8 de outubro de 2016

A escrita como abrigo: Samuel Rawet e a experiência urbana

Regina Dalcastagnè 


Imagem: Oswaldo Goeldi

Em 1956, quando o Brasil vivia seu momento de euforia desenvolvimentista e o campo literário aplaudia a publicação de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, o surgimento de um pequeno livro, Contos do imigrante, de Samuel Rawet, passava quase despercebido. Suas narrativas iam na contramão do que se produzia ou se valorizava então. No lugar do regionalismo, uma literatura essencialmente urbana; em vez de mitos fundadores, o dia a dia doloroso de gente comum; substituindo uma escrita rebuscada, o silêncio constrangedor de experiências que não se podem narrar; contrapondo-se à imagem da nação que ia rumo ao progresso, a história do que estava ficando pelo caminho, como restos nas margens das grandes cidades.
Se o livro não causou grande impacto à época – lembrando que será só nos anos 1970 que o conto e a temática urbana ganharão espaço, de fato, em nossa literatura – ele adquire nova força com as releituras, podendo ser apontado como marco para toda uma linhagem de autores que busca inscrever em suas obras uma reflexão séria sobre as desigualdades que ainda habitam nossas metrópoles. Penso, especialmente, em nomes como os de Carolina Maria de Jesus, João Antônio, Luiz Ruffato, Rubens Figueiredo e Conceição Evaristo. Se há 60 anos a questão era colocada, e se ainda hoje ela se apresenta como um problema literário, é porque esse continua sendo um grave desafio político, que, sabemos bem, nem todos os escritores estão dispostos a enfrentar.
Em Contos do imigrante, Rawet desenhava a situação de deslocamento e desencontro de um variado conjunto de personagens: imigrantes judeus e italianos (alguns recém-chegados, outros já “adaptados”), trabalhadores pobres, favelados e vagabundos – gente que não cabia no projeto de modernização vigente no país e que ia sendo deixada de lado, sem abrigo (seja na sociedade, seja nas representações literárias). Fossem imigrantes vindos de longe ou estrangeiros na própria terra, tinham no espaço de trânsito talvez seu único lugar possível. Uma perspectiva sombria – embora generosa com aqueles que eram representados. Nesse volume, como nos livros que viriam a seguir, o escritor mantém suas personagens em constante movimento, seja pelas ruas da cidade, que, embora exclua e hostilize, ainda permite o fluxo, seja em torno das convicções alheias, que, estas sim, ferem e paralisam. Seus narradores e protagonistas desconfiam das tradições, quando não as renegam abertamente, assumindo as consequências. E, aqui, é possível incluir a própria tradição literária, uma instituição que se debate entre a necessidade de manutenção de seus parâmetros e o imperativo da renovação, sem a qual ela definharia.
A obra de Samuel Rawet é marcada pela consciência de que a narrativa tradicional não dá conta dessa nova matéria que ele encontra nas beiradas das cidades, dessas existências deslocadas. Daí a busca por uma construção narrativa também nova, marcada por seus entraves, por sua ansiedade – termo que tomo emprestado do crítico de arte norte-americano Harold Rosenberg (em Objeto ansioso). Para Rosenberg, que pensava em alguns nomes do expressionismo abstrato, como Pollock, De Koonning e Hofmann, a “ansiedade da arte” não estava absolutamente relacionada com a intensidade das angústias dos artistas, mas sim com a consciência dolorosa de que se a arte não envolve o criador com as dificuldades de seu tempo, ela se esgota em sua própria realização. Isso porque, como ele dizia, “nenhum problema essencial da arte, salvo dificuldades técnicas, pode ser resolvido somente pela arte”. A ansiedade surgiria, assim, “não como um reflexo da condição dos artistas, mas como resultado da reflexão que eles fazem sobre o papel da arte em outras atividades humanas” e se manifestaria, sobretudo, no questionamento da própria arte.
Um questionamento que pode ser encontrado tanto nas falas das personagens de Rawet quanto em seu profundo silêncio, mas que se evidencia já na escolha dos protagonistas que integrarão sua obra: crianças pobres achincalhadas, velhos cegos, moças desprezadas pela família, senhoras que não entendem a língua ao seu redor, pessoas sem nenhum glamour, que circulam anônimas pelas cidades e que não pareceriam capazes de se estabelecer em uma narrativa. Como já disse, Rawet parece recolher essa gente no momento mesmo em que o processo de modernização do país (do qual ele fez parte, como engenheiro calculista na construção de Brasília, por exemplo) a empurra para fora de seus limites. Seu movimento de acolhida está implícito em todas as narrativas do livro, mas, como exemplo, trago aqui, apenas, os contos “Judith” e “Salmo 151”.
Em “Judith”, temos a história de uma moça judia que é desprezada pela família quando decide, contra toda a tradição, viver com o homem que ama: um trabalhador não judeu. A narrativa a apanha no instante exato em que ela volta, desesperada, para pedir ajuda à irmã. Seu marido havia sido assassinado em meio a uma manifestação sindical, e seu bebê, recém-nascido, a aguarda na favela, cuidado por uma vizinha. Mas ali dentro, no conforto dos tapetes e sofás, no jeito vazio e resignado de “dona de casa judia” de sua irmã, ela não se reconhece, e entende que o preço a pagar por um retorno seria alto demais: submeter-se a ser o que não era. No tenso diálogo que não se efetua com a irmã, Judith percebe que não tem o que lhe dizer e volta, ansiosa e cheia de esperança, para casa, sabendo que conduzirá a própria vida, escolhendo os valores que quer respeitar.
Samuel Rawet sempre foi muito firme ao refutar a tradição e os “valores eternos”, entendendo-os como formas de controle e de imposição alheia. Sua opinião aparece na posição segura de algumas personagens, como Judith, ou o velho Caetano, de “Salmo 151”, mas é explicitada também em seus ensaios, em entrevistas e depoimentos:

Acho que sempre falta tudo ao homem, daí a sua grandeza. Ele tem que conquistar a cada momento a sua realidade. O problema é que ignora isso. Falta-lhe a consciência de que sua consciência é permanente criadora de realidade, entre os limites de nascimento e morte. Falta-lhe a consciência de sua insignificância no mundo, para ter realmente o direito de conquistar um significado. Falta-lhe a consciência da própria morte, para diante dela afirmar seus valores fundamentais, e afastar, repugnado, os valores eternos que lhe oferecem.

Se em “Judith” a favela é o “lugar lá fora” da narrativa, “Salmo 151” se passa integralmente dentro dela e, uma vez que é pela perspectiva de um velho operário cego que acompanharemos a história, a favela chega até nós através de seus cheiros, seus sons, suas texturas, seus deslocamentos. Aqui, temos o embate entre o velho sem fé, Caetano, e o evangélico negro, Gamaliel, que pretende convertê-lo em longas ladainhas. O diálogo entre os dois vizinhos é composto, basicamente, das rememorações entrecortadas de um e da recitação bíblica do outro, que parecem nunca se encontrar. É apenas na dor – o menino de Gamaliel está morrendo ali do lado, sem atendimento médico – que os dois homens podem compartilhar alguma coisa, sem epifanias, sem redenção, apenas a compreensão de uma experiência que nega a segurança de qualquer discurso pronto, seja ele o religioso, seja o literário.
O que mais impressiona nessas narrativas é a intensidade dos sentimentos e a sofisticação na elaboração das personagens, especialmente em sua interação com a cidade, espaço hierarquizado e ambíguo, que, a um só tempo, pode segregar experiências e permitir seu fluxo. Há uma tendência na literatura brasileira contemporânea em abordar os pobres se não de forma estereotipada, ao menos de um modo distante, recorrendo muitas vezes a um “realismo” que nos coloca diante de gestos e ação, mas não de pensamentos e reflexão (o que parece área reservada para as personagens da classe média e das elites). Quantas vezes pessoas como Caetano e Gamaliel nos foram apresentadas como simples elementos da paisagem, como no conto “Sarapalha”, de Guimarães Rosa, em que a negra velha apenas compõe a descrição do espaço, junto ao rio, ao mato e às cercas; ou então como elementos de distúrbio social, como no conto “Feliz ano novo”, de Rubem Fonseca, por exemplo?
A vida dos grupos subalternos tende, assim, a ser representada de forma “monocromática” – como diria Löic Wacquant (em Os condenados da cidade) – e estática. São vítimas do sistema ou aberrações violentas. No entanto, sob uma perspectiva menos autocentrada, é possível vislumbrar entre eles uma infinidade de estratégias de resistência e de deslocamentos, ou tentativas de deslocamento, no espaço social. A aquiescência ostensiva à ordem social estabelecida e às suas hierarquias é parte das estratégias dos dominados para sobreviver num mundo social que lhes é hostil. Mas ela reveste uma miríade de formas de “resistência cotidiana”, que podem ser laterais, dissimuladas e desorganizadas, mas que objetivamente recusam as pretensões dos poderosos à autoridade ou ao controle da riqueza, como demonstrou James Scott (em Domination and the Arts of Resistance).
Assim, ao lado dos discursos públicos, em que a ordem estabelecida é aceita, seguindo o princípio de que “manda quem pode e obedece quem tem razão”, florescem contra discursos privados, nos quais a deferência cede lugar à indignação, ao humor ou ao sarcasmo, como pode ser visto em muitas personagens de Rawet. As implicações dessas estratégias na existência das personagens, e na economia da narrativa, tornam-se uma questão crucial para o seu entendimento. Já o modo como elas são vistas e descritas não deixa de refletir o julgamento que é feito, por vezes de forma inconsciente, dos integrantes destes grupos. Samuel Rawet parece fascinado por essas possibilidades, de olhar o mundo a contrapelo, de se aproximar da vida pela perspectiva daqueles que não querem dominar ninguém.
Por isso mesmo, além de tomar suas personagens em pleno movimento pelas cidades (personagens que já trazem inscritas em si as marcas e cicatrizes desse convívio com o espaço urbano), ele também se quer contaminado por essa experiência. São conhecidas as perambulações noturnas de Rawet pelas zonas mais sombrias da cidade – becos, bares, prostíbulos. “Foi nas minhas andanças que reformulei todas as questões, refiz todas as perguntas, sonhei todos os sonhos”, dizia o autor. É desse trânsito que ele retira e para onde devolve suas personagens, prenhes de vida. E é nesse trânsito que ele pretende nos conduzir, convidando o leitor, também, a se deslocar. Afinal, tudo que para, morre.
Retomando um escritor ainda mais distante no tempo, mas também comprometido com suas cercanias, Euclides da Cunha, em 30 de dezembro de 1904, escrevia ao seu pai desde Manaus: “a mais consoladora surpresa do sulista está no perceber que este nosso Brasil é verdadeiramente grande porque ainda chega até cá. Realmente, cada vez mais me convenço de que esta deplorável Rua do Ouvidor é o pior prisma por onde toda a gente vê a nossa terra”. A partir do momento em que o artista abandona o conforto da Rua do Ouvidor, ou da sua “perspectiva do alpendre” (nos termos de Roberto Ventura), um imenso campo de possibilidades se abre ao seu redor. São outras pessoas, outras experiências, outros significados sobre os quais é preciso aprender, seja para falar sobre eles, seja para calar. Como não cabe a um criador o silêncio sobre o mundo, ele pode expressar sua impossibilidade de dizer, a ansiedade diante da própria obra, o desconforto imposto por um objeto que teima em ser sujeito de sua história.
Samuel Rawet ensaia esses passos, para longe do conhecido e do repisado, dobra a esquina para ver o que seus olhos não alcançam, persegue pelas calçadas e becos uma história que não é a sua. E lida com ela com o respeito que lhe é devido, sem a arrogância ou a condescendência dos que se querem sempre mais sofisticados, mais complexos, mais interessantes do que os outros. Transforma experiências as mais distantes, de operários, prostitutas, meninos e velhas, em material estético – delicado o suficiente para contê-las, mas rigoroso o bastante para não cair na armadilha da pretensão ao universal. Assim, suas personagens não se tornam “tipos”, e tampouco “indivíduos” com uma singularidade acima de qualquer constrangimento social. São “casos particulares do possível”, nos termos de Gaston Bachelard (em O novo espírito científico), o “possível” sendo, aqui, os determinantes estruturais da situação de cada um. É a forma pela qual a representação artística se torna capaz tanto de acolher a diversidade da experiência social, em sociedades marcadas pelas desigualdades, quanto de evitar aplainar a complexidade das vivências dos integrantes dos grupos dominados, reduzindo-as aos efeitos da própria dominação.
Vivendo em tempos de suspeição, e colocando sob suspeita suas próprias representações, Rawet se desloca em relação a sua posição de origem para alcançar uma perspectiva não mais completa (não seria essa sua intenção), mas certamente mais complexa sobre o mundo. Ao mesmo tempo em que se movimenta – para longe da tradição, em direção a outras falas, ao lado de suas próprias personagens – ele promove uma espécie de alargamento no universo dos possíveis. Não é pouco a se dizer sobre uma narrativa em um período de profundo investimento no obscurantismo, como o que estamos vivendo agora.


24 de setembro de 2016

A educação sitiada

Luis Felipe Miguel

                                                  Imagem: Richard Peduzzi
Na espiral do retrocesso em que o Brasil mergulhou nos últimos tempos, o ataque à educação é um elemento central. A Medida Provisória baixada no último dia 22, que reestrutura o ensino médio de maneira a esvaziá-lo de conteúdo crítico, foi talvez o maior ato de arbitrariedade do governo golpista até agora. Trata-se de uma mudança de enorme significado introduzida por medida provisória, instrumento que seria reservado para ações de caráter emergencial. A ausência de diálogo com educadores e com estudantes foi a marca do processo.

Mas a educação está sob cerco faz tempo. Um sinal de alerta já se acendeu quando, em abril de 2015, o governador paranaense Beto Richa, do PSDB, colocou a polícia militar para bater nos professores que participavam de manifestações. Alguns meses depois, o governador paulista Geraldo Alckmin, do PSDB, começou a fechar escolas públicas. Enfrentou a mobilização dos estudantes, que ocuparam seus colégios, e reagiu também com repressão policial. Depois do golpe que colocou Temer no poder, o secretário de Segurança que comandou a coação contra os estudantes paulistas, Alexandre de Moraes, ganhou o Ministério da Justiça. Mas os jovens estiveram mobilizados também em outros estados brasileiros, muitas vezes com ocupações de escolas. A repressão se mostrou particularmente brutal em Goiás, onde está em curso um inusitado processo de militarização da educação pública, incentivado pelo governador Marconi Perillo, também do PSDB – será que há aqui um padrão? (Para quem quiser conhecer a realidade dos colégios administrados pela PM em Goiás, há um livro com depoimentos e análises de estudantes e professores, intitulado O estado de exceção escolar.)

Enquanto isso, nas manifestações pela derrubada da presidenta Dilma Rousseff começaram a aparecer faixas pedindo “basta de Paulo Freire”. O educador pernambucano era o símbolo da escola emancipadora, que os manifestantes conservadores julgavam – de maneira errônea, infelizmente – que estava difundida pelo país afora. As faixas, que de tão obtusas no começo pareciam ser motivo apenas para riso, eram o sintoma de uma ofensiva contra qualquer traço de pensamento crítico na educação, que se cristalizou com o crescimento de um movimento até então folclórico e irrelevante, o Escola Sem Partido.

O Escola Sem Partido tornou-se porta-voz da oposição dos grupos religiosos conservadores à discussão sobre as desigualdades de gênero nas escolas. Mas, na verdade, nasceu com outra agenda. Quando surgiu, em 2004, seu foco era a pretensa “doutrinação marxista” nas escolas, um tema que reaparece ciclicamente desde o final da ditadura militar.

Foi assim que o ESP ganhou espaço, inicialmente, junto ao Instituto Millenium, uma organização financiada por empresas brasileiras e estrangeiras. (Estou resumindo, aqui, informações que constam de um artigo maior sobre o tema.) As bandeiras prioritárias do Millenium são ligadas ao programa econômico da direita (o Estado mínimo, a desregulamentação, a flexibilização da legislação trabalhista), não à moral sexual ou à família. O criador do MESP publicou, no site do Instituto, em 2009, texto intitulado “Por uma escola que promova os valores do Millenium”, em que seu alinhamento com o ideário ultraliberal ficava patente. Os problemas da educação brasileira, segundo o artigo, seriam a falta de deferência pela propriedade privada, pela meritocracia e pelo princípio da responsabilidade individual. A preocupação com gênero e valores familiares estava inteiramente ausente.

A ameaça da “doutrinação marxista” nas escolas é alimentada por uma leitura fantasiosa da obra de Antonio Gramsci. Sua sofisticada percepção da luta política se torna, nas mãos de seus detratores à direita, uma estratégia simplória, com o objetivo de solapar os consensos que permitem o funcionamento da sociedade, por meio da manipulação das mentes (a noção de “lavagem cerebral” é invocada com frequência). É essa leitura bizarra que é evocada pelo nome de “marxismo cultural”.

A fusão da denúncia da doutrinação marxista de inspiração gramsciana com a oposição à chamada “ideologia de gênero” obedeceu, assim, ao senso de oportunidade do ESP. Deu a ele aliados de peso nas igrejas evangélicas e católica, uma capilaridade com a qual nem poderia sonhar e um discurso com ressonância popular muito mais imediata. A confluência foi facilitada graças ao trabalho de propagandistas da extrema-direita, em particular os alinhados a Olavo de Carvalho, para quem a dissolução da moral sexual convencional é um passo da estratégia comunista. Não por acaso, Olavo de Carvalho é defensor veemente do Escola Sem Partido.

No momento em que a “ideologia de gênero” se sobrepõe à “doutrinação marxista”, o discurso dá outra guinada. A defesa de uma educação “neutra”, que era predominante até então, cede espaço à noção da primazia da família sobre a escola. A reivindicação é impedir que professoras e professores transmitam, em sala de aula, qualquer conteúdo contrário aos valores prezados pelos pais. O foco principal é a “ideologia de gênero”, mas a regra contempla também as posições políticas sobre outras questões e mesmo a evolução das espécies ou o heliocentrismo. Se as escolas privadas poderiam incluir cláusulas contratuais que garantissem a possibilidade de apresentação de determinados temas em sala de aula, as públicas teriam que se curvar aos vetos de tantos pais de alunos quantos quisessem se aproveitar da prerrogativa.

Há projetos em favor do ESP no Congresso Nacional e em muitas assembleias legislativas. Em Alagoas, o projeto virou lei. Mas, a rigor, a aprovação da legislação nem é uma prioridade. Ela serve ao propósito de intimidação de professores e de estudantes, com um número crescente de casos de docentes afastados de sala de aula por pressão de grupos retrógrados. E eles difundiram, a partir de meados de 2015, uma campanha para que os pais encaminhem notificações extrajudiciais às escolas, para impedir que temas ligados a gênero ou política sejam tocados em sala de aula.

A campanha pelas notificações extrajudiciais contra escolas e contra docentes surgiu às margens do Escola Sem Partido, na direita católica, tendo como iniciador o procurador Guilherme Schelb. No vídeo em que ensina a preparar a notificação, reproduzido na página do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira (uma das organizações que sucederam a antiga TFP), Schelb não se furta a incluir um incentivo material à defesa da primazia moral da família, citando a possibilidade de obter polpudas indenizações pecuniárias de professores e colégios.

Estabelece-se, assim, uma hierarquia estrita entre família e escola, com o predomínio inconteste da primeira. De um professor português radicado no Paraná, Armindo Moreira, extraiu-se o embasamento “teórico” para a posição. Num livro publicado em edição caseira, Professor não é educador, Moreira desenvolveu a ideia de que a escola que educa está “usurpando uma das tarefas sagradas da família”. O professor é um mero instrutor, isto é, repassador de conteúdos entendidos como neutros e objetivos; a tarefa de educar compete “à família, à sociedade e à igreja”. O livro de Moreira integra a resumida lista de quatro títulos cuja leitura o ESP indica em seu website

O slogan “Meus filhos, minhas regras” passou a ser repetido nas intervenções públicas do grupo. Paródia da histórica bandeira feminista “meu corpo, minhas regras”, o lema subverte seu sentido original, que é a afirmação da autonomia e dos direitos individuais das mulheres, colocando em seu lugar a submissão absoluta das crianças a seus pais, tratadas como se fossem suas propriedades.

Convergem, na percepção que o slogan sintetiza, duas negações. A primeira é a negação do caráter republicano da instituição escolar. Sua função pedagógica incorpora também (e de forma central) a educação para o convívio com as diferentes visões de mundo, próprio de uma sociedade pluralista e democrática. A socialização na escola é importante, entre outros motivos, porque oferece o contato com valores diversos, ou diversamente interpretados, daqueles da família. A segunda é a negação do estatuto da criança como sujeito de direitos – o que inclui, aliás, o direito de conhecer o mundo e de adquirir os instrumentos para pensar com a própria cabeça. A autoridade absoluta dos pais, que subjaz às propostas de intimidação dos educadores, ilustra a caracterização crítica que a teórica feminista Christine Delphy faz da família, na qual impera um “estado de exceção”: nela, os direitos de seus integrantes estão suspensos.

Embora o ministro da Educação do governo golpista, Mendonça Filho, tenha tido que recuar na demonstração pública de sua simpatia pelo Escola Sem Partido (revogou a nomeação de um assessor ligado ao grupo e até se manifestou contra a aprovação dos projetos de lei), a MP do ensino médio deixa claro o rumo que está traçado. Ela retira a obrigatoriedade de disciplinas como Sociologia e Filosofia, leva estudantes de 15 anos a escolher áreas de especialização, faz com que muitos deles possam deixar de estudar até mesmo História e Literatura a partir do segundo ano. O aumento da carga horária e a proibição de matrícula dos mais novos em cursos noturnos afastará da educação os jovens que precisam trabalhar.

O interesse é impedir que se fomente o raciocínio crítico e o questionamento do mundo. Justificam as mudanças com um discurso de qualificação eficiente para o mercado de trabalho ou, de maneira mais ampla, da educação como um investimento cujo resultado líquido seria o desenvolvimento econômico. Claro que a reforma proposta nem isso alcança. O que eles querem mesmo é uma educação que mantenha os pobres no seu lugar, como mão de obra barata a ser explorada.

E a educação pode ser muito mais do que isso. Pode ser um instrumento para reflexão sobre o mundo e o lugar que nele ocupamos, para a produção de uma consciência crítica que emerge do diálogo com os outros e com a realidade. Pode ser uma promessa de liberdade. Tão grande que não apenas promova o desenvolvimento econômico como seja capaz de questionar em que consiste esse desenvolvimento. É isso que os golpistas temem e é por isso que, entre os muitos direitos sob ataque, a educação se destaca.

17 de setembro de 2016

Poetnicidade ou lá na subida da cachoeira os peixes se enfeitam

Devair Antônio Fiorotti


Imagem: Devair Fiorotti
Diz um canto indígena:

imantî pî pona’ ­­­­
maroko watarikuma
[lá na subida da cachoeira
      os peixes se enfeitam[1]]


            Esse canto me foi primeiro mostrado escrito e depois cantado por Terêncio Luiz Silva, Manaaka, índio macuxi, que vive a dois dias a pé da cidade de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, na comunidade Ubaru. A pé, pois não há estradas para lá. Ele foi cantado por seu Terêncio e Dona Zenita, Yauyo, sua esposa, em um registro que deve estar disponível ainda em 2016, pelo Museu do Índio, do Rio de Janeiro.
            O caminho adotado pelos estudos de literatura brasileira tem sido de ignorar tais produções artísticas – qualquer revisão da grade curricular dos cursos universitários de Letras ou de compêndios de historiografia literária brasileira aponta isso com clareza. São exceções trabalhos distantes dos cursos de Letras, como os de Pedro Cesarino, Rosângela de Tugny, Bruna Franchetto, como os da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. Independente do descaso, essas artes verbais continuam a ser produzidas por mais de uma centena de etnias indígenas em nosso País.  
            Esse canto é um parixara, um estilo de dança e música comum entre os indígenas do chamado circum-Roraima, que engloba etnias como Macuxi, Taurepang, Ingaricó, Wapixana, em região pertencente a três países: Brasil, Venezuela e República Cooperativista da Guyana Inglesa. Esse canto, pelo menos essa é a conclusão a que tenho chegado, pertence a um elaborado sistema artístico, pois o parixara em sua origem envolve canto, letra, dança, instrumentos como chocalhos diversos, pintura corporal, figurinos específicos.
            Há poeticidade no canto, se comparado com construções imagéticas contemporâneas, como a de Manoel de Barros e, nesse caso, a tradução é bem literal; mas, principalmente, é poética, pois pertence às artes verbais culturais de seu Terêncio, em uma estrutura artística própria. Temos peixes se enfeitando para uma festa, me disse ele. Esse tipo de texto é um produto cultural que, em muitos casos, ultrapassa gerações, ao mesmo tempo em que é contemporâneo nosso, é atualizado, cantado, pertence à memória coletiva e atual de seu Terêncio, de seus povos: os Macuxi e os Taurepang, aos quais seu Terêncio está intimamente ligado por questões de parentesco e vivência.
            Assim como textos escritos são reelaborados e reescritos na cultura nossa de todos os dias, textos indígenas como o poema acima são escritos, lembrados, reelaborados em centenas de comunidades indígenas (por exemplo, para quem pensa que esses textos são somente criações antigas, para não dizer primitivas, em sentido pejorativo, não esqueço quando seu Terêncio disse que modificava algumas letras dos cantos, algumas terminações, pois assim, nas palavras dele, ficava melhor, mais bonito).
            Tenho visto muitos trabalhos pensando a periferia e a contemporaneidade.
            Não tenho dúvidas da necessidade de expandirmos o conceito de periferia para além do texto escrito, publicado, como em geral temos visto. As poéticas ameríndias, como a do poema acima, se estruturam em grande parte ainda sobre outro suporte: a oralidade. Poéticas orais que têm sofrido grandes perdas com a chegada das tecnologias como televisão, internet nas comunidades, bem como das religiões, principalmente as fundamentalistas. As mudanças são imediatas, o rompimento entre narrar à noite histórias e a substituição por se sentar diante de uma televisão, é quase inevitável. Digo perdas, conhecendo conceitos como transculturação, pois o que tenho visto, no caso dos indígenas macuxi, com quem convivo mais, é uma substituição. Cantos como parixaras só são conhecidos efetivamente por gerações mais antigas, salvo raras exceções, sendo que o mesmo tem ocorrido com a própria língua macuxi, hoje falada por poucos jovens na região do Alto São Marcos, Pacaraima, Brasil, por exemplo.
            Pensar a periferia hoje, a meu ver, é também se voltar para as poéticas orais ameríndias. Voltar-se com vigor, pois se faz necessário conhecer e registrar essas poéticas, incluindo-as, ao mesmo tempo, como objeto de estudo além da Antropologia, da Musicologia, mas nos cursos de Letras. Poéticas, como as presentes nas letras dos cantos parixara, pertencem não a uma periferia como concebemos a literatura brasileira em relação à canônica universal, mas ela em si é periferia (brasileira) da periferia (de Roraima) da periferia (oral indígena).
            Algo similar, penso eu, deve acontecer em relação a conceitos como contemporâneo. Tenho dúvidas se esse conceito ajuda a pensarmos as vivências ameríndias, a existência de suas artes verbais, por exemplo. Conceituações como a de Giorgio Agamben me parecem excludentes, apontando para um modelo de indivíduo do qual muitos não fazem parte. Os indivíduos ameríndios são, afinal, contemporâneos?
            Não consigo conceber as artes verbais ameríndias distantes das academias, por mais que, muitas vezes por questões ideológicas, elas estejam. Me nego a isso, pois há nelas uma abertura para se pensar a diversidade cultural brasileira, principalmente uma abertura para se entender o humano além de critérios estritamente ocidentais, como em geral acontece. Entre a literatura brasileira contemporânea escrita, livresca, digital e as artes verbais ameríndias, fico com as duas. Penso que não podemos aceitar menos, como na beleza do poema abaixo, um marapá cantado por seu Terêncio:

                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
         awukuruî ikurumapa
        apaiwarîrî ikurumapa
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
       awukuruî ikurumapa
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
        uwai riru itun etapa
              wama-wamari itun etapa
                                        apakakî  wîi wîriwîri
                                        apakakî  wîi wîriwîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
      awukuruî ikurumapa
       apaiwarîrî ikurumapa
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
        uwai riru itun etapa
            wama-wamari itun etapa
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
         ruwe-ruwerî itun etapa
       apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
       awukuruî ikurumapa
      apaiwarîrî ikurumapa


[acorda mulher
            para coar a bebida coar o apaiuá[2]
acorda mulher mulher acorda
            mulher pra coar a bebida

escuta o som do meu instrumento
                          do wana wana[3]

acorda mulher
            para coar a bebida coar o apaiuá
acorda mulher mulher acorda
            mulher pra coar a bebida

escuta o som do meu instrumento
                           do ruwe ruwe[4]

acorda mulher
            para coar a bebida o apaiuá
acorda mulher mulher acorda
            mulher pra coar o apaiuá]


[1] Essa tradução pertence a mim e a ele. Dados do projeto Panton pia', de Devair Antônio Fiorotti.
[2] Bebida fermentada de beiju que diferencia-se do pajuaru, pois é fermentada no alto, sobre um jirau, enquanto o pajuaru seria fermentado sobre a terra. A feitura das bebidas era de exclusividade das mulheres, inclusive meninas púberes eram "tratadas" na boca para fazerem a bebida, já que a saliva contribuía para o processo de fermentação.
[3] Um tipo de flauta, pouco conhecido entre os indígenas.
[4] Flauta pequena feita de taboca.

14 de agosto de 2016

Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de nascimento de minha escrita

Conceição Evaristo 

                                                                   Imagem: M.C. Escher

Talvez o primeiro sinal gráfico, que me foi apresentado como escrita, tenha vindo de um gesto antigo de minha mãe. Ancestral, quem sabe? Pois de quem ela teria herdado aquele ensinamento, a não ser dos seus, os mais antigos ainda? Ainda me lembro, o lápis era um graveto, quase sempre em forma de uma forquilha, e o papel era a terra lamacenta, rente às suas pernas abertas. Mãe se abaixava, mas antes cuidadosamente ajuntava e enrolava a saia, para prendê-la entre as coxas e o ventre. E, de cócoras, com parte do corpo quase alisando a umidade do chão, ela desenhava um grande sol, cheio de infinitas pernas. Era um gesto solene, que acontecia sempre acompanhado pelo olhar e pela postura cúmplice das filhas, eu e minhas irmãs, todas nós ainda meninas. Era um ritual de uma escrita composta de múltiplos gestos, em que todo corpo dela se movimentava e não só os dedos. E os nossos corpos também, que se deslocavam no espaço acompanhando os passos de mãe em direção à página-chão em que o sol seria escrito. Aquele gesto de movimento-grafia era uma simpatia para chamar o sol. Fazia-se a estrela no chão. 
Na composição daqueles traços, na arquitetura daqueles símbolos, alegoricamente ela imprimia todo o seu desespero. Minha mãe não desenhava, não escrevia somente um sol, ela chamava por ele, assim como os artistas das culturas tradicionais africanas sabem que as suas máscaras não representam uma entidade, elas são as entidades esculpidas e nomeadas por eles. E, no círculo-chão, minha mãe colocava o sol, para que o astro se engrandecesse no infinito e se materializasse em nossos dias. Nossos corpos tinham urgências. O frio se fazia em nossos estômagos. Na nossa pequena casa, roupas molhadas, poucas as nossas e muitas as alheias, isto é, as das patroas, corriam o risco de mofarem acumuladas nas tinas e nas bacias. A chuva contínua retardava o trabalho e o pouco dinheiro, advindo dessa tarefa, demorava mais e mais no tempo. Precisávamos do tempo seco para enxugar a preocupação da mulher que enfeitava a madrugada com lençóis arrumados um a um nos varais, na corda bamba da vida. Foi daí, talvez, que eu descobri a função, a urgência, a dor, a necessidade e a esperança da escrita. É preciso comprometer a vida com a escrita ou é o inverso? Comprometer a escrita com a vida? 
Mais um momento, ainda bem menina, em que a escrita me apareceu em sua função utilitária e às vezes, até constrangedora, era no momento da devolução das roupas limpas. Uma leitura solene do rol acontecia no espaço da cozinha das senhoras: 
4 lençóis brancos, 
4 fronhas, 
4 cobre-leitos, 
4 toalhas de banho, 
4 toalhas de rosto, 
2 toalhas de mesa, 
15 calcinhas, 
20 toalhinhas, 
10 cuecas, 
7 pares de meias, 
etc., etc., etc. 

As mãos lavadeiras, antes tão firmes no esfrega-torce e no passa-dobra das roupas, ali diante do olhar conferente das patroas, naquele momento se tornavam trêmulas, com receio de terem perdido ou trocado alguma peça. Mãos que obedeciam a uma voz-conferente. Uma mulher pedia, a outra entregava. E quando, eu menina testemunhava as toalhinhas antes embebidas de sangue, e depois, já no ato da entrega, livres de qualquer odor ou nódoa, mais a minha incompreensão diante das mulheres brancas e ricas crescia. As mulheres de minha família, não sei como, no minúsculo espaço em que vivíamos, segredavam seus humores íntimos. Eu não conhecia o sangramento de nenhuma delas. E quando em meio às roupas sujas, vindas para a lavagem, eu percebia calças de mulheres e minúsculas toalhas, não vermelhas, e sim sangradas do corpo das madames, durante muito tempo pensei que as mulheres ricas urinassem sangue de vez em quando. 
Foram, ainda, essas mãos lavadeiras, com seus sois riscados no chão, com seus movimentos de lavar o sangue íntimo de outras mulheres, de branquejar a sujeira das roupas dos outros, que desesperadamente seguraram em minhas mãos. Foram elas que guiaram os meus dedos no exercício de copiar meu nome, as letras do alfabeto, as sílabas, os números, difíceis deveres de escola para crianças oriundas de famílias semianalfabetas. Foram essas mãos também que, folheando comigo revistas velhas, jornais e poucos livros que nos chegavam recolhidos dos lixos ou recebidos das casas dos ricos, aguçaram a minha curiosidade para a leitura e para a escrita. Daquelas mãos lavadeiras recebi também cadernos feitos de papeis de embrulho de pão, ou ainda outras folhas soltas, que, pacientemente costuradas, evidenciavam a nossa pobreza, e distinguiam mais uma de nossas diferenças, em um grupo escolar que nos anos 50 recebia a classe média alta belorizontina. 
Das mãos lavadeiras, recebi ainda listas de mantimentos, palavras cifradas, preços calculados para não ultrapassar o nosso minguado orçamento (sempre ultrapassavam) e lá ia eu, menina, às tendinhas, aos armazéns e às padarias perto da favela para fazer compras. Nesse exercício de quase adivinhar os textos escritos produzidos por minha família, quem sabe o meu aprendizado para um dia caminhar pelas vias da ficção... 
Ainda, uma de minhas tias, a que me criou, tinha por hábito anotar resumidamente em folhas de papéis, datas e acontecimentos importantes, desde fatos relacionados à economia doméstica a acontecimentos sociais ou religiosos. Anotações familiares como: 

“A nossa última galinha d’angola fugiu semana passada, isto é, no final do mês de novembro”. 
“No dia 13 de dezembro, pus a galinha garnisé para chocar sobre nove ovos”. 
“Dona Etelvina de Seu Basílio voltou para São Paulo no dia 15 de agosto de 1965”. 
“Já paguei duas mensalidades para ajudar na festa da Capela do Rosário”. 
“Maria Inês, minha sobrinha ficou noiva no dia 22 de junho de 1969”. 

E à medida que eu crescia e os meus conhecimentos também, alguns desses eventos passaram a ser registrados por mim, como também passou a ser de minha responsabilidade cuidar de meus irmãos menores na escola, acompanhar seus deveres, ir às reuniões escolares e transmitir os resultados para mim mãe. De meus irmãos passei a acompanhar os deveres das crianças menores vizinhas. No pequeno quintal de nossa casa, debaixo das árvores, improvisei uma sala de aula. Das moedas, que me eram dadas pelas mães gratas pelo desenvolvimento de seus filhos na escola, surgiam meu primeiro salariozinho. Riqueza que me permitia comprar ora o pão diário, ora açúcar, ora o leite do irmãozinho menor, ora um caderno para mim, e às vezes algum livrinho (revistinhas infantis, gibis, que não sei porque eu considerava como sendo livro) ou ainda obter uma alegria maior: doces, doces, doces... 
Mas digo sempre: creio que a gênese de minha escrita está no acúmulo de tudo que ouvi desde a infância. O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam nossa casa e adjacências. Dos fatos contados a meia-voz, dos relatos da noite, segredos, histórias que as crianças não podiam ouvir. Eu fechava os olhos fingindo dormir e acordava todos os meus sentidos. O meu corpo por inteiro recebia palavras, sons, murmúrios, vozes entrecortadas de gozo ou dor dependendo do enredo das histórias. De olhos cerrados eu construía as faces de minhas personagens reais e falantes. Era um jogo de escrever no escuro. No corpo da noite. 
Na origem da minha escrita ouço os gritos, os chamados das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das portas contando em voz alta uma para outras as suas mazelas, assim como as suas alegrias. Como ouvi conversas de mulheres! Falar e ouvir, entre nós, era talvez a única defesa, o único remédio que possuíamos. Venho de uma família em que as mulheres, mesmo não estando totalmente livres de uma dominação machista, primeiro a dos patrões, depois a dos homens seus familiares, raramente se permitiam fragilizar. Como “cabeça” da família, elas construíam um mundo próprio, muitas vezes distantes e independentes de seus homens e mormente para apoiá-los depois. Talvez por isso tantas personagens femininas em meus poemas e em minhas narrativas? Pergunto sobre isto, não afirmo. 
Afirmo, porém que foi do tempo/espaço que aprendi desde criança a colher as palavras. Não nasci rodeada de livros, do meu berço trago a propensão, o gosto para ouvir e contar histórias. A grande oportunidade para a leitura constante me chegou, quando eu, já quase mocinha, tinha a autonomia para ir e vir à Biblioteca Pública de Belo Horizonte, casa-tesouro, na qual uma das minhas tias se tornou servente. 
Se a leitura desde a adolescência foi para mim um meio, uma maneira de suportar o mundo, pois me proporcionava um duplo movimento de fuga e inserção no espaço em que eu vivia, a escrita, também desde aquela época, abarcava estas duas possibilidades. Fugir para sonhar e inserir-se para modificar. Essa inserção para mim pedia a escrita. E se inconscientemente, desde pequena, nas redações escolares eu inventava outro mundo, pois dentro dos meus limites de compreensão eu já havia entendido a precariedade da vida que nos era oferecida, aos poucos fui ganhando uma consciência. Consciência que compromete a minha escrita como um lugar de autoafirmação de minhas particularidades, de minhas especificidades como sujeito-mulher-negra. 
E retomando a imagem da escrita diferencial de minha mãe, que surge marcada por um comprometimento de traços e corpo (o dela e nossos) e ainda a um de diário escrito por ela, volto ao gesto em que ela escrevia o sol na terra e imponho a mim mesma uma pergunta. O que levaria determinadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes não letrados, e quando muito, semialfabetizados, a romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita? 
Tento responder. Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido que se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção da vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto inscrição no interior do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de insubordinação. Insubordinação que pode se evidenciar, muitas vezes, desde uma escrita que fere “as normas cultas” da língua, caso exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da matéria narrada. 
A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.


Texto publicado originalmente no livro Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces, organizado por Marcos Antônio Alexandre. Belo Horizonte: Mazza, 2007, pp. 16-21.


11 de junho de 2016

Ser um escritor ruim é um privilégio branco

Bianca Gonçalves

Imagem: Francisco Leite (Shiko)


Uma hora de voltinha numa das maiores livrarias da cidade é o bastante para se constatar que escrever mal e/ou não oferecer nada de novo para a literatura é um privilégio branco.
Volta e meia a produção literária de autoras negras é deslegitimada sob o argumento de que se trata de uma literatura ruim. Diferentemente do que ocorre com autores (brancos) ruins que publicam em grandes e médias editoras, mulheres negras sofrem interdição antes mesmo de se mostrarem como escritoras. A explicação para esse fenômeno é a combinação do racismo aliado ao machismo, receita cruel que tenta afastar as mulheres negras do papel de protagonistas (em todas as áreas) a todo custo.
Muitas vezes, autores/as brancos/as que “estão começando” carregam também o privilégio de serem lidos sob o signo da potência. É como se fulano/a não fosse “tão bom” hoje, mas naquilo que ele/a produziu há elementos potentes, que podem, um dia, transformá-lo/a num/a bom/boa escritor/a.
Lutar para que autoras negras sejam lidas sob essa perspectiva é uma estratégia válida e totalmente diferente da análise limitada do identitarismo (se pertence a uma minoria é, automaticamente, bom), usualmente utilizada por aqueles que tentam deslegitimar e deturpar o ativismo literário negro.
Nesses momentos, lembro de Carolina Maria de Jesus que, ao conquistar seu espaço de autora best-seller, queria a porra toda. Em Casa de alvenaria, livro publicado no ano seguinte ao Quarto de despejo (1960) e infelizmente legado ao esquecimento, Carolina expressava seu desejo em ser cantora, dramaturga e poeta, mas seu editor, Audálio Dantas, cerceava seus sonhos sob o argumento da “preservação da imagem” da escritora; um gesto que também escondia a impossibilidade da sociedade de enxergar mulheres negras como multiartistas. O próprio, inclusive, frente às vontades de Carolina, aconselhou-a a ser “mais humilde” (o arquétipo da preta metida existe há muito tempo!), e ela genialmente respondeu: “Que orgulho posso ter? Eu procuro só o que é humilde para fazer. Fui empregada doméstica, catava papel, moro na favela. Você não vai querer mais humildade do que isso”.
Atualmente o cenário vem mudando e cada vez mais nós estamos ocupando espaços que historicamente nos foram negados. Já estamos chegando ao ponto em que aqueles que intermedeiam o poder não conseguem mais conciliar a contradição de um país cuja metade da população é negra ter, midiática e artisticamente, uma representação homogeneamente branca.
Façamos então a porra toda ser nossa.

Esse texto foi originalmente publicado em https://biancanaoebranca.wordpress.com/

7 de junho de 2016

Um percurso entre duas Claras

Eliane Marques


Foto: Regina Dalcastagnè

Há uma música da tradição gaúcha que diz o seguinte: “eu sou do sul, é só olhar pra ver que eu sou do sul e minha terra tem um céu azul, é só olhar e ver”. Considerado o imaginário acerca da gente nascida no sul do Brasil, nem preciso dizer de que jeito e de que cor, dificilmente alguém me atribuiria tal lugar de nascimento. Além disso, pelo menos para mim, o céu (do sul) não é e nunca foi tão azul assim e nem sou proprietária de terra alguma. 
Contudo nasci no estado do Rio Grande do Sul, no município de Santana do Livramento, situado na fronteira seca com Rivera, no Uruguai, cuja transposição física (Brasil – Uruguai) exige apenas o se atravessar o chamado Parque Internacional.
A minha mãe (os termos são utilizados aqui no sentido do significante em Lacan), na condição de empregada doméstica, trabalhou tanto em “casas de família” (a expressão sempre me impressionou, ao ouvi-la eu tinha a impressão de que a “nossa casa”, ou a casa da minha avó, por exemplo, não era de “família”, apenas a casa dos outros, por que não dizer dos brancos, onde minha mãe trabalhava, assim poderia ser titulada).  A expressão “casa de família” me remetia a um título de nobreza europeia cuja aquisição eu ou outras consideradas iguais a mim jamais alcançaríamos. Anos mais tarde, quando conheci as obras de Aluísio de Azevedo, assombrou-me o horrendo pensamento de que talvez a “nossa casa” tivesse sido titulada, até nos dicionários, como “Casa de Pensão”, apesar de não ser nada disso.
Bom, a minha mãe, na condição de empregada doméstica, trabalhou em “casas de família” no Brasil e no Uruguai. O chão brasileiro ou uruguaio lhe era indiferente, como também o era falar espanhol ou português ou o chamado portunhol. Não sei se havia alguma diferença quanto à remuneração, ainda que mísera, em ambos os lados. Mas a transposição de um mundo para o outro com o esforço de apenas um pé ou uma perna, e com muito esforço dos braços, parecia pouco dificultosa.
Embora aqui ou lá se pudesse dizer “caza” ou “casa”, “cão” ou “perro”, de forma que, em geral, a diferença de língua não representasse diferença de linguagem ou diferença de humanidade, para mais ou para menos, havia algo nesse mundo dúplice ou múltiplo que se apresentava perene. Em outras palavras, para alguns sujeitos desses mundos era possível a ocorrência de um diálogo não tão verticalizado, para outros não.
Tal origem e destino “fronteiriço” se dá a conhecer, então, mais do que no modo de falar (“leitee quentee”), se dá a conhecer também como posição no mundo: (a) de um lado, a fronteira se constitui possibilidade de deslocamento, de abertura para outro, possibilidade não apenas de outra língua, mas de outro discurso, ainda que sem palavras, e (b) de outro, a fronteira se constitui possibilidade de muro, de tranca, de fechamento.
Por exemplo, apesar de receber o epíteto de “Fronteira da Paz”, ainda na década de 1990 Livramento possuía vários clubes para as pessoas brancas – Clube Livramento, para os brancos pobres; Clube Cruzeiro do Sul, para os brancos de classe média; Clube Comercial e Clube Caixeiral, para a classe alta, obviamente branca. É interessante assinalar que havia apenas (01) um clube para os negros, o Clube Farroupilha. Quer dizer, aos negros se conferia homogeneidade – todo o negro deverá ficar reduzido ao espaço territorial de sua pobreza.
Assim, embora pudéssemos atravessar a fronteira entre dois países, não podíamos transpor certas fronteiras dentro da mesma cidade, e nem eram necessários cartazes com o comando da lei – “Proibida a entrada de negros” ­–, a lei estava plenamente subjetivada como lugar do proibido.        
Certa vez participei de uma mesa-redonda em Porto Alegre sobre a mulher e o espaço literário, chamada um “Teto todo nosso”. A conversa se daria a partir do livro Um teto todo seu, de Virginia Woolf. A referida escritora, em síntese, alcança a conclusão de que se uma mulher quiser escrever ficção, precisará de dinheiro e de um teto todo seu, quer dizer, precisará de um espaço próprio e de condições materiais para se haver com ele.
Eu estava contente com a leitura desse livro, na ilusão de buscar um teto todo nosso, de com ela (a escritora inglesa) ser abrigada, quando, como quem cai de paraquedas (sabendo que cairá, mas na crença firme de que não), me deparo com a seguinte frase na página 75 da obra: “É uma das grandes vantagens de ser mulher conseguir passar por uma negra sem desejar transformá-la em uma inglesa”.
Certamente, até então, eu não estava incluída no discurso – a frase dizia que “as negras” estavam fora da categoria “mulher” (uma mulher passa por uma negra que, portanto, não é mulher e tampouco inglesa, apenas negra, inclusive sem nome ou sobrenome de família para compartilhar e ter a possibilidade de receber alguma herança e assim o ócio e talvez a escrita e talvez a escrita de poesia).    
Portanto, a palavra “nosso” (de “Um teto todo nosso”) escapa à homogeneidade da qual o possessivo pudesse dar conta (a homogeneidade é sempre apagamento) –, o teto e o dinheiro não resolvem a situação para as mulheres negras, porque existe questão anterior à possibilidade de escritura, que é a possibilidade de fala como diálogo. Quando minha mãe atravessava a fronteira para trabalhar em Rivera, não a atravessava como mulher capaz de diálogo, mas apenas como “una negra capaz de trabajo” e de trabajo duro, de quem importavam apenas os braços, apenas esses poderiam atravessar as fronteiras. Minha mãe representava a subalterna – aquela cuja voz não pode ser ouvida, aquela que não tem representação política e muito menos poesia. 
Nesse sentido, Deivison Nkosi assinala que, no Brasil, mesmo os negros fora da condição de escravizados ocupavam postos de trabalho, enquanto as elites brancas preferiam o ócio: “Temos que lembrar, em primeiro lugar, que durante o período escravista, os africanos escravizados (ou livres) e seus descendentes ocupavam todos os postos de trabalho existentes, enquanto os portugueses (e seus descendentes) preferiam a mendicância a se submeter ao trabalho duro, entendido como coisa de negro. Ocorre que eles, os brancos, nunca foram marginalizados ou estigmatizados por isso”. Assim, ainda hoje estamos no trabalho considerado pesado de construção, de limpeza, de arrumação do que ainda não é nosso, do que é o teto de outra, como a casa da patroa, cidadã de bem em sua cidadela guardada por seus cães de raça.
Portanto, mais do que teto e dinheiro (não precisamos de herança nenhuma, sempre fomos trabalhadoras), para nós (mulheres negras) impõe-se a desaprendizagem do lugar do que não fala, para impor-se a aprendizagem do lugar do que escreve, também como trabalho.
Clara Okeke e Clara dos Anjos, no que essas duas mulheres se relacionam com o que agora digo acerca da mulher negra e da escrita? A primeira, personagem criada por Chinua Achebe, refugia-se no livro A paz dura pouco; a outra, conhecida personagem instituída por Lima Barreto, está exilada em Clara dos Anjos. Uma das claras é nigeriana (igbo) e a outra, brasileira, dos subúrbios do Rio de Janeiro. Quando digo que são negras, o faço como um ato político, porque, mesmo no mundo considerado negro, as duas claras são habitantes de uma fronteira que lhes nega a condição ora de mulher ora de sujeito falante.
Tanto a uma quanto a outra não foi dado ultrapassar as fronteiras dos sem nome, permaneceram estrangeiras em seu próprio terreno. Clara Okeke pelo fato de ser filha de um homem que no passado havia fundado religião em oposição a que era dominante e Clara dos Anjos, todos sabemos a história.
A partir do meu envolvimento com as duas Claras na produção dos poemas do livro e se alguém o pano, arrisco-me a afirmar que, nós, mulheres negras, permanecemos estrangeiras, inclusive quanto ao que o senso comum entende por “ser mulher”.  Estamos do outro lado de qualquer fronteira, seja qual for o ponto de mirada ou de escuta, não sei se como destinação. E, por outro lado, no que toca à poesia, temos condições de nos apropriar e até muito bem desse au-delá, “desse lugar que não é”, a nosso favor e não contra, porque isso nos permite escrever de um posto não ordinário, não cômodo, externo à segurança dos apartamentos em condomínios fechados.
Assim, por meio desse ainda iniciante trabalho com as palavras, pretendo que falem, pelo menos um pouco, anastácia, anagilda, lela, iolanda e tantas outras mulheres negras que, como a irene do poema de Manuel Bandeira, apenas foram ditas, faladas, e sempre tiveram que pedir licença para qualquer coisa, inclusive para morrer e para chorar os seus mortos.
A escrita de poesia se apresenta para nós como um ato político: um não ao silêncio dos submetimentos, uma quebra do laço com a subalternidade e seus arautos.
A escrita de poesia se apresenta como possibilidade de fazer falar a morte, da qual estamos tão próximas desde o nascimento.
A escrita de poesia se apresenta como possibilidade de fazer falar os desaparecidos, esses mais do que mortos, porque o desaparecimento nos afasta da possibilidade de chorá-los, de lamentá-los, de colocarmos lápide nos seus túmulos e fazermos com que desde então sejam apenas um nome.  
Essa é a posição política e poética que busquei expressar até aqui. Se houve êxito ou fracasso ou nenhum dos dois já é outro tema.    


Este texto foi apresentado na III Jornada Literária de Autoria Negra, realizado na Universidade de Brasília no dia 1º de junho de 2016.