública,
incentivado pelo governador Marconi Perillo, também do PSDB – será que há aqui
um padrão? (Para quem quiser conhecer a realidade dos colégios administrados
pela PM em Goiás, há um livro com depoimentos e análises de estudantes e
professores, intitulado O estado de exceção escolar.)
Enquanto isso, nas
manifestações pela derrubada da presidenta Dilma Rousseff começaram a aparecer
faixas pedindo “basta de Paulo Freire”. O educador pernambucano era o símbolo
da escola emancipadora, que os manifestantes conservadores julgavam – de
maneira errônea, infelizmente – que estava difundida pelo país afora. As
faixas, que de tão obtusas no começo pareciam ser motivo apenas para riso, eram
o sintoma de uma ofensiva contra qualquer traço de pensamento crítico na
educação, que se cristalizou com o crescimento de um movimento até então
folclórico e irrelevante, o Escola Sem Partido.
O Escola Sem Partido
tornou-se porta-voz da oposição dos grupos religiosos conservadores à discussão
sobre as desigualdades de gênero nas escolas. Mas, na verdade, nasceu com outra
agenda. Quando surgiu, em 2004, seu foco era a pretensa “doutrinação marxista”
nas escolas, um tema que reaparece ciclicamente desde o final da ditadura
militar.
Foi assim que o ESP
ganhou espaço, inicialmente, junto ao Instituto Millenium, uma organização
financiada por empresas brasileiras e estrangeiras. (Estou resumindo, aqui,
informações que constam de um artigo maior sobre o tema.) As bandeiras
prioritárias do Millenium são ligadas ao programa econômico da direita (o
Estado mínimo, a desregulamentação, a flexibilização da legislação
trabalhista), não à moral sexual ou à família. O criador do MESP publicou, no site do Instituto, em 2009, texto
intitulado “Por uma escola que promova os valores do Millenium”, em que seu
alinhamento com o ideário ultraliberal ficava patente. Os problemas da educação
brasileira, segundo o artigo, seriam a falta de deferência pela propriedade
privada, pela meritocracia e pelo princípio da responsabilidade individual. A
preocupação com gênero e valores familiares estava inteiramente ausente.
A ameaça da
“doutrinação marxista” nas escolas é alimentada por uma leitura fantasiosa da
obra de Antonio Gramsci. Sua sofisticada percepção da luta política se torna,
nas mãos de seus detratores à direita, uma estratégia simplória, com o objetivo
de solapar os consensos que permitem o funcionamento da sociedade, por meio da
manipulação das mentes (a noção de “lavagem cerebral” é invocada com
frequência). É essa leitura bizarra que é evocada pelo nome de “marxismo
cultural”.
A fusão da denúncia da
doutrinação marxista de inspiração gramsciana com a oposição à chamada “ideologia
de gênero” obedeceu, assim, ao senso de oportunidade do ESP. Deu a ele aliados de peso nas igrejas evangélicas e católica, uma
capilaridade com a qual nem poderia sonhar e um discurso com ressonância
popular muito mais imediata. A
confluência foi facilitada graças ao trabalho de propagandistas da extrema-direita,
em particular os alinhados a Olavo de Carvalho, para quem a dissolução da moral
sexual convencional é um passo da estratégia comunista. Não por acaso, Olavo de
Carvalho é defensor veemente do Escola Sem Partido.
No momento em que a
“ideologia de gênero” se sobrepõe à “doutrinação marxista”, o discurso dá outra
guinada. A defesa de uma educação “neutra”, que era predominante até então,
cede espaço à noção da primazia da família sobre a escola. A reivindicação é
impedir que professoras e professores transmitam, em sala de aula, qualquer
conteúdo contrário aos valores prezados pelos pais. O foco principal é a
“ideologia de gênero”, mas a regra contempla também as posições políticas sobre
outras questões e mesmo a evolução das espécies ou o heliocentrismo. Se as
escolas privadas poderiam incluir cláusulas contratuais que garantissem a
possibilidade de apresentação de determinados temas em sala de aula, as
públicas teriam que se curvar aos vetos de tantos pais de alunos quantos
quisessem se aproveitar da prerrogativa.
Há projetos em favor
do ESP no Congresso Nacional e em muitas assembleias legislativas. Em Alagoas,
o projeto virou lei. Mas, a rigor, a aprovação da legislação nem é uma
prioridade. Ela serve ao propósito de intimidação de professores e de
estudantes, com um número crescente de casos de docentes afastados de sala de
aula por pressão de grupos retrógrados. E eles difundiram, a partir de meados
de 2015, uma campanha para que os pais encaminhem notificações extrajudiciais
às escolas, para impedir que temas ligados a gênero ou política sejam tocados
em sala de aula.
A campanha pelas
notificações extrajudiciais contra escolas e contra docentes surgiu às margens
do Escola Sem Partido, na direita católica, tendo como iniciador o procurador
Guilherme Schelb. No vídeo em que ensina a preparar a notificação, reproduzido
na página do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira (uma das organizações que
sucederam a antiga TFP), Schelb não se furta a incluir um incentivo material à
defesa da primazia moral da família, citando a possibilidade de obter polpudas
indenizações pecuniárias de professores e colégios.
Estabelece-se, assim,
uma hierarquia estrita entre família e escola, com o predomínio inconteste da
primeira. De um professor português radicado no Paraná, Armindo Moreira,
extraiu-se o embasamento “teórico” para a posição. Num livro publicado em
edição caseira, Professor não é educador,
Moreira desenvolveu a ideia de que a escola que educa está “usurpando uma das
tarefas sagradas da família”. O professor é um mero instrutor, isto é, repassador de conteúdos entendidos como neutros
e objetivos; a tarefa de educar compete “à família, à sociedade e à igreja”. O
livro de Moreira integra a resumida lista de quatro títulos cuja leitura o ESP
indica em seu website.
O slogan “Meus filhos, minhas regras” passou a ser repetido nas
intervenções públicas do grupo. Paródia da histórica bandeira feminista “meu
corpo, minhas regras”, o lema subverte seu sentido original, que é a afirmação
da autonomia e dos direitos individuais das mulheres, colocando em seu lugar a
submissão absoluta das crianças a seus pais, tratadas como se fossem suas
propriedades.
Convergem, na
percepção que o slogan sintetiza,
duas negações. A primeira é a negação do caráter republicano da instituição
escolar. Sua função pedagógica incorpora também (e de forma central) a educação
para o convívio com as diferentes visões de mundo, próprio de uma sociedade
pluralista e democrática. A socialização na escola é importante, entre outros
motivos, porque oferece o contato com valores diversos, ou diversamente
interpretados, daqueles da família. A segunda é a negação do estatuto da
criança como sujeito de direitos – o que inclui, aliás, o direito de conhecer o
mundo e de adquirir os instrumentos para pensar com a própria cabeça. A
autoridade absoluta dos pais, que subjaz às propostas de intimidação dos
educadores, ilustra a caracterização crítica que a teórica feminista Christine
Delphy faz da família, na qual impera um “estado de exceção”: nela, os direitos
de seus integrantes estão suspensos.
Embora o ministro da
Educação do governo golpista, Mendonça Filho, tenha tido que recuar na
demonstração pública de sua simpatia pelo Escola Sem Partido (revogou a
nomeação de um assessor ligado ao grupo e até se manifestou contra a aprovação
dos projetos de lei), a MP do ensino médio deixa claro o rumo que está traçado.
Ela retira a obrigatoriedade de disciplinas como Sociologia e Filosofia, leva
estudantes de 15 anos a escolher áreas de especialização, faz com que muitos deles
possam deixar de estudar até mesmo História e Literatura a partir do segundo
ano. O aumento da carga horária e a proibição de matrícula dos mais novos em
cursos noturnos afastará da educação os jovens que precisam trabalhar.
O interesse é impedir
que se fomente o raciocínio crítico e o questionamento do mundo. Justificam as
mudanças com um discurso de qualificação eficiente para o mercado de trabalho
ou, de maneira mais ampla, da educação como um investimento cujo resultado
líquido seria o desenvolvimento econômico. Claro que a reforma proposta nem
isso alcança. O que eles querem mesmo é uma educação que mantenha os pobres no
seu lugar, como mão de obra barata a ser explorada.
E a educação pode ser
muito mais do que isso. Pode ser um instrumento para reflexão sobre o mundo e o
lugar que nele ocupamos, para a produção de uma consciência crítica que emerge
do diálogo com os outros e com a realidade. Pode ser uma promessa de liberdade.
Tão grande que não apenas promova o desenvolvimento econômico como seja capaz
de questionar em que consiste esse desenvolvimento. É isso que os golpistas
temem e é por isso que, entre os muitos direitos sob ataque, a educação se
destaca.