Regina Dalcastagnè
Imagem: Oswaldo Goeldi |
Em 1956, quando o Brasil
vivia seu momento de euforia desenvolvimentista e o campo literário aplaudia a
publicação de Grande sertão: veredas,
de Guimarães Rosa, o surgimento de um pequeno livro, Contos do imigrante, de Samuel Rawet, passava quase despercebido.
Suas narrativas iam na contramão do que se produzia ou se valorizava então. No
lugar do regionalismo, uma literatura essencialmente urbana; em vez de mitos
fundadores, o dia a dia doloroso de gente comum; substituindo uma escrita
rebuscada, o silêncio constrangedor de experiências que não se podem narrar; contrapondo-se
à imagem da nação que ia rumo ao progresso, a história do que estava ficando
pelo caminho, como restos nas margens das grandes cidades.
Se o livro não causou
grande impacto à época – lembrando que será só nos anos 1970 que o conto e a
temática urbana ganharão espaço, de fato, em nossa literatura – ele adquire
nova força com as releituras, podendo ser apontado como marco para toda uma
linhagem de autores que busca inscrever em suas obras uma reflexão séria sobre
as desigualdades que ainda habitam nossas metrópoles. Penso, especialmente, em
nomes como os de Carolina Maria de Jesus, João Antônio, Luiz Ruffato, Rubens
Figueiredo e Conceição Evaristo. Se há 60 anos a questão era colocada, e se
ainda hoje ela se apresenta como um problema literário, é porque esse continua
sendo um grave desafio político, que, sabemos bem, nem todos os escritores
estão dispostos a enfrentar.
Em Contos do imigrante, Rawet desenhava a situação de deslocamento e
desencontro de um variado conjunto de personagens: imigrantes judeus
e italianos (alguns recém-chegados, outros já “adaptados”), trabalhadores
pobres, favelados e vagabundos – gente que não cabia no projeto de modernização
vigente no país e que ia sendo deixada de lado, sem abrigo (seja na sociedade,
seja nas representações literárias). Fossem imigrantes vindos de longe ou
estrangeiros na própria terra, tinham no espaço de trânsito talvez seu único
lugar possível. Uma perspectiva sombria – embora generosa com aqueles que eram
representados. Nesse volume, como nos livros que viriam a seguir, o escritor mantém
suas personagens em constante movimento, seja pelas ruas da cidade, que, embora
exclua e hostilize, ainda permite o fluxo, seja em torno das convicções
alheias, que, estas sim, ferem e paralisam. Seus narradores e protagonistas
desconfiam das tradições, quando não as renegam abertamente, assumindo as
consequências. E, aqui, é possível incluir a própria tradição literária, uma instituição
que se debate entre a necessidade de manutenção de seus parâmetros e o
imperativo da renovação, sem a qual ela definharia.
A obra de Samuel Rawet é
marcada pela consciência de que a narrativa tradicional não dá conta dessa nova
matéria que ele encontra nas beiradas das cidades, dessas existências
deslocadas. Daí a busca por uma construção narrativa também nova, marcada por
seus entraves, por sua
ansiedade – termo que tomo emprestado do crítico de arte norte-americano Harold
Rosenberg (em Objeto ansioso). Para
Rosenberg, que pensava em alguns nomes do expressionismo abstrato, como
Pollock, De Koonning e Hofmann, a “ansiedade da arte” não estava absolutamente
relacionada com a intensidade das angústias dos artistas, mas sim com a
consciência dolorosa de que se a arte não envolve o criador com as dificuldades
de seu tempo, ela se esgota em sua própria realização. Isso porque, como ele
dizia, “nenhum problema essencial da arte, salvo dificuldades técnicas, pode
ser resolvido somente pela arte”. A ansiedade surgiria, assim, “não como um
reflexo da condição dos artistas, mas como resultado da reflexão que eles fazem
sobre o papel da arte em outras atividades humanas” e se manifestaria,
sobretudo, no questionamento da própria arte.
Um questionamento que
pode ser encontrado tanto nas falas das personagens de Rawet quanto em seu
profundo silêncio, mas que se evidencia já na escolha dos protagonistas que
integrarão sua obra: crianças pobres achincalhadas, velhos cegos, moças
desprezadas pela família, senhoras que não entendem a língua ao seu redor, pessoas
sem nenhum glamour, que circulam anônimas pelas cidades e que não pareceriam
capazes de se estabelecer em uma narrativa. Como já disse, Rawet parece
recolher essa gente no momento mesmo em que o processo de modernização do país
(do qual ele fez parte, como engenheiro calculista na construção de Brasília,
por exemplo) a empurra para fora de seus limites. Seu movimento de acolhida
está implícito em todas as narrativas do livro, mas, como exemplo, trago aqui,
apenas, os contos “Judith” e “Salmo 151”.
Em “Judith”, temos a
história de uma moça judia que é desprezada pela família quando decide, contra
toda a tradição, viver com o homem que ama: um trabalhador não judeu. A
narrativa a apanha no instante exato em que ela volta, desesperada, para pedir
ajuda à irmã. Seu marido havia sido assassinado em meio a uma manifestação
sindical, e seu bebê, recém-nascido, a aguarda na favela, cuidado por uma
vizinha. Mas ali dentro, no conforto dos tapetes e sofás, no jeito vazio e
resignado de “dona de casa judia” de sua irmã, ela não se reconhece, e entende
que o preço a pagar por um retorno seria alto demais: submeter-se a ser o que
não era. No tenso diálogo que não se
efetua com a irmã, Judith percebe que não tem o que lhe dizer e volta, ansiosa
e cheia de esperança, para casa, sabendo que conduzirá a própria vida, escolhendo
os valores que quer respeitar.
Samuel Rawet sempre foi
muito firme ao refutar a tradição e os “valores eternos”, entendendo-os como
formas de controle e de imposição alheia. Sua opinião aparece na posição segura
de algumas personagens, como Judith, ou o velho Caetano, de “Salmo 151”, mas é
explicitada também em seus ensaios, em entrevistas e depoimentos:
Acho que sempre falta
tudo ao homem, daí a sua grandeza. Ele tem que conquistar a cada momento a sua
realidade. O problema é que ignora isso. Falta-lhe a consciência de que sua
consciência é permanente criadora de realidade, entre os limites de nascimento
e morte. Falta-lhe a consciência de sua insignificância no mundo, para ter
realmente o direito de conquistar um significado. Falta-lhe a consciência da
própria morte, para diante dela afirmar seus valores fundamentais, e afastar,
repugnado, os valores eternos que lhe oferecem.
Se em “Judith” a favela é
o “lugar lá fora” da narrativa, “Salmo 151” se passa integralmente dentro dela
e, uma vez que é pela perspectiva de um velho operário cego que acompanharemos
a história, a favela chega até nós através de seus cheiros, seus sons, suas
texturas, seus deslocamentos. Aqui, temos o embate entre o velho sem fé,
Caetano, e o evangélico negro, Gamaliel, que pretende convertê-lo em longas
ladainhas. O diálogo entre os dois vizinhos é composto, basicamente, das
rememorações entrecortadas de um e da recitação bíblica do outro, que parecem
nunca se encontrar. É apenas na dor – o menino de Gamaliel está morrendo ali do
lado, sem atendimento médico – que os dois homens podem compartilhar alguma
coisa, sem epifanias, sem redenção, apenas a compreensão de uma experiência que
nega a segurança de qualquer discurso pronto, seja ele o religioso, seja o
literário.
O que mais impressiona
nessas narrativas é a intensidade dos sentimentos e a sofisticação na
elaboração das personagens, especialmente em sua interação com a cidade, espaço
hierarquizado e ambíguo, que, a um só tempo, pode segregar experiências e permitir
seu fluxo. Há uma tendência na literatura brasileira contemporânea em abordar
os pobres se não de forma estereotipada, ao menos de um modo distante,
recorrendo muitas vezes a um “realismo” que nos coloca diante de gestos e ação,
mas não de pensamentos e reflexão (o que parece área reservada para as
personagens da classe média e das elites). Quantas vezes pessoas como Caetano e
Gamaliel nos foram apresentadas como simples elementos da paisagem, como no
conto “Sarapalha”, de Guimarães Rosa, em que a negra velha apenas compõe a
descrição do espaço, junto ao rio, ao mato e às cercas; ou então como elementos
de distúrbio social, como no conto “Feliz ano novo”, de Rubem Fonseca, por
exemplo?
A vida dos grupos
subalternos tende, assim, a ser representada de forma “monocromática” – como diria
Löic Wacquant (em Os condenados da cidade) – e estática. São vítimas do sistema ou aberrações
violentas. No entanto, sob uma perspectiva menos autocentrada, é possível
vislumbrar entre eles uma infinidade de estratégias de resistência e de
deslocamentos, ou tentativas de deslocamento, no espaço social. A aquiescência
ostensiva à ordem social estabelecida e às suas hierarquias é parte das estratégias
dos dominados para sobreviver num mundo social que lhes é hostil. Mas ela
reveste uma miríade de formas de “resistência cotidiana”, que podem ser
laterais, dissimuladas e desorganizadas, mas que objetivamente recusam as
pretensões dos poderosos à autoridade ou ao controle da riqueza, como
demonstrou James Scott (em Domination and
the Arts of Resistance).
Assim, ao lado dos
discursos públicos, em que a ordem estabelecida é aceita, seguindo o princípio
de que “manda quem pode e obedece quem tem razão”, florescem contra discursos
privados, nos quais a deferência cede lugar à indignação, ao humor ou ao sarcasmo,
como pode ser visto em muitas personagens de Rawet. As implicações dessas
estratégias na existência das personagens, e na economia da narrativa,
tornam-se uma questão crucial para o seu entendimento. Já o modo como elas são
vistas e descritas não deixa de refletir o julgamento que é feito, por vezes de
forma inconsciente, dos integrantes destes grupos. Samuel Rawet parece
fascinado por essas possibilidades, de olhar o mundo a contrapelo, de se
aproximar da vida pela perspectiva daqueles que não querem dominar ninguém.
Por isso mesmo, além de
tomar suas personagens em pleno movimento pelas cidades (personagens que já
trazem inscritas em si as marcas e cicatrizes desse convívio com o espaço
urbano), ele também se quer contaminado por essa experiência. São conhecidas as
perambulações noturnas de Rawet pelas zonas mais sombrias da cidade – becos, bares,
prostíbulos. “Foi nas minhas andanças que reformulei todas as questões, refiz
todas as perguntas, sonhei todos os sonhos”, dizia o autor. É desse trânsito
que ele retira e para onde devolve suas personagens, prenhes de vida. E é nesse
trânsito que ele pretende nos conduzir, convidando o leitor, também, a se
deslocar. Afinal, tudo que para, morre.
Retomando
um escritor ainda mais distante no tempo, mas também comprometido com suas cercanias, Euclides da Cunha, em 30 de dezembro de 1904,
escrevia ao seu pai desde Manaus: “a mais consoladora surpresa do sulista está
no perceber que este nosso Brasil é verdadeiramente grande porque ainda chega
até cá. Realmente, cada vez mais me convenço de que esta deplorável Rua do
Ouvidor é o pior prisma por onde toda a gente vê a nossa terra”. A partir do
momento em que o artista abandona o conforto da Rua do Ouvidor, ou da sua
“perspectiva do alpendre” (nos termos de Roberto Ventura), um imenso campo de
possibilidades se abre ao seu redor. São outras pessoas, outras experiências,
outros significados sobre os quais é preciso aprender, seja para falar sobre
eles, seja para calar. Como não cabe a um criador o silêncio sobre o mundo, ele
pode expressar sua impossibilidade de dizer, a ansiedade diante da própria
obra, o desconforto imposto por um objeto que teima em ser sujeito de sua
história.
Samuel Rawet ensaia esses
passos, para longe do conhecido e do repisado, dobra a esquina para ver o que
seus olhos não alcançam, persegue pelas calçadas e becos uma história que não é
a sua. E lida com ela com o respeito que lhe é devido, sem a arrogância ou a
condescendência dos que se querem sempre mais sofisticados, mais complexos,
mais interessantes do que os outros. Transforma experiências as mais distantes,
de operários, prostitutas, meninos e velhas, em material estético – delicado o
suficiente para contê-las, mas rigoroso o bastante para não cair na armadilha
da pretensão ao universal. Assim, suas personagens não se tornam “tipos”, e
tampouco “indivíduos” com uma singularidade acima de qualquer constrangimento
social. São “casos particulares do possível”, nos termos de Gaston Bachelard (em
O novo espírito científico), o
“possível” sendo, aqui, os determinantes estruturais da situação de cada um. É
a forma pela qual a representação artística se torna capaz tanto de acolher a
diversidade da experiência social, em sociedades marcadas pelas desigualdades,
quanto de evitar aplainar a complexidade das vivências dos integrantes dos
grupos dominados, reduzindo-as aos efeitos da própria dominação.
Vivendo em tempos de
suspeição, e colocando sob suspeita suas próprias representações, Rawet se
desloca em relação a sua posição de origem para alcançar uma perspectiva não
mais completa (não seria essa sua intenção), mas certamente mais complexa sobre
o mundo. Ao mesmo tempo em que se movimenta – para longe da tradição, em
direção a outras falas, ao lado de suas próprias personagens – ele promove uma
espécie de alargamento no universo dos possíveis. Não é pouco a se dizer sobre
uma narrativa em um período de profundo investimento no obscurantismo, como o
que estamos vivendo agora.