13 de abril de 2019


A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM LYGIA FAGUNDES TELLES

Andressa Estrela

Entrevidas, de Ana Maria Miolino


            A necessidade de reflexão em torno da sociedade brasileira no que diz respeito à situação das mulheres no âmbito privado e público torna-se cada vez mais necessária devido à problemática relação deste tema com a ordenação social e política. A partir do conto de Lygia Fagundes Telles (1923), A Confissão de Leontina (2010), refletiremos sobre o porquê da constante banalização da violência na conjuntura social brasileira, que trata os eventos violentos ocorridos com as mulheres como algo corriqueiro ou até mesmo tido como “normal”.
O caráter das relações entre homens e mulheres se configura de cima para baixo, isto é, o homem é tido como superior e a mulher inferior em todas as relações possíveis. Diante dessa construção de superioridade masculina, vários comportamentos violentos são “admissíveis” em nossa sociedade, pois são vistos como “corretivos” para mulheres que de alguma forma escapam do imaginário da mulher ideal, uma vez que, entend-se violência como uma força social que estrutura as relações interpessoais, ações coletivas e relações sociais de modo geral, principalmente no contexto da análise das situações da violência contra a mulher e de gênero,  de acordo com Lourdes Maria Bandeira..
Nesse contexto, no conto A confissão de Leontina (2010), apresenta-se a história de Leontina, que desde o começo da vida, a qual é contada em primeira pessoa, mostra o caráter triste e injusto das mulheres em sociedade, seja na própria figura, que foi parar na cadeia por um crime cometido em legítima defesa, seja pela figura das outras mulheres da trama, como por exemplo a sua mãe, que trabalhou incessantemente até a morte para proporcionar educação a Pedro, seu primo, ao passo que Leontina não teve direito a nenhum ensino formal.
            No início da narrativa, já percebemos a aura de desrespeito que ronda nos meios de comunicação que divulgam o crime cometido: “O jornal me chama de assassina ladrona e tem um que até deu o meu retrato dizendo que eu era a Messalina da boca-do-lixo.” (TELLES, 2010, p. 75). Continuadamente, Leontina fala da impossibilidade de se acreditar na justiça, logo uma justiça feita por homens: “Respondi então que confiança podia ter nessa justiça que vem dos homens se nunca nenhum homem foi justo pra mim. Nenhum.” (TELLES, 2010, p. 75).
Além disso, ela expõe as torturas e humilhações que passa na cadeia, mostrando a vulnerabilidade de seu corpo, e, apesar de ter trabalhado excessivamente no âmbito doméstico e público, mesmo assim é chamada de vagabunda, tanto por ter exercido um trabalho dentro de casa, o qual não possui nenhum reconhecimento, quanto por seu trabalho fora de casa ser tido como indigno, como comprova o trecho a seguir: “Sei que trabalhei tanto e aqui me chamam de vagabunda e me dão choque até lá dentro. Sem falar nas porcarias que eles obrigam a gente a fazer.” (TELLES, 2010, p. 75).
Leontina expressa a dor da lembrança comparando com a dor da tortura na cadeia, e, ao lembrar, constata que a dor maior é em decorrência das lembranças de seu passado: “Engraçado é que agora que estou trancafiada vivo me lembrando daquele tempo e essa lembrança dói mais do que quando me dependuraram de um jeito que fiquei azul de dor”.
As atribuições a ambos os sexos são vistas em todos os aspectos da sociedade, sendo que até as próprias mulheres acabam internalizando tal dominação, e, pela constante difusão desse discurso, não percebem que acabam por reafirmá-lo, a medida que os dominados aplicam à àquilo que os domina esquemas que são produtos da dominação, como nos aponta Pierre Bourdieu, em Dominação Masculina,(2012), pois seus pensamentos e suas percepções estão estruturados em conformidade com as estruturas mesmas da relação da dominação que lhe é imposta, seus atos de conhecimento, abam por ser atos de reconhecimento e submissão.
A internalização do discurso do dominador, que seria a própria mulher internalizar a “superioridade” do homem, ocorre na figura de sua mãe, que nega a educação e o bem estar para a filha, que trabalhava como escrava, para proporcionar tudo a Pedro: “Então me lembrei daquela vez que teve galinha e minha mãe deu o peito pra ele, fiquei com o pescoço. Não me comprava sapato pra que ele pudesse ler livros. E agora ele fugia de mim como se eu tivesse lepra.” (TELLES, 2010, p. 77).
No decorrer do contar da sua história, notamos que todas as desgraças que ocorreram na  vida de Leontina e na vida de sua família foram por causa de Pedro, como a morte da mãe, que trabalhava sem parar para lhe fornecer educação em uma escola particular, seja pela irmã, que ficou com problemas mentais desde o dia que ele a derrubou no chão e ela morreu no dia do discurso dado por ele na escola, porque não queria levá-la por vergonha, seja por Leontina, que ficou desamparada no mundo e dele só recebeu promessas e indiferença.
No desamparo da protagonista, com o sumiço de todos, ela seguiu viagem para a cidade grande que, sem nenhum tipo de instrução, acabou jogada à própria sorte, tendo que trabalhar na prostituição para não morrer de fome. As outras mulheres que, assim como ela, trabalhavam no meretrício, eram totalmente vulneráveis a qualquer ato de violência que os homens pudessem realizar:

Os tipos que transavam pela zona eram todos sem futuro. Agradeça a Deus se algum deles não se lembram de te jogar pela janela ou te enfiar uma faca na barriga. E contou um montão de casos que viu com os próprios olhos de pequenas assassinadas por dá cá aquela palha. (TELLES, 2010, p. 92).


A insegurança que ronda a vida dessas mulheres demostra o quão são esquecidas e ignoradas pelo poder vigente e como a presença da violência se torna um ato naturalizado. De acordo com Bandeira (2017):

A quem se dirige a violência em nossa sociedade? No geral, identifica-se o corpo feminino considerado como ‘espaço preferencial’, não apenas pelo volume de assassinatos de mulheres que vem ocorrendo nas últimas décadas, como também pelo grau de barbárie ao qual tem sido submetido. (BANDEIRA, 2017, p. 21).


Em consonância com esse posicionamento, Leontina estava olhando um vestido na vitrine de uma loja e sem ter dinheiro para pagar ela acaba por aceitar o vestido de um homem que a chama para um passeio de carro e ela, inocentemente aceita, com o intuito de pegar uma carona até sua casa, porém, o homem que dirigia o carro a levou para uma estrada isolada e começou a agarrá-la e a forçá-la a ter relações sexuais, pois o vestido por ela aceito foi como um pagamento dado por ele para ter direito sobre o seu corpo, só que ao passo que ela nega o sexo e diz até que vai pagar o vestido a ele, ele começa a espancá-la fortemente:

Agora estava apanhando que nem a pior das vagabundas. Me deixa ir embora pelo amor de Deus me deixa ir embora pedi me abaixando pra pegar minha bolsa. Foi então que num relâmpago o punho de velho desceu fechado na minha cara. Foi como uma bomba. Meu miolo estalou de dor e não vi mais nada. De repente me deu um estremecimento porque uma coisa me disse que o velho ia acabar me matando. (TELLES, 2010, p. 97).


Com medo e certeza da morte, ela se move para o banco de trás do carro e localiza uma barra de ferro e bate repetidas vezes no velho, até que sai do carro e consegue ir para casa. Como acreditava que não tinha matado o homem, voltou no outro dia tranquilamente à loja onde o homem havia comprado o vestido, para pegar seus pertences deixados no dia anterior, quando a vendedora a reconheceu e a entregou para o policial, que efetuou sua prisão.
A gravidade dessa situação é perceptível em todas as relações sociais que envolvem mulheres e homens. Os atos sexuais também servem para reafirmar o desejo de supremacia do masculino sobre o feminino, que tem como base o caráter ativo do homem e o caráter passivo da mulher, pois “o ato sexual em si é concebido pelos homens como uma forma de dominação, de apropriação, de ‘posse’”. (BOURDIEU, 2012, p. 29-30). Decorrente dessa ideia, justifica-se todo e qualquer ato sexual consentido ou não pela mulher, desencadeando os assédios e o estupro.
De acordo com o que foi exposto, percebemos a revolta do homem que espancava Leontina por ela ter se negado ao ato sexual e como nos mostra o conceito de dominação masculina sobre o corpo da mulher, essa negação ao ato sexual foi uma afronta para o poder dele, uma vez que o sexo é considerado um componente de poder masculino, já que “são esses ‘componentes’ de controle e de poder que estruturam as dinâmicas relacionais entre homens e mulheres, e quando esse ‘poder’ masculino é abalado ou quebrado, recorre-se à violência.” (BANDEIRA, 2017, p. 22).
A distorção do ato criminoso, colocando a culpa inteiramente na personagem central, mostra que por ela ser pobre e prostituta não tem direito a se retratar para expor o seu lado na história, sem falar que o homem morto era influente e dono de um jornal, ficando a palavra da mídia e do poder masculino contra o testemunho feminino, que permanece nas margens. Além de que a construção das personagens femininas expõe a legitimação da violência para com elas por conta do comportamento transgressor que contrasta com o ideal construído em torno da mulher.
No conto em discussão, compreendemos o quão a mulher é vulnerável e como isso repercute na figura da mulher solteira e pobre, o que propicia ainda mais a invisibilidade da violência. As suas companheiras de trabalho, por se relacionarem com vários homens, perdem direitos e o respeito diante da sociedade machista, tornando-se escórias que os homens podem dominar e fazer o que bem quiserem, consolidando a prática da violência como rotineira, banal e naturalizada.
Trabalhar com narrativas que exploram esse tipo de temática é não deixar que essa ferida aberta seja ignorada, pois inúmeras feridas ainda estão sendo causadas nos tempos atuais, seja fisicamente, psicologicamente ou simbolicamente. A compreensão do que seja essa dominação e a violência que dela decorre é um passo para se compreender e contornar essa realidade, possibilitando a visibilidade da voz dessa maioria silenciada.

Referências
BANDEIRA, Lourdes Maria. Violência, gênero e poder: múltiplas faces. In: STEVENS, Cristina (Org.). Mulheres e Violências: Interseccionalidades. Brasília, DF: Technopolitik, 2017. p. 14-35.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 11ª ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2012.

TELLES, Lygia Fagundes. A estrutura da bolha de sabão. Editora Companhia das Letras, 2010.

6 de abril de 2019


Amor: lgbtfobia, educação e literatura entre a negação do desejo e o fim da imaginação



Anderson da Mata


Imagem: Banksi


A identidade nacional de um país tem na bandeira oficial um de seus principais símbolos. Na bandeira brasileira, adotada apenas quatro dias após a proclamação da república, estão ali, como herança da bandeira imperial, as cores verde e amarela, que, remetendo aos Habsburgo e Bragança, seriam reinterpretadas como, respectivamente a floresta e o ouro, além do azul do céu e da posição das estrelas da manhã da proclamação da república, em 15 de novembro de 1889. Já a inscrição, na faixa branca que corta ao meio o círculo azul, indicaria a inspiração positivista da bandeira brasileira, e, claro, da primeira república, sendo conhecida de todos os brasileiros: “Ordem e progresso”. O golpe militar que resultou na nossa república adotou o lema que viria a ser retomado, de forma quase farsesca, pelo governo golpista que tomou o poder em 2016. Michel Temer também assumiu o “Ordem e progresso”, como a marca simbólica do seu governo, na forma de um slogan em que “ordem” ganha um peso policial, mais que tudo, e “progresso” é uma tradução mal-ajambrada para uma agenda econômica liberal, de acentuação de desigualdades em nome do enriquecimento de poucos.
            Falo de símbolos porque eles têm força e fundamentam ações, assentando-se numa dimensão da imaginação à qual, muitas vezes, a razão, pautada em argumentos e lógica, não tem acesso. É aí que muitas das batalhas políticas do nosso tempo têm sido perdidas para os autoritarismos e para os novos fascismos. E os símbolos significam muito pelo que dizem, mas também pelo que deixam de fora do que poderiam simbolizar. E é aqui que pretendo fazer uma inflexão em direção ao tema específico deste texto. O que pouco se fala sobre a inspiração positivista da nossa primeira república, tornada explícita na bandeira, é que o lema de Auguste Comte era: “O amor como princípio e a ordem como base; o progresso como meta.” O princípio, justamente o princípio, ficou de fora da nossa bandeira.
Em artigo publicado na Revista Cult na edição de novembro de 2014, Richard Miskolci, hoje professor da UNIFESP, defendeu que o “amor” foi suprimido porque os “viris defensores da ordem” se ocuparam de “apagar qualquer traço de desejo no novo regime”. Eu poderia dizer que é paradoxal que em um país que tem a afetividade e a hospitalidade como uma das suas marcas mais conhecidas mundo afora, exista um esforço de apagamento do desejo. Poderia ainda acrescentar que uma das teses mais repetidas sobre o modus operandi da sociedade brasileira, a cordialidade, no sentido que lhe deu Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, também estaria em conflito com essa hipótese do apagamento do desejo. Mas não está: é exatamente essa cordialidade que guarda em si um potencial destrutivo de violência, em uma complexa mistura entre público e privado, na qual o afeto é apenas um vetor que pode inclusive catalisar a violência, a brutalidade, a opressão, a intolerância. Mas não vou me estender nessa questão, pois essa introdução já pavimenta o trecho necessário do caminho que quero percorrer.
O que me interessa aqui é tratar de como essa dimensão do desejo, historicamente silenciada, foi tomada como um dos grandes inimigos da república no último decênio e quais são as consequências que podemos ter a partir daí. Para isso, o melhor exemplo que podemos tomar é também aquele mais ruidoso e politicamente visível: a inacreditável polêmica sobre o programa Escola sem Homofobia. Inacreditável não porque não devêssemos esperar uma reação à tentativa de falar de lgbtfobia em um país em que a população em geral se recusa a se reconhecer violenta, embora tenha a violência como um dos principais problemas a serem resolvidos. Era previsível que um projeto contra lgbtfobia nas escolas pudesse gerar algum desconforto na comunidade escolar e na sociedade, de perfil conservador, de uma forma geral. O que torna a polêmica inacreditável é o modo como ela foi trazida à público e terminou selando a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da república. Um presidente eleito por ser homofóbico.
Como parte do programa Brasil sem Homofobia, da então secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, lançado em 2004, que já parece historicamente tão distante, o Ministério da Educação, em parceria com ONGs e com apoio do Ministério Público, começou a elaborar o já conhecido material para orientar professores a tratar do preconceito contra a população lgbt, por solicitação da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, com base em relatório “Juventudes e sexualidade”, da UNESCO de uma pesquisa feita em 2000, e publicada no mesmo ano de 2004, que revelava “39,6% dos estudantes masculinos não gostariam de ter um colega de classe homossexual, 35,2% dos pais não gostariam que seus filhos tivessem um colega de classe homossexual, e 60% das(os) professoras(es) afirmaram não ter conhecimento o suficiente para lidar com a questão da homossexualidade na sala de aula”[1]. Apelidado jocosamente de “kit gay” por fundamentalistas evangélicos, com apoio de parte da imprensa, que repetia o termo sem constrangimento, o material vinha justamente suprir uma falta: orientar os professores que se declaravam incapazes de tratar do tema. O restante da história em conhecida: plantando uma notícia falsa na imprensa, ao mostrar na imprensa e Senado um material que não era efetivamente aquele produzido pelo Ministério da Educação, Magno Malta, um senador evangélico com grande apelo midiático, e conhecido por sua postura estridente e moralista com relação a questões de comportamento, conseguiu angariar a indignação não só das forças políticas evangélicas e cristãs, entre as quais o, àquela altura, inexpressivo Jair Bolsonaro, mas também de outros setores da sociedade. Constrangeu a então presidenta Dilma Rousseff, que tinha nos evangélicos, parte importante de sua base de apoio parlamentar, a se posicionar sobre o assunto. E Dilma capitulou, censurando previamente o material.[2]
O que espanta em todo esse processo é que o argumento aceito pelos envolvidos no processo, à exceção daqueles que trabalharam na elaboração do material, é o de que não caberia falar de sexualidade com crianças e adolescentes. “Não permitirei propaganda de opções sexuais”, disse Dilma àquela altura, em uma evidente confusão conceitual, litúrgica, ética e de lugar de fala. Houve em todo esse processo uma negação da presença do desejo e do poder transformador que ele tem justamente na fase em que ele é descoberto – e da possibilidade de crianças e adolescentes falarem sobre ele. Dali, de 2011, em diante, parte importante da pauta de debates políticos no Brasil, sobretudo em relação à educação (Plano Nacional de Educação, Planos Estaduais de Educação, Base Nacional Curricular Comum e Exame Nacional de Ensino Médio) foi atravessada pela censura moralista de qualquer menção a gênero e sexualidade, sempre tratadas em bloco. Foi também nesse contexto que surgiu o movimento “Escola sem partido”, hoje projeto de lei em tramitação na Câmara, que assumiu, ao longo dos anos, a chamada “ideologia de gênero”, seu principal inimigo.
E assim chegamos a 2018, um ano de pesadelo para a população LGBT do país. A campanha presidencial se fez, em grande medida, com uma retórica misógina e homofóbica e transfóbica[3] (e eu considero a homofobia e a transfobia, nesse caso dos discursos e personagens aqui citados, uma das expressões da misoginia, pois seu modo de expressão é o do ódio, antes de qualquer outra coisa, pelo que da mulher se pode reconhecer em um homem). Jair Bolsonaro, que ganhou visibilidade na mídia brasileira por suas declarações homofóbicas, foi alçado a candidato da lgbtfobia, tomada por alguns como um traço de bom-humor e por tantos outros como capacidade de falar a “verdade”. “O Brasil não gosta de homossexuais”, ele disse em entrevista ao ator e ativista britânico Stephen Fry, no hoje já distante 2013[4]. Talvez Bolsonaro tenha razão, pois foi esse tipo de fala que lhe deu o lastro político necessário para conquistar a confiança de 55% dos brasileiros que optaram por votar no último outubro. Bolsonaro não foi eleito por suas confusas propostas para a economia, não foi eleito para o progresso. Talvez tenha sido eleito para a ordem, pela sua simplificação nas propostas para a segurança pública. Mas também foi eleito para a ordem justamente naquele ponto em que a ordem é uma forma de controle do desejo, com violência e ódio. E, definitivamente, Jair Bolsonaro não foi eleito para o amor. O fato de o amor ter sido expresso no slogan de seu necro-governo, “Pátria amada, Brasil”, é uma nova página nessa história das idas e vindas das palavras inscritas sobre os símbolos nacionais e mais um exemplo do uso impróprio da língua que ele e seus seguidores têm feito, da qual o termo “homem de bem” para descrever pessoas violentas, preconceituosas e, eventualmente, criminosas, é o caso mais emblemático.
A pergunta primordial que nos fazemos é: - Como podemos viver num país que quer Bolsonaro?”. Mas, talvez, a pergunta que pode nos mobilizar é: - O que podemos fazer para não termos de viver num país que quer Bolsonaro?
Como já havia sugerido, há uma disputa pela imaginação, não apenas pelo imaginário, ou seja, não só pelos símbolos que os compõem, mas pelo modo de elaborá-los. É aí que entram questões políticas para as quais as políticas públicas para a educação, para a cultura e, especificamente, a leitura são fundamentais. Em 1998, a escritora indiana Arundhati Roy, assinou um ensaio intitulado “O fim da imaginação”[5], em que pontificava que o entusiasmo com a ascensão da Índia ao grupo de potências nucleares, àquela altura, era um sintoma do fim da capacidade de imaginar: se o futuro passava a ser medido pela sua própria aniquilação, não restaria lugar para a potência da imaginação. Vinte anos depois, em novembro de 2018, Ligia Diniz escreveu, no El País[6], sobre como a imaginação se alimentou do rancor durante essas eleições. E defendeu que a arte possibilita a “vivência extrema das diferenças, que proporciona um reencontro modificado consigo mesmo”. A percepção de Roy de que o culto às armas é a contramão da possibilidade de imaginar é preciso. Já Diniz, sem se deixar seduzir pela retórica do fim, se encontra com Roy na defesa da imaginação como espaço de liberdade, posicionando-se, por sua vez, em favor da leitura de literatura como uma experiência capaz de afetar esses tempos sombrios e o acúmulo de rancor.
Não é um acaso, portanto, que as artes tenham sido um alvo preferencial dos grupos conservadores que ganharam, até aqui, essa disputa pela imaginação: dos filmetes do Escola sem homofobia, passando por exposições ao redor do país (o caso da Queer museum foi o mais ruidoso, mas não o único) e, durante a campanha eleitoral, a condenação de um livro de Helene Bruller e do cartunista Zit, brandido por Bolsonaro como um panfleto de devassidão na bancada do Jornal Nacional, da Rede Globo, para milhões de pessoas, que, subitamente, se sentiram autorizadas a fiscalizar e censurar bibliotecas públicas e escolares, fotografando seus acervos e exigindo a retirada de livros de suas estantes. Agora, com a Escola sem partido, que, aprovada ou não pela Câmara, legitimada ou não pelo Supremo Tribunal Federal, já é uma realidade como força política no país, com adesão de centenas de Procuradores Federais, querem atacar a educação tolhendo o espaço da imaginação, que é justamente aquele em que as transgressões são possíveis e, mais importante, em que a empatia pode se construir. Não essa empatia negativa, de sedução pelo vilão, como ocorreu com a figura de Bolsonaro (e, antes dele, de Eduardo Cunha), os chamados “malvados favoritos” cuja miséria ética é reconhecida pelos apoiadores, que, no entanto, os usam para descarregar ali toda sua energia negativa; mas a empatia que permite uma verdadeira formação cidadã, de respeito ao outro, a todos e a si mesmo, sem que um seja feito em detrimento do outro.
Voltando à questão da lgbtfobia, e do que podemos esperar a partir daqui, é preciso, primeiro, pontuar que ela não é uma novidade no Brasil. A cada 19 horas um LGBT é morto no Brasil, de acordo com os levantamentos feitos pelo Grupo Gay da Bahia. Porém, se havia um espaço para ampliação de direitos e construção de redes de proteção legais e simbólicas à população LGBT, hoje isso tudo está sob ameaça diante de um governo que foi eleito com uma pauta abertamente fóbica em relação a nós. Onde resistir? – podemos nos perguntar. Talvez um sinal tenha sido dado no episódio que envolveu a prova do Enem, aplicada no final de 2018, logo após as eleições. Entre as muitas questões “censuradas” pelo presidente eleito e seus apoiadores, duas chamaram mais atenção. Não por acaso, as duas tratavam da população LGBT. Tampouco é por acaso que as duas estivessem na prova de Linguagens, códigos e suas tecnologias. A língua – e dentro dela sua literatura – é um lugar de resistência e será feita de campo de batalha. Sintoma disso foi a comissão de três homens brancos, três cavaleiros guardiões da ordem, nomeados para atuarem como censores da prova a partir de 2019.   
Em que pesem as críticas à capacidade de uma prova de questões múltipla escolha conseguir afetar significativamente a formação de um jovem, é preciso reconhecer que a reação à presença do Pajubá, um dialeto gay que mistura a língua portuguesa com itens lexicais derivados do iorubá, foi sintomática: era um debate sobre dialetos, não sobre gays, lésbicas ou transexuais, mas houve uma forte onda da opinião pública, puxada pelo próprio presidente eleito e sua família, contra a mera possibilidade de se conhecer que LGBTs existem, e falam, e como diversos outros grupos sociais, têm uma linguagem própria. Além dessa questão, houve ainda uma segunda alusiva à comunidade LGBT, que trazia um trecho de um conto de Natália Borges Polesso, “Vó, a senhora é lésbica?”. Publicado em 2015, em Amora, o conto trata de como uma adolescente, a se descobrir lésbica, ouve sua avó contar sobre sua própria namorada. O título do conto é uma pergunta e a narrativa é mesmo mais interrogativa do que declaratória. De forma inteligente, a prova questionava sobre os silêncios da história. E é aí que a disputa pode ser ganha: os silêncios são espaços em que o leitor entra com a imaginação de forma mais contundente e é capaz de construir uma relação emocional, afetiva, empática com as experiências – de desejo, diga-se – narradas naquela história, da qual pode voltar diferente.
“O que é lésbica?” é uma das perguntas do conto. Construir essas definições – e essas perguntas – é fundamental, e é isso que o projeto lgbtfóbico de Bolsonaro, da Escola Sem Partido, de Carlos Vélez querem atacar: o desejo e a imaginação. As brigas hoje se dão por palavras, no campo de batalha da linguagem. Não se pode usar as palavras gênero e sexualidade. Nem homossexualidade. Muito menos gays, lésbicas, travestis, transexuais. Mas ainda se pode falar em literatura, em teatro, em cinema, em arte. Esse é o nosso lugar, como professores de literatura, para resistir a um tempo em que a lgbtfobia, sem sequer ter sofrido reais abalos que resultassem em significativa diminuição da violência contra a vida de lgbts, tornou-se uma bandeira desse chamado “novo Brasil”, simbolicamente consolidado com a eleição de Jair Bolsonaro, mas que veio se formatando antes, com hesitações políticas, com concessões às redações movidas pelo ódio e, talvez, com a marca de um projeto de república avessa ao desejo.
Antes de encerrar, não poderia deixar de lembrar que, talvez, a mais contundente leitura do processo histórico de esmagamento do desejo tenha sido feita por uma das personagens que ajudou a consolidá-lo: Dilma Rousseff. Depois de seu erro de 2011, que tem nos custado tão caro, em agosto de 2016, logo após a confirmação de sua deposição da presidência da república, diante de um evento histórico que, talvez, a tenha levado a ser finalmente ser capaz de reconhecer, no sentido trágico, o seu lugar na narrativa e o desfecho que se anunciava, afirmou, no seu último discurso no Palácio do Planalto: “O golpe é misógino. O golpe é homofóbico. O golpe é racista. É a imposição da cultura da intolerância, do preconceito, da violência.” Cerca de dois anos depois, um político medíocre, conhecido até bastante pouco tempo apenas pelas declarações misóginas, racistas e homofóbicas, bem como pelo apoio à violência como linguagem e ação, foi eleito presidente da república, como um viril representante da ordem. Assumiu o cargo e segue obcecado com questões morais, com preferência para aquelas historicamente enfrentadas pelas feministas, amplamente debatidas nos estudos de gênero e de sexualidades, no contexto da luta pela afirmação dos direitos de mulheres e lgbts. A presidência de Bolsonaro é mais um passo de um golpe que atingiu não só quem estava no poder àquela altura, mas também grupos minoritários e vulneráveis. E tenta, agora, golpear a possibilidade de imaginar.



[1] Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Secretaria de Educação. Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2015: as experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais. Curitiba: ABGLT, 2016.
[2] Além de ser possível verificar todo o percurso dessa polêmica pelos registros da imprensa e pelos pronunciamentos registrados na TV Câmara e disponíveis online, em texto publicado na edição de julho/2017 da Revista Piauí, um dos protagonistas da história, Fernando Haddad, relatou o episódio em detalhes. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/vivi-na-pele-o-que-aprendi-nos-livros>. Acesso em: 03/04/2019.
[3] A lesbofobia ganha aqui um peso menor porque o discurso de Bolsonaro, radicalmente misógino, raramente menciona lésbicas em suas diatribes. Sua aberta misoginia é tão intensa que mulheres lésbicas parecem sequer atrair sua atenção.
[4] A entrevista com Stephen Fry fez parte de um documentário, intitulado “Out there”, sobre homofobia ao redor do planeta.
[5] O artigo se encontra publicado em The end of imagination, Haymarket, 2016
[6] “Quando a imaginação se alimenta do rancor”, publicado em 21/11/2018, disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/21/opinion/1542755142_438097.html>. Acesso em: 03/04/2019.