A
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM LYGIA FAGUNDES TELLES
Entrevidas, de Ana Maria Miolino |
A
necessidade de reflexão em torno da sociedade brasileira no que diz respeito à
situação das mulheres no âmbito privado e público torna-se cada vez mais
necessária devido à problemática relação deste tema com a ordenação social e
política. A partir do conto de Lygia Fagundes Telles (1923), A Confissão
de Leontina (2010), refletiremos sobre o porquê da constante banalização da
violência na conjuntura social brasileira, que trata os eventos violentos ocorridos
com as mulheres como algo corriqueiro ou até mesmo tido como “normal”.
O caráter das relações
entre homens e mulheres se configura de cima para baixo, isto é, o homem é tido
como superior e a mulher inferior em todas as relações possíveis. Diante dessa
construção de superioridade masculina, vários comportamentos violentos são
“admissíveis” em nossa sociedade, pois são vistos como “corretivos” para
mulheres que de alguma forma escapam do imaginário da mulher ideal, uma vez
que, entend-se violência como uma força social que estrutura as relações
interpessoais, ações coletivas e relações sociais de modo geral, principalmente
no contexto da análise das situações da violência contra a mulher e de gênero, de acordo com Lourdes Maria Bandeira..
Nesse contexto, no
conto A confissão de Leontina (2010), apresenta-se a história de Leontina,
que desde o começo da vida, a qual é contada em primeira pessoa, mostra o
caráter triste e injusto das mulheres em sociedade, seja na própria figura, que
foi parar na cadeia por um crime cometido em legítima defesa, seja pela figura
das outras mulheres da trama, como por exemplo a sua mãe, que trabalhou
incessantemente até a morte para proporcionar educação a Pedro, seu primo, ao
passo que Leontina não teve direito a nenhum ensino formal.
No
início da narrativa, já percebemos a aura de desrespeito que ronda nos meios de
comunicação que divulgam o crime cometido: “O jornal me chama de assassina
ladrona e tem um que até deu o meu retrato dizendo que eu era a Messalina da
boca-do-lixo.” (TELLES, 2010, p. 75). Continuadamente, Leontina fala da
impossibilidade de se acreditar na justiça, logo uma justiça feita por homens:
“Respondi então que confiança podia ter nessa justiça que vem dos homens se
nunca nenhum homem foi justo pra mim. Nenhum.” (TELLES, 2010, p. 75).
Além disso, ela expõe
as torturas e humilhações que passa na cadeia, mostrando a vulnerabilidade de
seu corpo, e, apesar de ter trabalhado excessivamente no âmbito doméstico e
público, mesmo assim é chamada de vagabunda, tanto por ter exercido um trabalho
dentro de casa, o qual não possui nenhum reconhecimento, quanto por seu
trabalho fora de casa ser tido como indigno, como comprova o trecho a seguir:
“Sei que trabalhei tanto e aqui me chamam de vagabunda e me dão choque até lá
dentro. Sem falar nas porcarias que eles obrigam a gente a fazer.” (TELLES,
2010, p. 75).
Leontina expressa a dor da lembrança comparando com a
dor da tortura na cadeia, e, ao lembrar, constata que a dor maior é em
decorrência das lembranças de seu passado: “Engraçado é que agora que estou
trancafiada vivo me lembrando daquele tempo e essa lembrança dói mais do que
quando me dependuraram de um jeito que fiquei azul de dor”.
As atribuições a ambos
os sexos são vistas em todos os aspectos da sociedade, sendo que até as
próprias mulheres acabam internalizando tal dominação, e, pela constante
difusão desse discurso, não percebem que acabam por reafirmá-lo, a medida que
os dominados aplicam à àquilo que os domina esquemas que são produtos da dominação,
como nos aponta Pierre Bourdieu, em Dominação
Masculina,(2012), pois seus pensamentos e suas percepções estão estruturados
em conformidade com as estruturas mesmas da relação da dominação que lhe é imposta,
seus atos de conhecimento, abam por ser atos de reconhecimento e submissão.
A internalização do
discurso do dominador, que seria a própria mulher internalizar a
“superioridade” do homem, ocorre na figura de sua mãe, que nega a educação e o
bem estar para a filha, que trabalhava como escrava, para proporcionar tudo a
Pedro: “Então me lembrei daquela vez que teve galinha e minha mãe deu o peito
pra ele, fiquei com o pescoço. Não me comprava sapato pra que ele pudesse ler
livros. E agora ele fugia de mim como se eu tivesse lepra.” (TELLES, 2010, p.
77).
No decorrer do contar
da sua história, notamos que todas as desgraças que ocorreram na vida de Leontina e na vida de sua família
foram por causa de Pedro, como a morte da mãe, que trabalhava sem parar para
lhe fornecer educação em uma escola particular, seja pela irmã, que ficou com
problemas mentais desde o dia que ele a derrubou no chão e ela morreu no dia do
discurso dado por ele na escola, porque não queria levá-la por vergonha, seja
por Leontina, que ficou desamparada no mundo e dele só recebeu promessas e
indiferença.
No desamparo da protagonista,
com o sumiço de todos, ela seguiu viagem para a cidade grande que, sem nenhum
tipo de instrução, acabou jogada à própria sorte, tendo que trabalhar na
prostituição para não morrer de fome. As outras mulheres que, assim como ela,
trabalhavam no meretrício, eram totalmente vulneráveis a qualquer ato de
violência que os homens pudessem realizar:
Os tipos que
transavam pela zona eram todos sem futuro. Agradeça a Deus se algum deles não
se lembram de te jogar pela janela ou te enfiar uma faca na barriga. E contou
um montão de casos que viu com os próprios olhos de pequenas assassinadas por
dá cá aquela palha. (TELLES, 2010, p. 92).
A insegurança que ronda
a vida dessas mulheres demostra o quão são esquecidas e ignoradas pelo poder
vigente e como a presença da violência se torna um ato naturalizado. De acordo
com Bandeira (2017):
A quem se dirige a
violência em nossa sociedade? No geral, identifica-se o corpo feminino
considerado como ‘espaço preferencial’, não apenas pelo volume de assassinatos
de mulheres que vem ocorrendo nas últimas décadas, como também pelo grau de
barbárie ao qual tem sido submetido. (BANDEIRA, 2017, p. 21).
Em consonância com esse
posicionamento, Leontina estava olhando um vestido na vitrine de uma loja e sem
ter dinheiro para pagar ela acaba por aceitar o vestido de um homem que a chama
para um passeio de carro e ela, inocentemente aceita, com o intuito de pegar
uma carona até sua casa, porém, o homem que dirigia o carro a levou para uma
estrada isolada e começou a agarrá-la e a forçá-la a ter relações sexuais, pois
o vestido por ela aceito foi como um pagamento dado por ele para ter direito
sobre o seu corpo, só que ao passo que ela nega o sexo e diz até que vai pagar
o vestido a ele, ele começa a espancá-la fortemente:
Agora estava
apanhando que nem a pior das vagabundas. Me deixa ir embora pelo amor de Deus
me deixa ir embora pedi me abaixando pra pegar minha bolsa. Foi então que num
relâmpago o punho de velho desceu fechado na minha cara. Foi como uma bomba.
Meu miolo estalou de dor e não vi mais nada. De repente me deu um
estremecimento porque uma coisa me disse que o velho ia acabar me matando.
(TELLES, 2010, p. 97).
Com medo e certeza da
morte, ela se move para o banco de trás do carro e localiza uma barra de ferro
e bate repetidas vezes no velho, até que sai do carro e consegue ir para casa.
Como acreditava que não tinha matado o homem, voltou no outro dia
tranquilamente à loja onde o homem havia comprado o vestido, para pegar seus
pertences deixados no dia anterior, quando a vendedora a reconheceu e a
entregou para o policial, que efetuou sua prisão.
A gravidade dessa situação é perceptível em todas as relações sociais
que envolvem mulheres e homens. Os atos sexuais também servem para reafirmar o
desejo de supremacia do masculino sobre o feminino, que tem como base o caráter
ativo do homem e o caráter passivo da mulher, pois “o ato sexual em si é
concebido pelos homens como uma forma de dominação, de apropriação, de ‘posse’”.
(BOURDIEU, 2012, p. 29-30). Decorrente dessa ideia, justifica-se todo e
qualquer ato sexual consentido ou não pela mulher, desencadeando os assédios e
o estupro.
De acordo com o que foi
exposto, percebemos a revolta do homem que espancava Leontina por ela ter se
negado ao ato sexual e como nos mostra o conceito de dominação masculina sobre
o corpo da mulher, essa negação ao ato sexual foi uma afronta para o poder
dele, uma vez que o sexo é considerado um componente de poder masculino, já que
“são esses ‘componentes’ de controle e de poder que estruturam as dinâmicas
relacionais entre homens e mulheres, e quando esse ‘poder’ masculino é abalado
ou quebrado, recorre-se à violência.” (BANDEIRA, 2017, p. 22).
A distorção do ato
criminoso, colocando a culpa inteiramente na personagem central, mostra que por
ela ser pobre e prostituta não tem direito a se retratar para expor o seu lado
na história, sem falar que o homem morto era influente e dono de um jornal, ficando
a palavra da mídia e do poder masculino contra o testemunho feminino, que
permanece nas margens. Além de que a construção das personagens femininas expõe
a legitimação da violência para com elas por conta do comportamento
transgressor que contrasta com o ideal construído em torno da mulher.
No conto em discussão,
compreendemos o quão a mulher é vulnerável e como isso repercute na figura da
mulher solteira e pobre, o que propicia ainda mais a invisibilidade da
violência. As suas companheiras de trabalho, por se relacionarem com vários
homens, perdem direitos e o respeito diante da sociedade machista, tornando-se
escórias que os homens podem dominar e fazer o que bem quiserem, consolidando a
prática da violência como rotineira, banal e naturalizada.
Trabalhar com
narrativas que exploram esse tipo de temática é não deixar que essa ferida
aberta seja ignorada, pois inúmeras feridas ainda estão sendo causadas nos
tempos atuais, seja fisicamente, psicologicamente ou simbolicamente. A
compreensão do que seja essa dominação e a violência que dela decorre é um
passo para se compreender e contornar essa realidade, possibilitando a
visibilidade da voz dessa maioria silenciada.
Referências
BANDEIRA,
Lourdes Maria. Violência, gênero e poder: múltiplas faces. In: STEVENS, Cristina (Org.). Mulheres e Violências: Interseccionalidades.
Brasília, DF: Technopolitik, 2017. p.
14-35.
BOURDIEU,
Pierre. A Dominação Masculina. Trad.
Maria Helena Kühner. 11ª ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2012.
TELLES,
Lygia Fagundes. A
estrutura da bolha de sabão. Editora Companhia das Letras, 2010.